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3 OS GÊMEOS NO BRASIL

3.8 Comportamentos dos pais dos Gêmeos

Uma das preocupações do início deste trabalho era se poderia oferecer o caruru ou não numa casa católica que se tem gêmeos.

Ao realizarmos a pesquisa percebemos, como assinalado, que muitas pessoas misturam as religiões sem saber. Algumas fazem isso porque, conscientemente buscam proteção tanto nos santos quanto nos orixás. Outros o fazem porque todo mundo faz ou o fazem porque virou moda ou fato cultural no seu hábitat. Outros ainda não fazem porque, conscientemente, querem permanecer fiéis à sua religião. E outros ainda não o fazem por terem medo ou dúvida.

Por isso, depois da pesquisa, consideramos adequado relatar somente as experiências de dois casais, um deles paroquiano de Mogi das Cruzes. Eles são membros das nossas pastorais e ministros da Eucaristia. Eles não oferecem caruru. Neste relato serão identificados como A. O outro casal é católico também. O marido já foi ogan de uma casa de Candomblé em Salvador e oferece conscientemente o caruru por ser pai de gêmeos. B será a sua identificação.

1. Como vocês receberam a notícia de que vocês iam ser pais de gêmeos?

A. No momento que recebemos a notícia, pensamos que era brincadeira do médico. Com exame, percebemos que era verdade. Logo, começamos a nos perguntar: Como, por que nós e por que não outro casal?

B. Houve preocupação ao saber, mas logo nos tranquilizamos porque sabíamos que Deus é grande e os orixás ajudam.

2. Ficaram preocupados em algum momento?

A. Ficamos muito preocupados sim, porque nosso plano era apenas para um bebê e não dois. Sem esquecer que a gente tinha acabado de perder um bebê. Mas tudo tem o seu tempo e o tempo de Deus e se ele nos confiou mais esta tarefa é porque temos capacidade para isso.

B. Ficamos um pouco preocupados porque nós esperávamos um segundo filho, mas logo dois segundos filhos. Mas como dissemos na resposta anterior sabíamos que Deus e os Orixás não nos deixariam.

3. Os partos foram tranquilos? Tiveram algumas dificuldades. As crianças tiveram que ficar mais tempo na maternidade? Diante disso, quais foram as atitudes tomadas?

A. Era já de se esperar algumas dificuldades. Lemos muito e isso era mencionado. Sabíamos que eles iam ficar mais tempo, pois a maioria dos bebês gêmeos nasce muito pequeno pelo fato de dividir o espaço na barriga da mãe. Por isso tem que ficar na maternidade para ganhar peso. Apesar disso, não houve maiores dificuldades.

B. Os partos foram tranquilos. Nós oferecemos o caruru de são Cosme desde o nascimento do nosso primeiro filho e nunca deixamos de oferecer. Por isso pensamos que tudo foi tranqüilo e não teve nenhuma dificuldade.

4. Que comportamentos adotaram?

A. Redobramos a oração. Pois não era tão fácil ver crianças que nasciam depois das nossas e tinham alta com seus pais antes da gente.

B. Nosso costume é de rezar nos momentos bons e ruins. Só que esse acontecimento era muito bom. Por isso agradecemos ao Senhor do Bonfim e fizemos promessa de continuar a oferecer o caruru a são Cosme e Damião.

5. Recorreram à intercessão de alguns santos? Aos orixás Ibeji? Fizeram o caruru?

A. Recorremos sim, à intercessão de Nossa Senhora Aparecida e Santa Rita de Cássia, nossas santas de devoção. Não somos acostumados a pedir a intercessão dos santos Cosme e Damião. Já ouvimos falar e lemos sobre, mas não fizemos nenhum pedido e nenhuma oferenda. Somos católicos, temos muita fé em Deus e com a intercessão de Maria, tudo podemos, por isso não oferecemos o caruru e não misturamos as crenças.

