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Apesar da vida pacata, a população encontrava meios de se divertir. A rua era o local onde mais fácil se podia divertir, mas, no interior das casas, vendas, tavernas, estalagens também havia diversão. Nos dias santificados, havia grande oportunidade de divertimento para toda a população. Essas festas em geral eram muito concorridas. Nelas se misturava o sagrado com o profano. Bebidas e comidas, eram oferecidas em rituais sagrados, como as procissões.

Os autos criminais oferecem bons indícios dos divertimentos e das festas ocorridas na cidade de Vitória, assim como possibilitam verificar que muitas vezes nessas festas aconteciam muitas brigas e confusões.

Estava ocorrendo uma procissão na Rua do Egito, no Centro de Vitória. Na verdade, tratava-se de uma comemoração de Dia Santo, que foi finalizada com uma procissão. Ao regressar, Manoel Pinto dos Remédios tomou conhecimento da agressão de Manoel Thomas de Aquino Cabral contra Thereza Maria Pinto e Vitória Esmenia do Sacramento.206

As festas religiosas ocorriam com muita frequência. John Luccock,207 viajante que percorreu o Brasil no início do século XIX, diz que existiam mais de cem dias santificados, quando havia comemoração e festa no Brasil de então.

205 KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e

Terra, 1994.

206

Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Auto 28, Caixa 654. Ano de 1860

207 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia;

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Certamente as festas religiosas, que eram mais numerosas, possibilitavam grandes momentos de sociabilidade e de divertimentos. Ricos e pobres, apesar das diferenças, divertiam-se. Elton nos fala dessas festas, que muitas vezes eram palco de grandes confusões:

Quando da realização de uma dessas procissões, isto é a de 8 de setembro de 1876, surgiu uma desavença entre o vigário Mieceslau Ferreira Lopes Wanzeler e o povo, já que o padre queria que fossem a naveta e o turíbulo conduzidos por um seu escravo. A Irmandade do Santíssimo Sacramento, constituída das pessoas mais gradas da cidade, protestou contra tal deferência, sob a alegação de que o escravo não podia acompanhar aquela procissão, e, caso o vigário insistisse em mantê-lo ali, o andor da padroeira não sairia da igreja. A Irmandade de São Benedito, diante disso, retirou-se do templo, enquanto a da Boa Morte faz coro aos protestos dos irmãos do SS. Sacramento, todos revoltados com a atitude „impensada‟ do vigário, visto que o mesmo, repetiam eles, não sabia distinguir brancos de pretos, tratando-os arbitrariamente, em pé de igualdade. O vigário, contudo, não se deu por vencido, e, deixando a custódia que trazia nas mãos, sob o pálio, declara, em rápidas e contundentes palavras, que, a partir daquele momento, estava alforriado o escravo sendo que, em decorrência dessa declaração, pôde o mesmo acompanhar o préstito, assim como queria o padre, ainda que muito a contragosto dos demais acompanhantes.208

Embora brancos, negros, pobres e ricos participassem conjuntamente das festas, havia clara distinção do lugar de cada estrato da sociedade nesses acontecimentos.

Diz o padre Antunes Siqueira que, nessas festas, a algazarra tomava conta da cidade, e tambores e zabumba faziam um barulho ensurdecedor. Nos festejos populares, a autoridade maior da província convidava empregados públicos, a oficialidade e o clero nas salas do palácio do governo. No lado de fora, “[...] os batalhões da guarda nacional com suas bandas de música [...]”209

faziam bonitas evoluções. À noite era oferecido um lunch, e os edifícios públicos e particulares eram iluminados, terminando esse momento com um baile, para o qual eram convidados membros dos estratos mais privilegiados da localidade. Essas festas eram muito concorridas. O povo se divertia nas ruas e nas praças, assistindo aos espetáculos de som e de luzes com o barulho e o burburinho que se faziam presentes.

208

ELTON, Elmo. Velhos templos de Vitória & outros temas capixabas. Vitória: Conselho Estadual de Cultura, 1987. p. 24-25.

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O depoimento de Maria Joaquina do Sacramento, costureira, referente à querela entre Theodoro, escravo de D. Antonia Maria da Conceição, e Apolinário, escravo de Sebastião Fernandes de Oliveira, faz referência aos festejos que ocorriam na Capital da província. Disse que “nada ouviu a respeito da desordem, nem presenciou barulho, por estar com a porta de sua casa fechada e a rua em grande burburinho por causa do grande divertimento no Rosário [Igreja], por causa da Festa de São Benedito”.210

Pode ser que Maria Joaquina tivesse dito que nada ouviu por estar incomodada em ter que prestar depoimento, mas o que nos interessa aqui é que, com a ocorrência das festas, a cidade fervilhava e o barulho não devia ser pequeno.

Além das festas, havia outros divertimentos possíveis para a população de Vitória, como jogar baralho, beber, conversar, cantar e dançar. Essas reuniões para divertimentos e distração às vezes terminavam em desavenças, sobretudo quando ocorria ingestão de bebidas alcoólicas.

Muitas vezes as bulhas, os desentendimentos, surgiam por “[...] por brincadeiras mal compreendidas [...] ou disputas amorosas entre amigos, [que, quando] embriagados, acabavam resultando em ferimentos [...]”.211

Foi numa tarde de sábado que Antonio Alves Resende e Manoel Pinto Pereira (irmão da vítima) agrediram Jacinto Pereira Barcellos e a sua irmã que foi em seu socorro. A briga se deu após os réus e a vítima terem ingerido muita bebida alcóolica e se divertido muito na casa de Manoel.212

Era madrugada de sábado no ano de 1853, quando o escravo Domingos, que vinha de um baile onde estava se divertindo, certamente aliviando o cansaço do trabalho pesado que tinha que exercer cotidianamente, foi agredido pelos irmãos João José Rodrigues, José Mendes da Silva e Joaquina. Além de esmurrá-lo e jogá-lo no chão, feriram-no com uma facada.213 Esses fatos narrados nos fazem refletir que havia múltiplas possibilidades de escravos e trabalhadores pobres se aproveitarem de seus instantes de folga para se divertir, embebedar e brigar. Fica evidenciado também que pobres livres e escravos tinham possibilidades de grande mobilidade, questão que trataremos a seguir.

