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Complexificação da sociedade civil e reativação de valores narrativos

Condições de Possibilidade do Discurso Petista: breve incursão no interdiscurso

3.2. Breve Mapeamento do Ambiente Narrativo Petista

3.2.2 Complexificação da sociedade civil e reativação de valores narrativos

É no contexto acima descrito que podemos nos referir à narrativa eurocomunista, cuja “herança política mais ampla e insistentemente invocada é aquela de Gramsci” (Anderson, 2002: 16) – como vimos no capítulo anterior, uma narrativa conceitual presente no Brasil na década de 1980, através de intelectuais orgânicos do Partido62. Tal narrativa propõe a desdogmatização dos partidos comunistas, que deveriam sair de seus guetos e tomar parte ativa na luta por hegemonia política (Carrillo, 1977: 13). Tentava apresentar uma reação contra dois efeitos de uma leitura objetivista da sociedade: o isolacionismo e o reformismo. O eurocomunismo (narrativa

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O Partido Revolucionário Comunista (PRC), dissidência do PC do B que atuava como tendência petista, foi responsável pela publicação, durante quase toda a década de 1980, da revista Teoria Política, que era fortemente ancorada nas temáticas e conceitos do eurocomunismo. Autores como Gramsci e Lukács eram recorrentemente analisados à guisa de lançar luzes na experiência petista.

conceitual), entretanto, segue uma tendência na tradição marxista para ressaltar a importância dos condicionantes “superestruturais” da política. A própria localização topológica da “política” na parte superior do edifício social denuncia que, na metáfora da infra e superestrutura, o determinante são os ditames objetivistas da economia (Laclau & Mouffe, 2001: 47-88).

Considerando-se todo um processo de complexificação e diferenciação social, que se materializava na emergência de uma pujante sociedade civil (Bobbio, 1994;Anderson, 2002), as estruturas do Estado seriam então “muito mais complexas [e] mais contraditórias que as que foram conhecidas pelos três mestres do marxismo” (Marx, Engels e Lênin) (Carrillo, 1977: 15). A perspectiva centrista do austromarxismo, prenunciando tal contexto, propusera, no início do século XX, soluções interessantes que – na contramão da socialdemocracia alemã – vão no sentido de promover um “reformismo militante”. Este, compatível com uma estratégia revolucionária, persegue uma compatibilização orgânica entre ação parlamentar e mobilização das massas (Mehrav, 1985: 255). Deveriam, nessa esteira, levar a cabo táticas e formas de organização partidária que fossem compatíveis com uma estratégia de articulação entre as democracias social e política.

Os austromarxistas apostaram na construção do poder local – temática retomada pelo PT através da proposição do seu modo petista de governar – construindo um vigoroso programa de reformas nos municípios com maioria socialista (ibid: 264-5) – os chamados municípios

vermelhos. O desafio que então se colocavam era o de dar proeminência à estratégia de

construção de uma “Áustria Vermelha” e, com isso, evitar alimentar ilusões reformistas na classe trabalhadora. Numa perspectiva positivo-construtiva, bastante próxima às idéias de Gramsci, uma vez que não perdiam de vista o horizonte revolucionário, os austromarxistas promoviam iniciativas culturais de “educação para o socialismo”, que não deveriam esperar pela “tomada do poder” (ibid: 266). Vislumbramos nessa experiência, ainda que esses não fossem os termos da discussão que se travava, a tentativa de se construir uma cidadania comunitária antagonística

com referência no poder local. Essa tentativa, com efeito, apesar de entender que se deveria buscar ultrapassar os limites da negatividade partidária, se concretizava através da articulação com as instituições locais da democracia representativa. Não pode, portanto, ser confundida com o localismo anarco-sindicalista, uma vez que este não propunha nenhuma espécie de articulação com a estrutura político-representativa da democracia liberal, localizando sua ação política, preferencialmente, nas fábricas e nos bairros (Costa, 1985;Berthier, 2002).

Dito isto, uma análise mais cuidadosa das escolhas envidadas pelo marxismo, quando contrastadas com a tradição anarquista, pode nos trazer elementos interessantes para compreendermos melhor o contexto político europeu nas décadas de 1960/1970. Nesse momento de dupla crise (social-democracia e stalinismo), as alternativas políticas que se vislumbravam estavam em estreita relação com a disponibilidade de certas narrativas públicas antes excluídas da cena política – o que apontava para um ambiente narrativo amplificado. Cumpre então aprofundar a já anunciada discussão de fundo entre marxismo e anarquismo: a tensão entre a dimensão positiva e negativa da ação política antagonística.

