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O marco legislativo do século XIX é a Constituição Política do Império brasileiro, outorgada por D. Pedro I em 25 de março de 1824. Esta seria, portanto, a cerimônia de adeus a um período marcado por legislações alienígenas que regiam os sistemas privado e público do Brasil e o deflagrar de um movimento liberal capaz de referenciar o porvir do sistema jurídico nacional.

A primeira constituição nacional, que mereceu vigência por 65 anos e que recebeu apenas uma emenda, foi sendo complementada, explicada, “ordinarizada” por legislações que se seguiam sem qualquer aderência ao texto magno, criando microssistemas legais absolutamente margeados das inspirações liberais paradoxalmente impostas pelo Imperador.

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O código criminal de 1830 é exemplo dessa insubordinação. Logo esse código, que veio cumprir determinação contida na própria Constituição de 1824, exatamente no art. 179, XVIII, que dizia: “Organizar–se-ha quanto antes um Código Civil, e Criminal, fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade”.

E esse mesmo código, já no início, especificamente no art. 14, dizia que seria um crime justificável os castigos dos senhores contra seus escravos, desde que moderados. Aí já se vê que esses corpos eram pertencentes aos senhores, e a legislação era complacente aos castigos. Mas é importante dizer que o código considerava crime o castigo contra o escravo, mas não um crime punível. Era como se o açoite fosse uma legítima defesa da propriedade, ou um estado de necessidade, ou mesmo o estrito cumprimento de um dever legal, em que o senhor podia cometer o delito em nome de um bem maior, que era a propriedade.

O código criminal, nascido de inspiração constitucional, debatido em um parlamento composto por 11 militares, 6 bacharéis, 15 sacerdotes, 2 médicos, 1 advogado e 3 doutores, fortalecia o suplício dos corpos cativos, em desacordo com os ideais que emprenhavam a norma que o conduziu à luz, qual seja, a Carta de 1824.316 Vera Malguti Batista aponta que era nesse

[...] marco de referencia que o Código Criminal do Império de 1830 é promulgado, na esteira do medo das insurreições, nas expectativas de que à nação independente de 1822, sobreviessem os direitos plenos de seu povo mestiço, nas contradições entre liberalismo e escravidão, na necessidade de unificação territorial e centralização dos poderes imperiais.317

Já o Código de Processo Criminal previa estrutura organizacional mais democrática, preservando direitos constitucionais e regulamentando instituições nascidas da Carta. A figura do juiz de paz passa a ser regulada, ao tempo em que são criadas as estruturas essenciais do aparato judiciário brasileiro, composto, a contar de então, dos escrivães, inspetores de quarteirão, oficiais de Justiça, cada qual responsável pela repressão e controle social dentro de um sistema processual legalmente estabelecido e antevisto, o que já representava avanço.

A instituição do habeas corpus, por exemplo, identifica bem esse espírito garantista da lei processual penal. Instituto sequer previsto na Constituição Política do Império do Brasil, a lei dos ritos penais permitia que qualquer cidadão propusesse ordem de habeas corpus em seu

316 MACHADO NETO, Zahide. Direito penal e estrutura social: comentário sociológico ao Código Criminal

de 1830. São Paulo: Edusp; Saraiva, 1977.

317 BATISTA, Vera Malaguti.O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2. Ed. Rio de

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favor ou em favor de qualquer pessoa, em caso de prisão ou mero constrangimento em sua liberdade de locomoção.

Mais ainda, impunha àquele que descumprisse a ordem de habeas corpus a imediata prisão, numa paradoxal relevância do direito de liberdade em favor do ilegalmente custodiado em face à claudicância do agente público, que seria conduzido, esse sim, ao juiz e ao cárcere.

Já a lei de 3 de dezembro de 1841 reformulava tudo, porque retirava o sistema processual penal dos trilhos constitucionais, até então preservador de direitos germinais do indivíduo, notadamente pelo nascimento de um proceder dialético presidido por juiz de paz eleito, cujas decisões estariam sujeitas aos recursos dirigidos ao colegiado denominado juntas de paz constituídas pelo menos por cinco membros, podendo chegar a dez componentes.

É verdade que esses juízes de paz eram dirigentes da instrução criminal desde a prisão, de forma que o crime era, desde o liminar, investigado por esses agentes, considerando a supressão do cargo de delegado de polícia pelo próprio código de 1832 e, no lugar desse, a criação o cargo de inspetor de quarteirão, sumamente responsável pelo controle social imediato e pelas prisões em estado flagrancial, de tudo cientificando os juízes de paz.

Existiam instâncias diferentes, destinadas à prisão e à persecução da verdade. Esse sistema sucumbiu em frente à deformação nascida da lei dezembrina, que reviveu a figura do delegado de polícia – no que fez bem – a quem conferiu as atribuições dos juízes de paz, ao que se somam, e aí reside a miscelânia de competências, os deveres de inspeções, prisões, investigações e condenações, transformando a força policialesca em mecanismo de controle e punição primeva dos acusados.

O cargo de juiz de paz, criado pela Carta de 1824 com evidente espírito conciliador prévio de demandas, regulamentado pela Lei de 15 de outubro de 1827, ganhou relevo com o Código de Processo Penal Imperial e, logo em seguida, foi reduzido às funções originárias pela lei reformadora de 1841. Nesse mesmo ritmo de mudanças, ressurgiu o cargo de delegado em 1841, então extinto pela lei processual penal. Criou-se o de subdelegado e a estes e ao chefe de polícia conferiu-se o poder pleno no processo criminal.

Hiatos muito claros apresentam-se aqui: a) os ideais da Carta Política de 1824 foram desconsiderados no Código Criminal de 1830, minimamente absorvidos no Código de Processo Criminal de 1832, e rechaçados por completo com a Lei Reformadora n. 261 de 03 de dezembro de 1841; b) a loquacidade legislativa era evidentemente inconciliável com o parco acesso da população e das autoridades aos ditames legais, de modo que as aspirações democráticas ou não dessas normas pouco influíam na rotina agastada e cruenta do sempre repulsivo processo penal. Os autos vão demonstrar isso.

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