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O famoso artigo “Freedom and Resentment” (2008), de Peter Strawson, trouxe uma contribuição importante para o debate da vontade livre, na medida em que procurou reconciliar duas posições antagônicas: o compatibilismo e o incompatibilismo. Para os incompatibilistas (a quem Strawson chamou de pessimistas), se a tese determinista fosse verdadeira, os conceitos de obrigação e responsabilidade moral não teriam aplicação, e as práticas de punição e culpa,

condenação e aprovação moral, seriam injustificadas. Já os compatibilistas (os otimistas) afirmam que esses conceitos e práticas são justificadas mesmo sendo verdadeira a tese determinista. Há ainda a posição do cético moral, que afirma que as noções de culpa moral, de censura e de responsabilidade moral são confusas, sendo o determinismo verdadeiro ou falso (STRAWSON, 2008, p. 1).

Como reconciliar posições tão opostas como a dos pessimistas e a dos otimistas? Uma possibilidade seria uma parte recuar de um lado, e a outra parte fazer uma concessão de outro lado. Conforme Strawson:

Alguns dos otimistas sobre o determinismo assinalam a eficácia das práticas de castigo, e da condenação e aprovação moral, na regulação do comportamento de formas socialmente desejáveis. Pelo fato de sua eficácia, sugerem, há uma base adequada para essas práticas; e esse fato certamente não mostra que o determinismo seja falso. A isso o pessimista replica, e de imediato, que o castigo justo e a condenação moral implicam culpa moral, e que a culpa moral implica a responsabilidade moral, e a responsabilidade moral implica a liberdade, e a liberdade implica a falsidade do determinismo (STRAWSON, 2008, p. 2-3)18.

Os otimistas costumam responder que essas práticas exigem liberdade, e que a existência de liberdade, nesse sentido, significa a ausência de certas condições como coerção, incapacidade inata, insanidade, ou outras formas menos extremas de desordem psicológica. A essa lista acrescenta-se outros fatores que, sem ser limitações de liberdade, podem tornar a condenação ou castigo moral inapropriados como, por exemplo, algumas formas de ignorância, erro ou acidente (STRAWSON, 2008, p. 3).

Os pessimistas concordam com a definição de liberdade no sentido negativo que os otimistas reconhecem. Eles também admitem que a existência da liberdade nesse sentido é compatível com o determinismo. Mas os pessimistas acrescentariam que o agente deve merecer o castigo, a culpa ou a condenação moral. E no caso em que o agente é culpado por uma ação que ele fez, para que ele realmente mereça ser censurado é exigido um sentido de liberdade que é incompatível com o determinismo (STRAWSON, 2008, p. 3).

Para os otimistas, a verdade da tese determinista não implica que ninguém decide fazer nada, ou que não se faz nada intencionalmente, ou que é falso que as pessoas sabem o que estão fazendo. Agora os pessimistas podem questionar: por que liberdade, nesse sentido, justifica a culpa? A razão que os otimistas fornecem para as práticas de condenação e de castigo moral,

nos casos em que a liberdade negativa está presente, é a eficácia das práticas sociais para regular o comportamento de modo socialmente desejável. Quanto a isso os pessimistas diriam que a admissibilidade dessas práticas exige um tipo de liberdade que é incompatível com a tese determinista (STRAWSON, 2008, p. 4).

Strawson está interessado na grande importância que nós atribuímos às atitudes e intenções que as outras pessoas adotam em relação a nós e o quanto os nossos sentimentos e reações pessoais envolvem nossas crenças acerca dessas atitudes e intenções. O ponto é destacar o quanto valorizamos que as ações das outras pessoas reflitam para nós atitudes de boa vontade ou afeto, por um lado, ou desprezo e indiferença, por outro. Digamos que alguém pise na minha mão acidentalmente, pois ele estava tentando me ajudar e não foi a sua intenção me ferir. Nesse caso eu irei desculpá-lo. Porém, se ele pisa na minha mão de forma desrespeitosa, com um desejo de me ferir, então eu sentirei ressentimento (STRAWSON, 2008, p. 5-6).

Muitos são os tipos de relações que podemos ter com as outras pessoas: como participantes de um interesse comum, como membros de uma mesma família, como amigos, como colegas, como amantes, por exemplo. Em geral, esperamos algum grau de boa vontade ou estima das pessoas que mantém relações interpessoais conosco (STRAWSON, 2008, p. 6).

