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CAPÍTULO 3 ANCESTRALIDADE GENÉTICA E AUTOCLASSIFICAÇÃO FENOTÍPICA EM QUILOMBOS CONTEMPORÂNEOS

3.1.1 O componente étnico-racial

A categorização dos humanos em grupos étnico-raciais é um dos temas mais controversos. Embora seja amplamente utilizada em estudos científicos, tanto em epidemiologia quanto na área biomédica, seus significados são frequentemente confundidos ou mesmo desconhecidos. Existem diferentes conceitos utilizados nessa categorização, tais como raça, etnia, etnicidade e ancestralidade, contudo, considerando as implicações biológicas em uma pesquisa, particularmente na área médica, a aplicação desses conceitos pode acarretar uma investigação simplista dos fatores biológicos, sociais ou políticos de um determinado grupo populacional (Rebeeck e Sankar, 2005; Wagner et al., 2016).

A definição clássica de raça, tal como é aplicada em nossa espécie, é baseada em fenótipos como cor da pele, características faciais, forma do nariz e textura do cabelo que diferem claramente quando comparamos os nativos de diferentes regiões do mundo. Porém, essas são características complexas e, portanto, dependentes de interação entre componentes genéticos e ambientais. Com relação ao componente genético, as regiões genômicas responsáveis por esses traços representam uma porção ínfima do genoma humano (Pena, 2005). Dessa forma, a variabilidade de pigmentação da pele, tanto intrapopulacional como interpopulacional, principalmente entre continentes, depende da associação genótipo- ambiente, sendo que essa diversidade apresentam alta correlação com a localização geográfica das populações (Stokowski, 2007) e incidência de raios ultravioleta (RUV) (Walter, 1971). No entanto, na espécie humana, as características de natureza sócio-culturais também devem ser levadas em consideração (Salzano, 2007; Stevens et al., 2015). De fato, raça é uma construção social que prevalece em nosso meio devido à identificação dos traços fenotípicos mencionados, porém a variação humana tende a ser clinal e definida por variações contínuas nas frequências gênicas entre os continentes e não por um modelo taxonômico-racial em categorias (Madrigal e Barbujani, 2007; Wagner et al., 2016).

O termo etnia se estrutura de forma mais ampla que o termo raça, pois inclui o biológico enfatizando a noção de identidade do grupo. Dentro de cada um dos grupos continentais existe um numero variável de etnias, com suas características próprias como

71 cultura, religião, hábitos, estilo e história de vida, língua, padrões econômicos e sócio- ecológicos (Santos, 2010; Silva, 2010). Já o termo etnicidade incorpora variáveis culturais, comportamentais, sociais, religiosas e linguísticas, além de diferenças geográficas, sociais e biológicas são abarcadas pelo termo (Rebeeck e Sankar, 2005). Um ponto relevante desse conceito é que ele sempre se baseia na autoclassificação, mostrando, geralmente, uma ligação a um determinado território, o que, de fato, destaca a identidade de um determinado grupo (Silva, 2010).

O conceito de ancestralidade se baseia na categorização de grupos populacionais com diferentes origens geográficas e pode ser confirmada por meio de marcadores genéticos que, por sua vez, mostram frequências gênicas distintas entre esses grupos (Rebeeck e Sankar, 2005; Yu et al., 2012). Ressalta-se que todos esse conceitos estão sempre sendo revisados em função das necessidades sociais, culturais, históricas e dos avanços da ciência (Silva, 2010).

É clara a controvérsia na categorização dos grupos populacionais, em especial quando se considera populações miscigenadas distribuídas no mundo como os latino-americanos, os Afro-americanos e hispanos nos Estados Unidos, os caribenhos (origem africana, europeia e nativo-americana), os caboverdianos na África (origem africana e europeia), os coloured na África do Sul ( origem europeia, africana e indiana), as populações da Ásia Central, como os kazakos e uigures, que resultam da miscigenação entre asiáticos ocidentais e orientais, dentre outros (Tarazona-Santos et al., 2016). Em geral, a autoclassificação fenotípica é a forma mais utilizada para captar as informações sobre o componente étnico-racial, destacando tanto as características morfológicas e a cor da pele, como ocorre no Brasil, quanto a ancestralidade geográfica, como ocorre nos Estados Unidos (Alves et al, 2005; Stevens et al., 2017).