B. Fizemos tudo o que estava nas nossas possibilidades. Porque se os santos te dâo uma coisa, você tem que corresponder com oferendas. E como já oferecíamos o caruru e fizemos de novo a promessa, agora não podemos falhar. Temos que cumprir esse ritual que é um dever nosso. Até porque oferecer o caruru é cultura aqui na Bahia, muita gente faz, por isso a nossa obrigação em fazer pela prosperidade dos nossos filhos.

A este casal, perguntei se quando oferece caruru a são Cosme e Damião, pensam que estão oferecendo aos Ibeji? Eles disseram: em geral um representa o outro. O santo representa o Orixá. No mais, na Bahia tem essa junção que os orixás compartilham com os santos. Por isso, os Ibeji são como se fossem Cosme e Damião, santa Bárbara a Iansã, etc”.

Obs. Para Carlos e a mulher, não há nenhum problema pertencer às duas Igrejas. Para eles é normal, mas o que os afasta do Candomblé é o sacrifício de animais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A motivação inicial deste trabalho veio a partir da dúvida da fé de alguns católicos sobre o sincretismo. Dúvida que, de um lado, é de muita gente, mas que somente poucos manifestam. Mas que de outro lado, não incomoda a outros já que muitas pessoas vivem o sincretismo sem preocupação.

Como foi dito anteriormente, muitos se sentem bem em fazer e outros fazem porque todos fazem. Outros, ainda, querem proteção divina ou realização de um milagre e vão à procura sem orientação adequada da parte da Igreja, como no caso da personagem Zé do Burro do filme "Pagador de promessa". Nestes casos, o sincretismo está intimamente ligado ao catolicismo popular. Alias, é bom lembrar que o espaço favorito do sincretismo, na maioria das vezes, é o catolicismo popular onde a vivência da teologia da retribuição se faz concreta com a prática das promessas. Na maioria das vezes porque também no espaço da Igreja oficial vemos muitos católicos sincretizarem.

Para estes cristãos não existe "delimitações de espaço sagrado entre catolicismo e candomblé" e neste tipo de fé, "não há dicotomia entre santo e orixá, entre santa Bárbara e Iansã40". Só que, quando eles vêm à missa professam a fé

católica que diz: "Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra. Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica” (símbolo neceno- constantinopolitano - Catecismo da Igreja Católica, pág. 59). Assim, na prática esquecem o caráter único e indivisível da sua fé como Paulo ensina aos Efésios 4, 5: “Há um só Senhor, uma só fé, um só batismo”. Isso é de lado dos católicos.

Mas do outro lado, das religiões tradicionais africanas, há uma vivência do sincretismo que data do início do período da escravidão no Brasil. O sincretismo começa como a fusão de diferentes cultos ou doutrinas religiosas e com o tempo ele

chega a ser quase uma nova religião41. Com o sincretismo neste nível, devemos

afirmar que ele se torna uma realidade que não se pode mais refazer.

É essa a dificuldade que encontra o manifesto das ialorixás baianas contra o sincretismo de 1983.

Manifesto do Anti-Sincretismo

De acordo com Josildeth Gomes Consorte42, o manifesto reabre a discussão centenária e amortecida e lhe dá um novo vigor colocando-a num novo patamar. Antes do manifesto, este debate era reservado à Academia e a Igreja Católica, mas após isso, o debate ganha um novo grupo de interlocutores, nas pessoas das ialorixás de casas expressivas. As ialorixás do Gantois, do Ilê Axé Opó Afonja, da Casa Branca, do Bogum e do Alaketu, com dois documentos (de 27 de Julho e de 12 de Agosto de 1983), quiseram afirmar a identidade do Candomblé como religião independente e o fim do sincretismo. Este segundo aspecto do documento causou muita polêmica ligada às distorções praticadas pela imprensa da época43.

As duas afirmações das ialorixás dependem uma da outra. A rejeição do sincretismo era essencial para o reconhecimento do Candomblé como religião. Elas rejeitavam o sincretismo porque o Candomblé não é uma seita, uma prática primitiva

44. Elas afirmam que o sincretismo foi criado pela escravidão e submetido aos seus

antepassados e ao afirmar o seu status de religião, elas queriam que a Igreja Católica, o Estado e a Academia mudassem de posição. Com isso, elas buscavam acabar com a submissão do Candomblé pela Igreja e pelo Estado.

