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A Competência Comunicativa

3 SOCIOLINGUÍSTICA: UMA PERSPECTIVA PARA ANÁLISE DA

3.3 A Competência Comunicativa

No sentido de reforçar o processo de desmistificação do falar “certo” ou “errado” e problematizar a idéia de que ser competente significa dominar as estruturas gramaticais de uma língua considerada homogênea, a sociolingüística apresenta, a partir dos trabalhos de Hymes (apud BORTONI-RICARDO, 2005), o conceito de competência comunicativa.

Hymes (apud BORTONI-RICARDO, 2005) questiona em Chomsky o conceito de competência como própria de um falante-ouvinte ideal, situado numa comunidade linguisticamente homogênea que, ao fazer uso efetivo da língua em situações concretas, não permite que elementos como limitações de memória e desvios de interesse e de atenção interfiram em seu desempenho. Para Hymes (apud BORTONI-RICARDO, 2005), esse conceito de competência lingüística de Chomsky mostra limites, uma vez que não se pode desconsiderar a relação intrínseca entre aspectos linguísticos, culturais e contextuais nem as variações que compõem uma língua.

Se as situações de uso da língua são diferentes e exigem organizações textuais orais ou escritas diversas, não se pode pretender que os diferentes

contextos de interação se encaixem em um modelo de língua homogêneo, mas que, segundo Hymes (apud BORTONI-RICARDO, 2005), o usuário de uma língua heterogênea consiga entender as diferenças e posicionar-se em relação a elas segundo as exigências do contexto. Mais do que conhecimento das regras de formação das sentenças, esse movimento exige também adequação às normas sócio-culturais que definem a situação de comunicação.

A adequação associada à viabilidade, a qual se refere a fenômenos sensoriais e cognitivos (memória, audição, etc.), formam o que Hymes (apud BORTONI-RICARDO, 2005) chama de competência comunicativa, ou seja, o usuário saber o que dizer e como dizer com quaisquer interlocutores, sejam eles pessoas íntimas ou desconhecidas, e em quaisquer circunstâncias, descontraídas ou tensas.

A consciência da adequação faz com que o usuário, no momento da interação, revele o repertório de que dispõe para diversos eventos de comunicação, sejam eles mais ou menos formais, familiares ou estranhos aos falantes- escreventes.

E, assim como há situações em que não há pressão de tempo ou necessidade de um planejamento dos discursos, há também situações em que a pressão promove uma espécie de estresse comunicativo, que pode fazer com que o falante ou o escrevente não se pronuncie por não dispor ou não encontrar formas para dizer. Com base nos estudos de Givón, Bortoni-Ricardo (2005, p. 63) define o estresse comunicativo como um “[...] parâmetro para aferir a formalidade na fala.”

Ao apresentar o conceito de competência comunicativa, Bortoni-Ricardo (2005, p. 62) propõe que a viabilidade extrapole os limites da memória, recursos perceptuais, etc., e abarque o que ela chama de recursos comunicativos à disposição do usuário, os quais integram o capital simbólico e social de cada pessoa: “Se um falante não tiver acesso a recursos lingüísticos necessários para a implementação de um certo ato de fala, como, por exemplo, vocabulário ou padrões retóricos específicos, seu ato de fala se torna inviável”.

Essa viabilidade lingüística, que Bortoni-Ricardo (2005) propõe, mostra-se influenciada por três condições básicas, entrelaçadas e relacionadas ao estresse comunicativo: o apoio contextual; o grau de complexidade do tema abordado e a familiaridade com as rotinas comunicativas.

O apoio contextual mostra-se pela ação dinâmica dos interagentes, que podem demonstrar uma relação marcada por maior ou menor dependência em

relação ao contexto. No caso de pessoas que compartilham de muitas experiências em comum, a comunicação aparece marcada por muitas informações implícitas, o que representa uma grande solicitação do apoio contextual; se os falantes mostrarem antecedentes distintos, a interação será marcada por um maior número de informações explícitas e precisas, assim como menor dependência contextual.

A complexidade do tema abordado ou complexidade cognitiva refere-se ao repertório de conhecimentos lingüísticos acessíveis ao usuário. Bortoni-Ricardo (2004) ilustra essa condição a partir da experiência de contar histórias: se relatos pessoais são cognitivamente menos complexos, relatos de fatos históricos exigem um esforço bem maior.