210 Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Auto 26, Caixa 654. Ano de 1860. 211

RESENDE, 2008, p. 55.

212 Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. Auto 3, Caixa 646. Ano de 1853. 213 Arquivo Público do Estado do espírito Santo. Auto 3, Caixa 647. Ano de 1853.

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Vitória era uma cidade urbanizada, embora não fosse de grande proporção, e requeria trabalho de escravos e pobres livres para o abastecimento de gêneros alimentícios, ou para a realização de ofícios manuais, o que permitia a mobilidade constante desses segmentos sociais. Falando sobre a questão dos escravos, Enidelce Bertin diz: “O meio urbano em muito favoreceu as articulações dos escravos porque ao atrair indivíduos de vários pontos da província criava uma mobilidade para os cativos [...]”.214

Sobre esse tema, Roberto Guedes215 afirma que a mobilidade social foi presença marcante na vida dos escravos no Brasil. Tal explicação, para esse autor, seria que o tipo de ocupação do escravo urbano exigia maior circulação e muitas vezes distanciamento do seu senhor. No Espírito Santo, não foi diferente. Os escravos urbanos se locomoviam com intensidade, conforme nos apontam os estudos de Campos,216 Ribeiro217 e Merlo.218

Escravos se comunicavam e se reuniam com outros escravos (parentes ou não) e ainda com homens livres, mas pobres, segundo Ocerlan Ferreira Santos e Washington Santos Nascimento, para se divertir e beber cachaça, muitas vezes incentivados por seus senhores, numa maneira de atenuar a dureza do cativeiro, evitando revoltas e fugas”.219

Não somente escravos se movimentavam na província, como forros e brancos empobrecidos tinham que recorrer à mobilidade espacial como forma de garantir as suas sobrevivências. Referindo-se a esses segmentos sociais, Sheila de Castro Faria diz que, desde tempos coloniais, no Brasil,

O homem pobre [permaneceu] por muito pouco tempo no mesmo lugar. Sua característica marcante é a extrema mobilidade. Mover-se em busca de melhores condições de sobrevivência, tornava-se uma atitude previsível e esperada [...].220

214 BERTIN, Enidelce. Alforrias na São Paulo do século XIX: liberdade e dominação. São Paulo:

Humanitas/FFLCH/USP, 2004. p. 105.

215

GUEDES, Roberto. Egressos do cativeiro: trabalho, família, aliança e mobilidade social: Porto Feliz, São Paulo, 1798-1850. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2008.

216 CAMPOS, 2003. 217

RIBEIRO, 2012.

218

MERLO, 2008.

219 SANTOS, Ocerlan Ferreira; NASCIMENTO, Washington Santos. Dimensões da vida escrava na Imperial

Vila da Victoria nos últimos anos da escravidão (1870-1888). Politéia: História e Sociedade, Vitória da Conquista - Bahia: Editora Uesb, v. 10, n. 1, p. 107-130,2010.

220 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:

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Imigrantes em geral faziam parte dos estratos menos privilegiados da população de Vitória. Dentre os imigrantes, portugueses e italianos foram maioria na segunda metade do século XIX. Imigrantes alemães e italianos que vieram preferencialmente para os núcleos coloniais se deslocavam para a cidade de Vitória, na expectativa de minorar o sofrimento a que eram submetidos nos núcleos coloniais. Não foi incomum esses imigrantes serem enganados pelas promessas que lhes foram feitas, quando resolveram imigrar para o Brasil. O não pagamento de diárias a que tinham direito por trabalharem para o governo na abertura de estradas, o recebimento de lotes em locais impróprios para o cultivo agrícola (terrenos pantanosos ou cheios de pedra), a demarcação de áreas onde não existia água corrente, o não recebimento dos implementos agrícolas, entre outras, foram razões para que alguns imigrantes se retirassem dos seus lotes e buscassem, na Capital, oportunidades de trabalho, conforme nos aponta Renzo M. Grosselli.221

Mas não somente vieram para o Espírito Santo, imigrantes camponeses, embora, como diz Regina Hees Carvalho,222 estes eram os que preferencialmente eram recrutados. Alguns chegavam, inclusive, a mentir quanto à sua ocupação principal. Nara Salletto223 diz que os imigrantes urbanos não eram numerosos, mas existiam e exerciam diversas profissões, no comércio, em atividades manuais (pedreiros, pintores, serralheiros, artesãos) ou, ainda, em trabalhos domésticos. Nem todos os imigrantes eram pobres; alguns vieram com recursos financeiros e montaram seu negócio. Alguns poucos se dedicavam ao comércio de exportação e importação. Vitória e sua dinamicidade econômica possibilitavam que esses imigrantes encontrassem aqui possibilidades de trabalho como forma de garantir a sua sobrevivência.

221

GROSSELLI, Renzo M. Colônias imperiais na terra do café: camponeses trentinos (vênetoe e lombardos) nas florestas brasileiras, Espírito Sanro, 1874-1900. Vitória: Arquivo público do Estado do Espírito Santo, 2008.

222 CARVALHO, Regina Hees. Santa Maria de Jetibá: uma comunidade teuto-capixaba. 1978. 130 f.

Dissertação (Mestrado em História Social)-Programa de Pós–Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia Letras e História da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1978.

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