A autoclassificação fenotípica vem sendo muito utilizada, porém há grandes limitações, em especial com relação aos métodos de coleta de informações e estimativas, que podem variar com a época assim como com o contexto social. Correntemente a autoclassificação pode não corresponder à classificação étnico-racial realizada por terceiros (Perreira e Telles, 2014). Além disso, tem-se variações no desenho do levantamento, redação e conteúdo das perguntas, cobertura do levantamento em áreas de difícil acesso, falta de capacitação dos entrevistadores, dificuldade de comunicação e participação dos indivíduos a serem entrevistados (Ánton e Del Popolo, 2009).

Apesar das limitações operacionais, o interesse de diversos países latino-americanos na investigação da composição étnico-racial por meio de censos demográficos tem aumentando de forma significativa. Entre 1970 e 1980 estavam disponíveis apenas alguns

72 dados isolados, enquanto que o volume de dados disponíveis aumentou significativamente, sugerindo que esses países, em especial, têm tomado consciência da participação desses grupos na organização da sociedade (Antón e Del Popolo, 2009).

De acordo com os dados oficiais de cada país e considerando as limitações dos métodos empregados na estimativa do componente étnico-racial, pode-se afirmar que os afrodescendentes estão dispersos por todos os países latino-americanos, com elevadas proporções no Caribe, onde pode-se observar países com 97,4% (Jamaica), 95% (Haiti) e 90% (Barbados) de afro-descendentes (Cardim e Dias-Filho, 2011). O Brasil e Cuba alcançavam uma proporção de 45% e 35 % de afro-descendentes, respectivamente, Colômbia e Equador, 11% e 5%, respectivamente, e o restante dos países avaliados, menos de 2% (Antón e Del Popolo, 2009). O Quadro 3.1 mostra a diversidade de perguntas associadas à autodeclaração étnico-racial em censos demográficos de países latino americanos, envolvendo desde aspectos físicos a socioculturais.

73 Quadro 3.1 Perguntas associadas à autodeclaração utilizadas em censos demográficos de países latino

americanos. (Fonte: Ánton e Del Popolo, 2009)

País (data) Pergunta Categorias

Brasil (2000) Qual a cor da sua raça? 1. Branco, 2. Negro,3. Pardo, 4. Amarelo, 5. Indígena

Colômbia (2005) De acordo com sua cultura, traços físicos do seu povo...você

se reconhece como?

1.Indígena, 2. Rom, 3. Do Arquipélago de San André e Providencia, 4. Palenquero de San Basilio, 5. Negro, mulato, afrocolombiano, afrodescendente, 6. Nenhuma das anteriores Costa Rica (2000) Pertence a qual cultura? 1.Indígena, 2. Afrocostarricense

ou negro, 3.China, 4.Nenhuma das anteriores

Cuba (2000) Qual a cor da sua pele? 1. Indígena, 2.Negro, 3.Mestiço ou mulato

Equador (2001) Como se considera? 1. Indígena, 2.Negro

(afroequatoriano), 3.Mestiço, 4.Mulato, 5.Branco, 6.Outro El Salvador (2007) a) O que você é?

b) Se é indígena, a que grupo pertence?

a) 1.Branco, 2.Mestiço (branco com indígena), 3. Indígena, 4.Negro, 5.Outro

b) 6. Lenca,7. Kakawira (Cacaopera), 8. Nahuea Pipil, 9. Outro

Guatemala (2002) A que grupo étnico pertence? São listados 22 povos indígenas e outras categorias afro-indígenas entre outras

Honduras (2001) A que grupo populacional pertence?

1.Garífuna, 2.Negro inglês, 3.Tolupán, 4. Pech (Paya), 5. Misquito, 6. Lenca, 7.Tawahka (Sumo), 8.Chorti, 9. Outro Nicarágua (2005) Se considera pertencente a um

povo indígena ou a uma etnia?

