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CAPÍTULO 2. A DANÇA

2.2. Dança na atualidade: para pensar sua autonomia

2.2.2. Conhecimento e imitação

2.2.2.1. A composição

A imitação, de que nos falou Serres na seção anterior, não tem para ele, necessariamente, o peso da dominação, não significa subordinação. Pode ser acolhida como exercício de alteridade, de generosidade, mesmo nascendo da

oposição. Mantendo o objetivo de trilhar passos na direção de uma epistemologia dancística, pode-se devolver a Serres o conhecimento que a dança produz, e dizer que a imitação não necessita ser, inelutavelmente, por oposição. A cópia pode existir por composição, para composição. A dança ensina isso. Um exemplo: Gil, quando fala da formação de duos, ou mesmo de grupos reitera, a partir da análise do elemento rítmico do movimento, a ideia de que, na dança, compomos mais que nos imitamos por oposição. Ele diz:

Os pares de um duo não entram em relação mimética especular, não “copiam” do outro formas ou gestos; mas entram ambos no mesmo ritmo, nele marcando as suas diferenças. Ritmo que os ultrapassa, uma vez que a diferença entrevista no outro reflui e ressoa sobre o movimento do primeiro, e reciprocamente: assim se forma um plano de movimento que transborda os movimentos individuais de cada um e age como um núcleo de estimulação para os dois, que atualizam outros corpos virtuais, e assim sucessivamente. (GIL, 2004, p.52).

Outro exemplo: um dançarino pode dizer “eu, voluntariamente, permito-me descançar pontualmente do meu próprio movimento para acolher o seu, para compor com você a sua dança; depois, podemos alternar os papéis; e depois, mexidos por esse processo, compormos juntos uma nova dança, que seja nossa.”

A palavra composição é ambivalente. Já nasce como exercício de mistura: é, simultaneamente, ação e resultado, processo e obra. Tem, também, níveis distintos de abrangência, podendo referir-se à constituição própria, disposição das partes que compõem algo, e ao conjunto de conexões desse algo com outros objetos, indivíduos, elementos. No discurso analítico, faz-se necessário separar essas acepções (AULETE, 2013). Na visita que fazemos ao termo, com os olhos da dança, buscamos enfatizar a mistura, ainda que partindo desse mesmo discurso analítico, e acolher a simultaneidade, a reciprocidade de seus componentes como elemento de construção do que, por fim, chamaremos de coerência da obra.

Na perspectiva do corpo, a dança é composição, posto que, como visto na seção 2.2.1., ela tem ação integralizadora do corpo-totalidade, com-põe seus fluxos e partes no e pelo movimento. Na perspectiva da obra, ela é composição estética do movimento, processo em que se aprende a reunir e selecionar, a acolher, a conjugar, a excluir, tudo na perspectiva do movimento expressivo a nascer daí. É meio e fim. Processo e produto. Rumo próprio. Reúne o suave e o duro; acolhe as tensões, os conflitos, não os refuta, mas não sucumbe a eles. Transforma-os. E nesse fazer, potencializa os corpos.

Podemos, então, aprender com a dança e distender o termo, ampliá- lo para fora dos limites da própria arte, e, tal como o rizoma, compreender a composição não como um modelo mas como um mapa, como processo mais amplo que o modelo, que atua sobre ele, e assim incorpora a própria oposição.

Esse mapa se constrói no percurso, e há uma continuidade de fundo que o mantém. Assim como no corpo-totalidade, que tem no pré-movimento essa continuidade de fundo, na dança, essa continuidade é dada pelo “plano de movimento que transborda os movimentos individuais” de que nos falou Gil logo acima, transbordo que entendemos como ultrapassando o próprio dançarino e sua personalidade. Serres também nos auxilia nessa construção. Apoiando-se na narrativa mitológica – Serres compara as formas utilizadas por Ulisses e Orfeu para enfrentarem o canto mortal das sereias40 – ele enfatiza o caráter de mistura da composição, onde tensões são acolhidas e simultaneamente, um contínuo de fundo as mantém juntas. A esse contínuo de fundo ele chama harmonia, e diz

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Ulisses, em sua volta de Tróia, é advertido sobre o perigo do canto das sereias. Protege seus marujos desse canto tapando seus ouvidos com cera, impedindo-os, assim, de ouvi-lo. Mas, curioso em conhecer tal canto, pede que o amarrem ao mastro do navio, de forma a ser impedido de sucumbir aos encantos, sem deixar de ouvi-lo. Já Orfeu, diferentemente, enfrenta as sereias com sua música. Acolhe o canto-ruído delas e compõem com ele. Arrisca-se a anular-se, como nos disse Rodrigues (2008), mas consegue salvar-se compondo um novo canto.

A composição enfrenta o ruído das feras e inventa a harmonia na vizinhança do canto delas; a música produzida conserva continuamente o traço do que a anuncia ou inaugura, do que a precede, nas gritarias. [...] Ulisses atravessa o estreito uma vez; não jogará outra partida; Orfeu, sim, recomeça: tentará a passagem das Bacantes e não conseguirá: a música se dispersa e desaba no ruído. Ulisses, prudente e calculista, ganha sempre, heróico; Orfeu nem sempre ganha, compositor. (SERRES, 2001a, p.123).