41 Idem. p. 7.

42 Professora Titular do departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. PUC-SP.

43 CONSORTE, Josildeth Gomes. Sincretismo ou Antissincretismo? Aspectos Politicos e Religiosos da Construção de uma identidade Negra na Diáspora in Dos yorùbá ao camdomblé Ketu. p. 197.

O Manifesto do Anti-Sincretismo hoje

Em 1992, cerca de dez anos depois da publicação do manifesto, Josildeth percebia que havia algo errado no interior dos terreiros cujas ialorixás assinaram o manifesto pelo fato de que uns permaneciam firmes no anti-sincretismo e outros haviam retomado a vida como antes.

Vinte anos depois, fomos conversar com a mãe Stella (Maria Stella de Azevedo Santos). Na véspera da lavagem de escadaria da Igreja do Bonfim, em 2013, perguntávamos a ela, o que ela pensava sobre o acontecimento levando em conta os vinte anos do manifesto. Ela respondeu: “A voz do povo é a voz de Deus". Continuando com as perguntas, queríamos saber por que razão ela era contra o sincretismo. Ela nos disse que o camdomblé e o catolicismo são duas coisas diferentes. Quando você mistura, não faz nem uma coisa melhor nem outra.

Esta posição de mãe Stella, embora esteja longe da realidade para a maioria do povo de santo, é compartilhada por muitos outros líderes das religiões tradicionais africanas como por exemplo ialorixá Sandra que disse: “fazer o sincretismo é como se fosse misturar óleo e água. Um não serve mais para fritar e outra nem para lavar”.

Considerações

Diante dessa herança cultural e religiosa que se quer um universo extremamente complexo que deixa mais interrogações do que conclusões, queremos apontar caminhos.

O sincretismo, como fusão de diferentes cultos ou como combinação harmoniosa de práticas religiosas provenientes de religiões diferentes, passa pelo crivo do fiel e age no seu ser religioso, fazendo uso de elementos de outras religiões, sem que isso lhe cause conflito de fé. Isto é praticar a fé sincrética de maneira harmoniosa, sem ver nisso algo errado45. Realidade vivida por muitas

pessoas nas nossas comunidades. "Quando um membro do candomblé afirma o seu catolicismo, ele não mente, ele é ao mesmo tempo católico e feiticista, como citado anteriormente. As duas coisas não são opostas, mas separadas46". O sincretismo,

nestes modos, tem conseguido muitas raízes a ponto de ser um fato social na cidade como Salvador, Bahia e outras. Por isso não pode ser ignorado.

Nina Rodrigues disse que o que torna possível o sincretismo é o mesmo sentimento religioso com que os fiéis se dirigem aos santos católicos e aos orixás.

O sincretismo como fusão de crenças pode causar crise de fé sim. Mas isto no âmbito do catolicismo oficial e na vivência da fé comunitária. Por este fato, muitos que têm a consciência da unicidade e da indivisibilidade da sua fé podem ser fiéis e não praticar o sincretismo a exemplo do casal que tem gêmeos e não oferece o caruru.

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Imagens de Ibeji e são Cosme e Damião Imagem 1: uma representação dos Ibeji.

Imagem 2: Uma representação dos Ibeji adotado no Brasil. Esta representação vem provavelmente de um país africano.

Imagem 5: três estatuetas representando os dois gêmeos e o seu irmão mais novo que é Doú.

Imagem 9:Uma representação dos Ibeji já com as suas estatuetas. Esta imagem é de site de Umbanda chamado Povo do Axé.

Imagem 11: Uma imagem representativo dos Santos Cosme e Damião do catolicismo oriental.

Imagem 12: Uma Imagem do candomblé representando são Cosme e Damião mais Doú, no sincretismo, no dia da festa.

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