A familiaridade com a rotina comunicativa envolve atividades que vão desde saudações até a elaboração de um relatório científico. A intimidade está relacionada ao uso e varia de acordo com a realidade em que o usuário está inserido. Se as rotinas referentes à fala apresentam-se diversificadas, esse número torna-se maior quando somarmos àquelas da escrita, uma vez que o usuário precisará mostrar familiaridade com uma organização discursiva que exige elementos formais próprios.

As condições acima apresentadas permitem enxergar a apropriação dos recursos comunicativos como um processo que vai se desenrolando à medida que as pessoas vão vivendo, envolvendo-se em diferentes situações de interação e assumindo diferentes papéis sociais.

Nesse sentido, Bortoni-Ricardo (2005) chama atenção para a função da escola no processo de aquisição desses recursos, considerando que, ao chegarem a essa instituição, por volta dos sete anos de idade, os alunos já carregam consigo uma competência de uso da língua que lhes permite produzir sentenças bem organizadas e comunicar-se em sua língua materna. Para essa pesquisadora, cabe à escola criar condições para que o aluno desenvolva sua competência comunicativa e se aproprie dos recursos comunicativos necessários para que possa desempenhar-se bem nos contextos sociais em que interage.

Trabalhar nessa direção seria uma forma de pensar numa possível quebra do efeito de “naturalização” da reprodução social, que a escola sustenta e propaga, ao tratar as desigualdades sociais prévias como naturais e o destino social dos alunos, como vocação para determinadas atividades. Ao se posicionar no

sentido de enxergar que os ditos dons naturais – atribuídos a escritores e oradores – têm raízes sociais, é possível pensar em uma mudança.

O trecho a seguir foi extraído de uma redação de Clara (ANEXO C), uma aluna que participa, na escola Atenas, de um projeto sobre meio ambiente ligado à FAPEMA. Durante a entrevista, essa jovem disse que tem a leitura e a escrita como uma atividade freqüente:

Saber conviver com cada costume é o que nos cabe. Todavia, o que nos domina é a discriminação que nada mais é, do que a recusa do aceitar o outro simplesmente pelo que ele é. Religiosos afirmam que fomos criados à imagem e semelhança de Deus, sendo assim, somos iguais. E porque não encaramos tudo desse ponto? O não aceitar diferenças é uma das doenças mais graves, mais antigas, e é sem dúvida a que mais causa sequêlas. (Trecho da redação de Clara).

Clara, ao elaborar sua redação, deixou marcas de recursos comunicativos próprios de quem tem uma certa familiaridade com a tarefa comunicativa que lhe foi solicitada – no caso, a produção de uma dissertação. Durante a entrevista, ela disse gostar de ouvir noticiários e reescrever as matérias a partir de seu entendimento e posicionamento em relação ao que foi apresentado nos jornais.

Além disso, o contato com textos formais, nos encontros de estudo do projeto, e a apresentação de trabalhos, em diversos eventos de pesquisa, permitiram a Clara um treino, no que se refere à elaboração de textos expositivos e argumentativos orais e escritos. Com isso, ela pôde apropriar-se de recursos, para responder à pressão comunicativa de uma atividade que exige maior grau de esforço cognitivo, como são as redações produzidas em exames oficiais.

Assim como Clara, os demais alunos envolvidos em projetos de pesquisa16 elaboraram textos dissertativos, que indicavam a relação mais estreita com práticas de leitura diferenciadas da maioria dos alunos. Ainda que houvesse desvios relativos à norma oficial, foi possível perceber um volume de recursos, que indicavam o desenvolvimento da competência comunicativa. Esses alunos possuem um repertório, que lhes permite o domínio de certos usos especializados da língua, como é o caso de um texto dissertativo-argumentativo escrito.

16

Durante o tempo de observação direta na escola Atenas, presenciei dois eventos de divulgação dos projetos de pesquisa voltados para o meio ambiente, a variação lingüística e a leitura. Além disso, durante a oficina de produção de texto que ministrei, os alunos envolvidos no projeto de variação lingüística precisaram faltar um dia, pois estavam com uma apresentação, em evento científico, agendada.

Visto que a Sociolinguística procura tratar a fala e a escrita, a partir dos seus respectivos usos, e que não classifica a competência comunicativa como específica de quem domina as regras da gramática da norma padrão, mas de um usuário que demonstra domínio tanto do português vernacular quanto das regras interacionais das diversas situações de formalidade, caminharemos agora no sentido de apresentar a relação entre a sala de aula e o tratamento da fala e da escrita.