Ele enaltece a harmonia, independentemente do resultado a que se arrisca o artista; a harmonia como prazer (SERRES, 2001a, p.334), como elemento da compoisção e composição como risco, como condição da vida. Ele alerta:

[...] há barulho, o mundo está alastrado de passagens das sereias. [...] Para sair dalí é preciso compor, cantar a cada minuto, nunca deixar de erguer o escudo de harmonia diante da algazarra, inventar uma curva rara, dançante como a proa por entre o marulho das arrebentações, lançar-se à frente de um tempo novo. Orfeu nem sempre ganha e queima suas forças na obra, oferenda musical que desenha seu tempo. Mas expõe-se ao risco de cair bruscamente no ruído. Pois sem os universais da música, sem o seu transcendental, o caos vence, ninguém atravessa o canal. (SERRES, 2001a, p.123- 124).

E, numa crítica à ciência e à filosofia, ele diz: “A ciência supõe um mundo sem ruído. Ela vence.” (SERRES, 2001a, p.123). Já a filosoia precisa aprender a “supor, antes do sentido e da comunicação bem-sucedida, condição para a lógica e a linguagem, uma música que subjugue o ruído, deve inventar, arriscar-se a compor, descobrindo assim um tempo raro.” (SERRES, 2001a, p.124). Acreditamos que a dança possa lhe ser útil nesse aprendizado.

Serres conclui, em defesa da complexidade da composição:

Compreendam o erro estético de submeter tudo a uma lei: aplainar entedia e enfeia, mundo sem paisagens, livros sem páginas, desertos. [...] Ver o espaço exige tempo, não matem o tempo. Evitem o erro simétrico de se contentar com o fragmento. A ausência de narrativa entedia tanto quanto a lei primeira e enfeia ainda mais. Compor exige uma tensão entre local e global, vizinho e distante, narrativa e regra, a unicidade do verbo e o pluralismo não analisável dos sentidos [...]. (SERRES, 2001a, p.244).

A composição assim compreendida, não tem na oposição o seu contrário, mas na decomposição. Deleuze diz:

Cada vez que um corpo encontra outro, há relações que compõem e relações que decompõem [...]. Mas a natureza combina todas as relações em um só tempo. Logo, na natureza, em geral, o que não para é que todo tempo há composições e decomposições de relações. Todo o tempo, pois, finalmente, as decomposições são como o contrário das composições. Não há nenhuma razão de privilegiar a composição de relações sobre a decomposição já que as duas vão sempre juntas. (DELEUZE, 1981).

Dialogando com Deleuze, nos opomos a ele em um aspecto: o fato de a composição e a decomposição andarem sempre juntas, em possibilidade, não é razão suficiente e necessária para que não se privilegie uma ou outra, pontualmente; não apenas a composição, mas uma delas é preciso privilegiar – por certo, por vezes é preciso decompor, quebrar conexões – para em seguida continuar o percurso do mapa-composição. A composição como mapa alonga-se para pensar-se maior que a própria decomposição. A potencialização ou despotencialização que resulta das conexões pode ser um norte na escolha do que privilegiar. Peter Pál Pelbart, ao definir o indivíduo por um grau de potência singular, diz:

Ao sabor dos encontros, vamos aprendendo a selecionar o que convém com nosso corpo, o que não convém, o que com ele se compõe, o que tende a decompô-lo, o que aumenta sua força de existir, o que diminui, o que amplia sua potência de agir, o que reduz. Vamos aprendendo a selecionar nossos encontros e a compor; é uma grande arte essa da composição. Com que elementos, matérias, indivíduos, grupos, ideias, minha potência se compõe, para formar uma potência maior e que resulta numa alegria maior? E, ao contrário, o que tende a diminuir minha potência, meu poder de afetar e de ser afetado, que resulta em tristeza? A tristeza é toda paixão que implica uma diminuição de nossa potência de agir; a alegria, toda paixão que aumenta nossa potência de agir. (PELBART, 2010, p.47- 48).

Esses mesmos questionamentos esta pesquisa faz para a dança: o que aumenta a sua força de existência? O que lhe potencializa? Entendendo-a como

composição de seus elementos intrínsecos (tempo, espaço, qualidade de movimento) e deles com as inúmeras tensões que lhe constituem, uma vez que entendida como autonomia conectada, a dança é, portanto, composição a partir das conexões. É na forma como opera essas conexões que residem suas posssibilidades de potencialização, não no isolamento.

A importância das conexões para a composição em dança, então, torna necessário um treino específico em habilidades conectivas, em enfrentamento de tensões entre os elementos da composição (pré-movimento, domínio dos meios, finalidade da composição, relação com o outro); essa especificidade conduz a outras formas de olhar e compreender o próprio treinamento que talvez se distanciem de algumas formas usuais de treino praticadas por parte da dança contemporânea. Abraçando o pensamento de que a invenção nasce do treinamento, a próxima seção retomará o treinamento em Serres para relacioná-lo à dança, e assim proceder à terceira das análises propostas ao final da seção 2.2..

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