Inicialmente, é interessante notar que tanto a dimensão positiva quanto a negativa podem

assumir perspectivas revolucionárias ou reformistas, de onde se pode concluir que uma política

antagonística não está exclusivamente vinculada seja à dimensão positiva ou negativa. Isso implica que a análise política não deve ser construída a partir de conteúdos específicos e sim das configurações específicas que assumem determinados campos relacionais. Assim, as escolhas políticas envidadas pelo marxismo na I Internacional, conforme breve relato acima, por não corresponderem a interesses que se constituem fora do jogo político, não podem gerar julgamentos do tipo “acerto ou erro”. Ao contrário, atentos ao fato de que as identidades e, portanto, os “interesses” são da ordem da contingência, devemos estar aptos a perceber o caráter ideológico de qualquer justificativa para os caminhos trilhados. Essa “incerteza” teórica traz em termos políticos, igualmente, como benefício, para atores e analistas que adotam uma postura

antagonística, a possibilidade de – para além dos julgamentos morais e dogmáticos – reconhecer a possibilidade (sempre ideológica) de retorno de valores narrativos historicamente rechaçados. Pode-se, assim, sem as amarras de certas “verdades”, promover análises, ressignificações, cálculos e as escolhas políticas que daí advenham.

Os anarquistas em geral concedem grande importância ao que Gaston Leval (2002: 16) chama de “espírito construtivo”. Isso significa dizer que eles estão preocupados, em contraste ao marxismo clássico, com a reconstrução da sociedade no presente e que aprenderam com Proudhon que ser socialista é ser, ao mesmo tempo, demolidor e arquiteto (ibid: 18). Anarquistas como Bakunin e Malatesta, neste sentido, vinculavam claramente esse pendor construtivo do anarquismo com uma inegociável preocupação com os meios (estratégias) adotados para atingir determinados fins. “Enganando-nos na escolha dos meios, não alcançamos o objetivo contemplado, ao contrário, afastamo-nos dele rumo a realidades freqüentemente opostas”, diria Malatesta (2000: 11), em 1903. Bakunin, em texto propagandístico escrito em 1869 para a I Internacional, asseverou, como critério de ingresso nessa organização, que não se deveria procurar elevar-se “acima da massa operária”, pois isso faria de alguém “imediatamente um burguês” (Bakunin, 1979: 54-5).

Essa visão “extremada” dos anarquistas nos parece interessante do ponto de vista metodológico, uma vez que nos remete exatamente à noção de interdiscurso como expressão de identidades heterogêneas. A posição anarquista, a guisa de especulação, poderia ter como condição de possibilidade a existência de partidos socialistas de massas que, tornando públicos os ideais comunistas, proporcionavam um terreno ideologicamente fértil necessário à defesa dos valores anarquistas. Poderíamos então considerar que a identidade anarquista se constituía relacionalmente à identidade dos marxistas que, por sua vez, como vimos, envidaram escolhas devido a determinadas configurações histórico-estruturais hegemônicas. É com esse entendimento metodológico em mente, e considerando que o antagonismo se expressa como

forma de rompimento com o momento diferencial de determinada estrutura narrativa hegemônica, que nos propomos a contrastar as escolhas das duas tradições.

A negação por parte do anarco-sindicalismo da centralidade dos partidos políticos advinha daquela noção positivo-construtiva de política, que se contrapunha ao caráter eminentemente negativo-destruidor dos partidos revolucionários independentes. Nesse contexto, a alcunha de “utópico” ao socialismo de tradição cooperativista – tradição amplamente defendida pelos anarco-sindicalistas no que tange à defesa das experiências autogestionárias – precisa ser mais bem entendida, pois encerra um processo historicamente datado de escolhas políticas.