A qual dos seguintes grupos indígenas ou etnia pertence?

1. Sim, 2. Não

São listadas 13 categorias de povos indígenas,

afrodescendentes e outros grupos étnicos

74 O primeiro censo da população brasileira foi realizado em 1872, ainda durante o Império, e em 1890, já sob regime republicano, foi realizado o segundo censo demográfico do país. A partir desse ano, o censo se tornou decenal, com exceção das interrupções ocorridas em 1910 e 1930 (Figura 3.1). A autoclassificação pelas cores de pele foi estabelecida nos censos a partir de 1950 – branco, preto, pardo, amarelo (Piza e Rosemberg, 1999).

Além de contabilizar a população, os censos nacionais são importantes porque estabelecem e institucionalizam categorias que podem vir a representar modelos para organização social e estruturação das relações étnico-raciais (IBGE, 2011). No último censo por exemplo, pela primeira vez desde o século XX, a população autodeclarada branca deixou de compor a maioria da população brasileira: 47,7% se autodeclararam da cor branca, 43,1% parda e 7,6% preta, além de 1,1% amarela e 0,4% indígena. A maior proporção de indivíduos autoclassificados como “pretos” ou “pardos” é observada na região Nordeste e a menor, na região Sul (IBGE, 2010; Petruccelli, 2012).

Figura 3.1 Distribuição percentual da população branca, preta, parda, amarela e indígena na série histórica dos

censos modernos decenais – Brasil – 1940-2010.

Fonte: http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=10&op=2&vcodigo=POP106&t=populacao-presente- residente-cor-raca-dados

Dados históricos e genéticos mostram que a população brasileira é uma das mais heterogêneas do mundo, resultado de um processo intenso de miscigenação entre três grupos parentais principais: ameríndios, africanos subsaarianos e europeus, em sua maioria, ibéricos (Salzano e Sans, 2014; Moura et al., 2015). Entretanto, a distribuição desses três grupos ao longo do território brasileiro não ocorreu de forma homogênea, ou seja, a proporção desses grupos populacionais difere significativamente da região geográfica (Salzano e Sans, 2014).

75 As discussões sobre a miscigenação, que foram iniciadas por volta de 1850, tinham como foco o "branqueamento" da população brasileira e o objetivo era um processo de migração seletivo direcionado à discussão da política de imigração. O fluxo migratório voltado para esta estratégia ocorreu principalmente entre 1880 e 1920, sendo que a maioria dos imigrantes europeus era proveniente da Itália (Seyferth,1996). Com o intuito de atingir seus objetivos, o Estado brasileiro impôs restrições à entrada de imigrantes no país, sendo absolutamente restrita a entrada de imigrantes negros, enquanto os asiáticos tinham uma cota anual de 3% dos imigrantes ingressos no país. A imigração europeia foi incentivada com uma série de propostas de estímulo à migração e política de colonização, aumentando assim a possibilidade de "branqueamento" da população brasileira (Ramos, 1996).

De acordo com Callegari-Jacques e Salzano (1999), dos imigrantes que chegaram ao Brasil entre 1500 e 1972, 58% eram europeus, 40% africanos e 2% asiáticos. Estimativas mostram que de 1820 a 1975, tenha entrado no Brasil 6 milhões de europeus (70% portugueses e italianos). Além disso, podemos citar a migração de japoneses para os Estados de São Paulo e Pará e espanhóis, alemães, sírios e libaneses, dentre outros, para diversas regiões do país (IBGE, 2010; Salzano e Sans, 2014).

Mesmo após cinco séculos de mistura desses grupos populacionais, ainda é possível encontrar grupos humanos relativamente isolados que conservam muito das características das populações ancestrais a exemplo das comunidades quilombolas e tribos indígenas, principalmente por conta do isolamento de áreas geográficas e dos casamentos endogâmicos. Tal situação demonstra que a espécie humana, assim como muitos animais têm uma tendência a viverem em agrupamentos (isolados ou semi-isolados) (Salzano e Freire-Maia, 1970)