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A Língua como Heterogeneidade Ordenada

3 SOCIOLINGUÍSTICA: UMA PERSPECTIVA PARA ANÁLISE DA

3.1 A Língua como Heterogeneidade Ordenada

A Sociolinguística nasce a partir da reflexão sobre a relação entre língua e sociedade. Sua proposta, no entanto, não vê o estudo da língua de modo autônomo e independente dos fatores sociais, mas como indissoluvelmente relacionados.

Se considerarmos, então, que as sociedades são compostas por diversidade de grupos e de pessoas e que a língua é social, como acreditar num uso homogêneo da língua? É a partir de interrogações sobre a língua como um todo em si e independente da influência de fatores sociais, que Labov (1983) vai desenvolver os estudos da Sociolinguística.

Para Labov (1983), a ideia de Saussure de que todo falante tem consigo as normas de funcionamento da língua, mas as utiliza de maneira desorganizada e aleatória ao entrar em algum evento de comunicação, é uma concepção que precisa ser repensada e constitui-se num paradoxo saussuriano (MONTEIRO, 2000). Pois, se existe comunicação, é porque os usuários souberam o que selecionar para que houvesse entendimento, ou seja, há uma ordem na diversidade de falas utilizadas pelos grupos sociais.

Outro modelo de análise da língua que vai ser questionado por Labov (1983) é o gerativismo de Chomsky (1998), que também concebe a língua como homogênea e defende o conceito de falante-ouvinte ideal, imune à influência de fatores sociais.

A fim de verificar a relação entre língua e sociedade e entender esses desencontros entre uma visão homogênea de língua e a ocorrência de diversos atos de fala de pessoas de uma mesma comunidade – que mostram diferenças sem, contudo, impedir que a comunicação se estabeleça –, emerge a abordagem Sociolinguística de Labov (1983).

Essa nova proposta apresenta a língua como composta por variações potencialmente desencadeadoras de mudanças e defende que a língua influencia e

é influenciada pela sociedade da qual faz parte, logo seu funcionamento só pode ser entendido por meio do estudo dessa sociedade.

A partir de um modelo voltado para o estudo das variações, desenvolvido em pesquisas sobre o inglês falado – realizada na ilha de Martha‟s Vineyard, nos Estados Unidos –, e sobre a estratificação social do inglês na cidade de Nova York, Labov (1983) estabelece um modelo de descrição e interpretação da língua relacionado ao contexto social das comunidades pesquisadas.

É na empiria que Labov (1983) encontra elementos que mostram a circulação e a atuação da linguagem em diferentes contextos e verifica diferentes formas de passar uma mesma informação sem que seja alterado o valor de verdade do que foi dito. Observa também que essas formas, consideradas não-sistemáticas, seguem uma organização.

Em Martha‟s Vineyard11

, uma ilha separada do país a que pertence por mais de três milhas de oceano, Labov (1983) identificou a existência de uma variante conservadora usada pelos habitantes da ilha e uma variante inovadora12, introduzida pelos veranistas, atuando na mesma comunidade.

A influência desses veranistas introduziu mudanças na pronúncia de determinadas palavras. Desse modo, os habitantes que tinham a pretensão de sair da ilha aderiram à pronúncia trazida do continente – variante inovadora –, ao passo que aqueles que queriam permanecer na ilha e preservar sua identidade, definindo sua posição como uma espécie de guardiões das tradições, não apenas preservavam como também intensificavam o uso da variante conservadora.

A partir dessas pesquisas, são estabelecidas as bases metodológicas de um estudo da língua preocupado em analisar e sistematizar as variações da língua apontadas pela empiria, o que significa dizer um modelo voltado para as diferentes formas de dizer a mesma coisa, numa dada situação, sem que seja alterado o caráter de verdade do que foi dito.

11 Martha‟s Vineyard é uma ilha localizada no condado de Dukes, Massachusetts, Estados Unidos. A

ilha está dividida informalmente em duas partes: ilha baixa, formada por três pequenas cidades que concentram quase três quartos da população estável; ilha alta, estritamente rural, com povoados, granjas, casas de veraneio e uma grande área desabitada, coberta de pinheiros.

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Labov (1983) encontrou duas maneiras de pronunciar a vogal núcleo dos ditongos /aw/, como nas palavras out e house, e /ay/, como em white e right. A variante local conservadora, considerada não- padrão estigmatizada, tinha a pronúncia da vogal núcleo. A variante inovadora aos falantes nativos da ilha, trazida pelos veranistas e considerada como de prestígio, assemelhava-se à pronúncia própria da norma padrão do inglês.

Analisar as variações linguísticas de determinada comunidade de fala13 representa levar em conta: a origem das variações, a extensão e a propagação das trocas linguísticas, além da regularidade de tais trocas. Esse constitui o papel do modelo denominado Sociolingüística Variacionista ou Teoria da Variação, também conhecido como Linguística Quantitativa, por trabalhar com números e tratamentos estatísticos dos dados coletados sobre a variável linguística.

Essa variação, que Labov (1983) se propõe estudar, é percebida na fala dos indivíduos, a qual será vista não como individual e desordenada, mas como social e seguindo determinada organização. A fala, ou melhor, a língua falada, é tratada por Labov (1983) como o veículo linguístico de comunicação.

Ao ser usada em situações espontâneas e cotidianas – nas quais acontece a interação face a face com membros da família, amigos e tantos outros com quem nos relacionamos sem a preocupação de nos sentirmos monitorados ou censurados pelo olhar de um professor ou de qualquer outra pessoa ou situação que provoque intimidação – a fala recebe a denominação de vernáculo. Essa língua falada natural, que não é propriedade de um indivíduo sozinho, mas de um grupo, refere-se à enunciação14, em que não há a preocupação em como dizer.

Apreender e sistematizar variantes linguísticas usadas por uma mesma comunidade de fala, observando a regularidade do uso de determinado vernáculo, do mesmo modo que assumir o caráter não uniforme dos mecanismos de comunicação da língua e buscar entender essa organização dinâmica como uma espécie de engrenagem que favorece a diversidade manifesta na fala constitui o trabalho da sociolingüística. Isso corresponde a entender a língua como heterogeneidade ordenada (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006).

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Monteiro (2000, p. 40), em Para compreender Labov, destaca que, apesar de frequente, esse é um dos conceitos complexos de Labov (1983), dada a dificuldade em estabelecer os limites sociais e geográficos de uma comunidade, que não se aplica a um “[...] grupo de falantes que utilizam todos as mesmas formas e, sim, a um grupo que segue as mesmas normas relativas ao uso da língua”.

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