Os socialistas utópicos são herdeiros políticos da tradição de revolta dos camponeses

livres, escravos, servos, aprendizes e artesãos que se constrói durante a transição do feudalismo

ao capitalismo (Mandel, 1987: 47). Nessa época emergem vários “modelos sistemáticos de reorganização da sociedade fundados sobre a propriedade coletiva” com destaque para a Utopia de Thomas More, livro publicado em 1535 (ibid: 48). Os socialistas utópicos propõem-se a ir além dessas descrições pondo-as em prática através da construção de “células da vida futura” (ibid: 51). Nesse contexto, a crítica de Marx e Engels aos utópicos não é de pura negação conteudística, mas de uma noção de superação histórica a partir de elementos analíticos que “justificavam cientificamente” sua postura. Partindo, como vimos, de uma visão de totalidade, eles entendiam que as ações coletivistas dos utópicos – por seu caráter fragmentado e isolado – seriam facilmente reabsorvidas pela sociedade burguesa, denunciando o efeito, ao final, reformista de sua política. Havia, para além dos efeitos práticos das escolhas tomadas na/pela tradição marxista, a presença de um inegável ethos revolucionário, posto que se objetivava evitar os efeitos reformistas que se supunham decorrer da ação dos socialistas utópicos.

A maioria das experiências utópicas teria sido realizada num contexto de pouco

desenvolvimento das forças produtivas (Mandel, 1987: 53) e antes da existência dos Estados

década de 1860 (Eley, 2005: 58). Essas transformações nas esferas da economia e da política apontavam para a nacionalização da organização sindical (ibid: 63) e concomitante perda de

controle do processo produtivo “para as forças impessoais do mercado capitalista” (ibid: 43). Os

próprios anarco-sindicalistas, nessa esteira, não deixaram, mais tarde, de entender a

inexorabilidade da nacionalização da luta – o que implicava na necessidade de rompimento com a prática corporativa. Mas eles resistiam – ao contrário dos marxistas que investiram nos

partidos operários de massa independentes – à idéia de que a política teria que ser deslocada da

esfera econômica63. Esse é um valor narrativo que encerra grande potencial antagonístico em relação às democracias liberal-representativas. A maior ou menor disponibilidade pública desse valor narrativo depende, entretanto, da existência de um terreno ideológico fértil. As escolhas envidadas pelo marxismo – e dizemos isso a posteriori – contribuíram, como efeito não previsto, para o rechaço de tal valor e, portanto, dos espaços políticos que porventura circulassem.

Lênin, nessa esteira, acusava a concepção economicista de querer “conferir à luta econômica um caráter político” (Bogo, 2005b: 132). Não se tratava, entretanto, para ele, de abolir o trabalho local. Na “Carta a um Camarada”, publicada em 1901, ele defendeu que “a organização local estabelecesse como sua tarefa trabalhar ativamente para a construção, apoio e fortalecimento daqueles organismos centrais [Órgão Central e Comitê Central], sem os quais o nosso partido não poderia existir” (ibid: 139). Seguindo os ensinamentos de Marx, a luta política deveria romper com um estágio artesanal/espontâneo e se dar em âmbito nacional. Em contraste, para René Berthier (em texto escrito na década de 1960),

o âmbito no qual se pode praticar a autogestão já existe, mas é como uma potente máquina que se faz funcionar lentamente... O papel dos militantes anarco-sindicalistas e sindicalistas revolucionários é esforçar-se para dar a essa estrutura amplas prerrogativas, um papel prático e

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René Berthier (2002: 62) critica a perspectiva dos revolucionários franceses de 1968, pois estes, no seu entender, diferentemente dos anarco-sindicalistas espanhóis, não perceberam a necessidade de se praticar a autogestão em grande escala. Limitando-se ao nível microeconômico de uma empresa – pressupomos que seja o teor de sua crítica – facilitar-se-ia a integração do poder local à democracia representativa.

teórico maior, estender seu campo de aplicação a todos os campos da vida social. É preciso dar ao sindicato um papel qualitativamente diferente, expor uma doutrina segundo a qual nada é estranho ao sindicato (Berthier, 2002: 73).