Na presença de determinadas condições as atitudes reativas como o ressentimento, por exemplo, podem ser suspensas. Essas condições podem ser divididas em dois grupos. No primeiro grupo estariam expressões como “Ele não teve intenção”, “Não sabia”, “Ele não pôde evitá-lo”, “Ele foi compelido” ou “Não lhe deixaram alternativa”. Quando essas condições estão presentes elas nos levam a considerar a ofensa em questão como inapropriada (STRAWSON, 2008, p. 7-8).

O segundo grupo de considerações divide-se em dois subgrupos. No primeiro subgrupo encontram-se expressões como “Ele agiu sob o efeito da hipnose” ou “Ele não era o mesmo”. No segundo subgrupo considerações como “Ele é uma criança”, “Ele é um esquizofrênico” ou “Seu comportamento é compulsivo”. Essas desculpas, diferentemente daquelas do primeiro grupo, nos convidam a ver o agente como um candidato inapropriado para as atitudes reativas. Nesse segundo subgrupo permite-se que as circunstâncias sejam normais, mas o agente é apresentado como anormal, psicologicamente imaturo. Nessas circunstâncias nossas atitudes reativas em relação a essa pessoa tendem a modificar-se. O que Strawson pretende destacar aqui é a distinção entre a atitude de envolvimento ou participação nas relações pessoais, por um lado e a atitude objetiva, por outro. Strawson define a atitude objetiva como se segue:

A adoção da atitude objetiva em relação a outro ser humano consiste em vê- lo, talvez, como objeto de política social, como sujeito a quem, em um sentido muito amplo, caberia submeter a um tratamento; como alguém que certamente deve ser levado em conta, talvez tomando medidas preventivas; a ser controlado, tratado ou treinado (STRAWSON, 2008, p. 9)19.

A atitude objetiva pode incluir repulsa ou medo, piedade e inclusive amor, ainda que nem todos os tipos de amor. Porém, não se pode incluir as atitudes e os sentimentos como ressentimento, gratidão, perdão e o amor que dois adultos sentem um pelo outro, que são próprios à participação nas relações interpessoais. Ver alguém como um ser pervertido, ou transtornado, ou compulsivo no seu comportamento, implica adotar uma atitude objetiva em relação a essa pessoa. Também pode se adotar uma atitude objetiva em relação à conduta de uma criança pequena com o intuito de tratá-la ou educá-la. Além disso, podemos inclusive adotar essa atitude objetiva com relação ao comportamento do ser humano normal e maduro. Claro que não podemos fazer isso por muito tempo, em uma situação normal. Se a tensão continuar por muito tempo o melhor é romper a relação (STRAWSON, 2018, p. 10).

Já as atitudes reativas, Strawson define como “reações humanas naturais diante da boa ou má vontade ou diante da indiferença dos demais, conforme se manifestam em suas atitudes e ações” (STRAWSON, 2018, p. 10-11). A questão que teríamos que fazer, segundo Strawson, é que efeito teria sobre essas atitudes reativas caso nós aceitássemos a tese determinista? Dito de outro modo, a aceitação da tese determinista levaria à rejeição das atitudes reativas? Caso admitíssemos sua verdade, isso significaria o fim do ressentimento, da gratidão e do perdão? A verdade da tese determinista não implicaria em nós adotarmos uma atitude objetiva nas nossas relações interpessoais (STRAWSON, 2008, p. 11).

As atitudes reativas pessoais tendem a dar lugar às atitudes objetivas nas circunstâncias em que o agente é considerado excluído das relações humanas adultas por ter alguma anormalidade psicológica, ou por ser imaturo. Porém, o ponto é que a tese determinista não deveria implicar que a anormalidade fosse universalizada. Adotar sempre uma atitude objetiva causaria um isolamento, algo que os seres humanos não seriam capazes de fazer. Nesse sentido, uma convicção teórica sobre a verdade do determinismo não implicaria em nós adotarmos em relação aos outros uma atitude de completa objetividade. E mesmo que empregássemos tal atitude em um caso particular a razão de por que o faríamos não se deve ao fato de acreditarmos na possibilidade de um mundo determinista, mas ao fato de que quando abandonamos as

atitudes reativas nas relações interpessoais é devido à presença de condições particulares, tal como o comportamento anormal (STRAWSON, 2008, p. 12-14).