Tal perspectiva, ao ir de encontro ao papel hegemônico dos partidos, propõe, na segunda metade do século XX, um redeslocamento dos loci da ação política. Ao assim proceder, problematiza as práticas políticas antagonísticas – como as do eurocomunismo –, que se dão sob a égide da articulação entre democracia social e política. Potencializar essa discussão hoje requer, no nosso entendimento, a percepção do caráter contingente das escolhas feitas no passado, pois isso ajuda a desenvolver uma outra noção de fidelidade (mais ligada ao ethos do que ao conteúdo) a uma tradição que se forja no bojo mesmo das referidas escolhas. Marx propunha não apenas a superação do localismo dos socialistas utópicos (decepcionados com a “política” e interessados em concentrar esforços na ação econômico-local), mas também a superação dos herdeiros da esquerda jacobina pequeno-burguesa (Samuel Adams, Thomas Paine), cujas reivindicações político-democráticas não iam além de um ideal de reforma do capitalismo (Mandel, 1987: 57-64). Debatendo-se, assim, contra as possibilidades reais de

isolamento, no primeiro caso, e da integração, no segundo, Marx – seguindo as pistas de

Gracchus Babeuf (França) e de Wilhelm Weitling (Alemanha) – compreendeu a necessidade de derrubada do Estado burguês (ibid: 60). Propunha, entretanto, em adição à política de independência desses revolucionários, a superação do caráter secreto-conspiratório da revolução. Num esforço ideológico de articulação entre narrativas e seus espaços constitutivos, esse ideal deveria ser levado a público pela ação das massas dirigidas por partidos políticos legais e independentes. Tomando parte do sistema político, esses partidos seriam capazes de vincular revolução política e emancipação econômica. Não operariam, entretanto, uma alteração na estrutura lógico-temporal da narrativa negativo-revolucionária, uma vez que a revolução política antecede a emancipação econômica. Tentava, assim, combinar, num todo coerente, a necessidade

de uma organização partidária permanente para dar cabo de uma estratégia revolucionária, que não se iludia quanto ao caráter meramente formal da democracia burguesa representativa.

Marx, portanto, promoveu articulações a partir de narrativas públicas disponíveis para dar respostas concretas a um contexto histórico-social específico. No bojo dessas escolhas, apesar de não estar objetivamente colocada a negação da ação política local, havia uma predileção

contingente, tático-estratégica, pela perspectiva negativo-destrutiva. Esta última materializava a

transferência da ação política ao plano nacional a partir do embate político frontal contra a dupla corporativismo-economicismo. Tal deslocamento corresponderia a um estágio mais evoluído, propriamente “político”, da luta de classes. Essa estratégia política, plenamente justificável no

contexto em que foi produzida por Marx/Lênin, quando colocada dentro de uma estrutura narrativa objetivista, ganha tons eminentemente evolucionistas que limitam, como uma camisa de força, a abrangência espacial do político. O embate ao corporativismo/economicismo –

presente na narrativa petista – será posteriormente travado por narrativas reformistas que, apoiadas em narrativas conceituais, cumprem o papel ideológico de transcodificar linguagens para justificar suas práticas políticas.

Esse embate ganhou contornos contingenciais já na luta de Lênin contra os “economicistas”. No clássico “Que Fazer?” (escrito em 1902), Lênin (1978b: 77-118), expondo sua teoria do partido revolucionário, faz a defesa da superioridade da eficácia organizativa do mesmo em relação ao caráter disperso e pouco “profissional” do trabalho artesanal, basista e cotidiano (local, portanto). O trabalho do tipo artesanal, facilmente destroçável pela polícia política czarista (os gendarmes), estaria umbilicalmente vinculado ao economicismo e promoveria certo culto ao espontaneísmo. Para fazer frente à repressão policial, Lênin – para além dos sonhos economicistas de criação de uma unidade orgânica da socialdemocracia com o movimento sindical – proclama a necessidade de se fazer uma distinção entre luta sindical,

dirigida por profissionais da atividade revolucionária. A não percepção dessa distinção pelos economicistas era explicada por Lênin pelo contexto de repressão que se vivia na Rússia.

Dentro dessa estrutura narrativa não parece haver espaço para uma integração das dimensões positiva e negativa de política, conforme já fora defendido por revolucionários como Bakunin (Leval, 2002: 28) e preconizado, em outros termos, pelo eurocomunismo. Isso porque a estrutura organizativa (unidade hierárquica e centralizada) do partido revolucionário, fruto, como vimos, de uma operação ideológica, é projetada para uma ação eminentemente negativa, de

destruição. Não se coaduna, portanto, com as tarefas de construção, que, politizando outras

esferas da sociedade, exigem maior flexibilidade, descentralização e enraizamento na sociedade. Ao se considerarem, nesse contexto, as práticas positivo-revolucionárias, torna-se mais clara a questão da mútua implicação entre estrutura organizativa e estratégia de ação.