As atitudes reativas discutidas até aqui, em particular o ressentimento, são reações à qualidade da vontade dos demais em relação a nós mesmos. O ressentimento expressa uma reação nossa ou à ofensa ou à indiferença manifestada no comportamento de uma outra pessoa em relação à nós mesmos. Dito de outro modo, aqui trata-se do ponto de vista daquele cujo interesse está diretamente implicado. Strawson também discute nesse texto atitudes reativas que não envolvem a relação entre os ofendidos e os beneficiados, mas são semelhantes às atitudes reativas pessoais. Deixando de lado a atitude reativa do ressentimento, Strawson colocará no centro da discussão agora a indignação moral, ou a desaprovação moral, isto é, atitudes reativas vicárias, impessoais. Essas são reações à qualidade da vontade das pessoas, não em relação a nós, mas às outras pessoas. Aqui trata-se do ponto de vista daqueles cujos interesses não estão diretamente envolvidos (STRAWSON, 2008, p. 14-15)20.

A suspensão das atitudes vicárias, assim como ocorre com as atitudes reativas pessoais, não é uma consequência da verdade da tese determinista. Nem segue a partir dessa tese que ninguém saberia o que está fazendo ou que ninguém seria capaz de adotar atitudes impessoais ou autorreativas (STRAWSON, 2008, p. 19).

Tendo dito isso, agora é o momento de tentar preencher a lacuna que o pessimista encontra na explicação do otimista do conceito de responsabilidade moral. Para o otimista, a verdade do determinismo não significaria a inexistência do conceito de responsabilidade moral e das práticas de condenação moral. Strawson acredita que a lacuna na explicação do otimista pode ser preenchida levando em conta as atitudes e sentimentos que são partes da vida moral. Nesse sentido, não haveria a necessidade de apontar a falsidade da tese determinista como faz o pessimista. É prestando a atenção a essa gama de atitudes que podemos recuperar os fatos como o conhecemos, não temos de ir além dos fatos. Dado que o otimista negligencia essas atitudes, o pessimista está correto quando aponta que há uma lacuna na explicação do otimista. Essa lacuna pode ser preenchida, mas em troca o pessimista deveria renunciar à sua metafísica (STRAWSON, 2008, p. 22-24).

O que há em comum entre o otimista e o pessimista é que ambos procuram, de modos diferentes, super-intelectualizar os fatos. Dentro da gama de atitudes e sentimentos humanos,

20 Há também as atitudes autorreativas que dizem respeito às exigências que nós fazemos a nós mesmos,

e aqui inclui-se fenômenos tais como sentir-se constrangido ou obrigado, remorso, culpa ou arrependimento (STRAWSON, 2008, p. 16).

vistos acima, há espaço para modificação, críticas e justificação. Porém, as questões de justificação são internas à estrutura geral das atitudes. Ambos, o otimista e o pessimista, se mostram incapazes de aceitar isso. O estilo do otimista de super-intelectualizar os fatos consiste na busca de uma fundamentação para suas práticas sociais com base nas suas consequências, e perde de vista as atitudes humanas das quais essas práticas são a expressão. Já o pessimista não perde de vista essas atitudes, porém é incapaz de aceitar o fato de que são essas atitudes que preenchem a lacuna na explicação do otimista. O pessimista pensa que a lacuna só pode ser preenchida se a tese determinista for falsa (STRAWSON, 2008, p. 25).

Não está errado o otimista enfatizar a eficácia das práticas sociais, ao regular o nosso comportamento do modo desejável. O que é errado é esquecer que essas práticas são expressões de nossas atitudes morais, e não meramente artifícios que empregamos de modo calculado para fins regulativos. Ao modificar a posição do otimista simultaneamente corrige-se sua posição sem recorrer à obscura metafísica do libertista (STRAWSON, 2008, p. 27).

Eu penso que o problema da vontade livre poderia ser beneficiado a partir de um aperfeiçoamento de uma posição compatibilista. Eu acredito que não haveria necessidade, como disse Strawson, de super-intelectualizar os fatos.

2 RESPONSIBILIDADE MORAL E POSSIBILIDADES ALTERNATIVAS

Neste capítulo tratarei das posições compatibilistas e incompatibilistas sobre o determinismo e a liberdade. Primeiro apresentarei a posição de Frankfurt sobre a possibilidade do agente ser moralmente responsável apesar de não poder agir diferentemente. Depois, diferentes versões da teoria átimo de liberdade, proposta por filósofos que não ficaram convencidos pelo argumento de Frankfurt. Em seguida, será analisada a rejeição da abordagem átimo de liberdade por Fischer. Depois, uma réplica apresentada por filósofos conhecida como a defesa do dilema. E, por fim, a resposta de Fischer a essa nova tentativa de preservar a possibilidade do agente poder agir diferemente para poder ser moralmente responsável pelo seu comportamento.