Vislumbrar a possibilidade de se adotar, a um só tempo, táticas políticas positivas e negativas, põe automaticamente em xeque a noção gramsciana de partido como “princípio estatal” ou unidade orgânica. Isso porque o espaço partido político, na sua ação de representação, articularia valores que advêm de culturas políticas distintas e historicamente conflitantes. A unidade do partido de molde leninista, tornando-se uma camisa de força, tende a coibir a construção de poder cuja direção não seja clara: a destruição do Estado burguês. Isso exige uma mobilidade organizativa que, demandando o adiamento das tarefas positivas (ainda que revolucionárias) e dos espaços político-culturais que elas implicam, termina por reverberar no ambiente narrativo enquanto sistema de significação.

Na nossa perspectiva, essa metáfora do partido como unidade orgânica ganha alento naquela noção evolucionista de superioridade hierárquica da “política” em relação à ação na esfera da economia, o que, em última instância, se apóia na crença (metanarrativa) da marcha progressista da modernidade – que passa pelo Estado-nação. Recorramos, mais uma vez, ao debate de Lênin com os economicistas. Levando em conta aquele contexto de extrema repressão

czarista, ele explicava a “confusão” entre esferas da economia e da política daqueles ligando-os ao atraso em que vivia o país:

nos países onde há liberdade política , a diferença entre organização sindical e organização política é perfeitamente clara... Na Rússia, o jugo da autocracia apaga, à primeira vista, qualquer distinção entre a organização socialdemocrata e a associação operária, pois todas as organizações operárias e todos os círculos estão proibidos, e a greve... É considerada um crime de direito

comum (Lênin, 1978b: 87).

Lênin evoca o exemplo do partido socialdemocrata alemão, inserido num campo relacional particular e historicamente forjado, para comprovar que o caráter universalizante da

distinção entre partido (nacional) e sindicato (corporativo) era plenamente verificável. Essa

operação só é possível, entretanto, através da promoção da “autonomia” da esfera política, valor liberal que tem o efeito de despolitizar o local e a esfera econômica. O terreno da representação política (Estado) é, nesses termos, o campo por excelência que proporciona a existência da instituição partido político. Outras formas alternativas de superação do corporativismo, como as propostas pelo anarco-sindicalismo – que rejeitam o espaço nacional de representação, subvertendo sua lógica diferencial –, são, do ponto de vista lógico-espacial, ameaçadoras à própria noção de partido.

O processo de burocratização e adaptação às instituições liberais – que se verificou a partir da II Internacional Comunista – era, já no início do século XX, fato consumado para muitos. Nesse sentido é que Weber denuncia que, na prática, o partido socialdemocrata não conseguira manter a lealdade a um programa abstrato, pois sua estrutura havia cedido à influência do elemento carismático que agrega votos e mandatos (Weber, 1963a: 125-6). A força simbólica da personalidade do líder “demagógico” (expressão de Weber) borrava a pretensa plenitude e transparência de um processo de representação política pensado desde o ponto de vista da autoridade narrativo-programática. Ao remeter ao princípio comunitário, pois a pessoa do líder está próxima simbolicamente dos representados, desafia a racionalidade das “ideologias”

clássicas. O partido revolucionário se via invadido, como efeito de suas práticas articulatórias, em suas próprias estruturas, por outras lógicas e demandas que não as da narrativa classista.

Toda essa discussão ganha atualidade no contexto europeu das décadas de 1960 e 1970, fundamentais para o delineamento de uma configuração inicial do ambiente narrativo petista. O marxismo contribuiu inequivocamente para o estabelecimento de certa configuração estrutural da sociedade, que estabeleceu o Estado moderno e suas instituições democráticas como um palco privilegiado do fazer político. É assim que Cerroni (1982: 57) lembra que Gramsci se referia ao partido do proletariado moderno como o “fundador de Estados”. Da mesma forma que a tradição marxista se recusava, negando a importância e reprimindo – tanto no Oriente como no Ocidente – a construção imediata de uma cultura política autogestionária64, a radicalização da perspectiva

comunitária nas democracias contemporâneas de hegemonia liberal é vista, igualmente, como

perigosa, pois fora dos limites do “razoável”. Interessante é notar como essa resistência ganha, na tradição marxista, coerência teórica. A perspectiva revolucionária negativa, incorporando o