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CAPÍTULO 2. A DANÇA

2.2. Dança na atualidade: para pensar sua autonomia

2.2.1. Corpo-totalidade e dança

2.2.1.1 O pré-movimento

Apoiamo-nos aqui no pensamento de Godard para investigar o pré- movimento. Para ele, esse seria o momento que antecede o movimento visível do corpo, qualquer movimento, não só o da dança. Ele se refere ao modo de enfrentamento do corpo à ação da gravidade, que além das especificidades mecânicas do movimento, trazem elementos psicológicos e expressivos, “mesmo antes de qualquer intencionalidade de movimento ou de expressão. A relação ao peso, à gravidade, já contém um humor, um projeto sobre o mundo. Esse pré- movimento vai produzir a carga expressiva do movimento que iremos executar.” (GODARD, [s.d.], p.13).

Godard enfatiza no pré-movimento sua ação sobre o estado de tensão do corpo, sobre sua organização através dos músculos gravitacionais “cuja ação escapa em grande parte à consciência e à vontade” e que assegura nossa postura.37 Esses músculos são responsáveis pelo equilíbrio em pé e também pelo registro das mudanças ocorridas em nosso estado emocional. “Assim, toda modificação de nossa postura terá uma incidência em nosso estado emocional e, reciprocamente, toda mudança afetiva provocará uma modificação, mesmo que imperceptível, em nossa postura.” (GODARD, [s.d.], p.14).

Para Godard, portanto, o pré-movimento é responsável por acionar os níveis mecânicos e afetivos de sua organização, simultaneamente, e sem que o indivíduo perceba. Mas para o dançarino, essa percepção se torna um desafio.

A cultura, a história do dançarino, a sua maneira de perceber uma situação, de interpretar, vai induzir uma “musicalidade postural” que acompanha ou despista os gestos intencionais executados. Os efeitos desse estado afetivo que concedem a cada gesto sua qualidade, cujo mecanismo compreendemos tão pouco, não podem ser comandados apenas pela intenção. É isso que confere, justamente, a complexidade do trabalho do dançarino... e do observador. (GODARD, [s.d.], p.15).

Godard chama de “fluxos de organização gravitacional” a essa composição da musculatura tônica e o estado afetivo do ser-corpo-humano na constituição do pré-movimento. A princípio, não há tensão de cisalhamento aqui; o pré-movimento constitui a continuidade de fundo, integrativa do corpo-totalidade. A tensão de cisalhamento pode vir a existir entre esse pré-movimento e o movimento de dança que se fará a partir dele. Pois, para Godard, é na distância entre esses dois movimentos, o movimento de dança e o pré-movimento – como a figura e seu

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Os tradutores esclarecem: “Utilizou-se o termo gravitacional, no original gravitaire, para preservar o sentido manifesto pelo autor de interação com a gravidade. Na literatura em português, a musculatura tônica pode ser chamada de musculatura antigravitacional.” (SOTER e PEREIRA, [s.d.], p. 14).

fundo –, que reside a carga expressiva da dança. Quanto menor a distância entre o centro motor do movimento e o centro de gravidade, mais expressividade no movimento dançado. Isto porque, de qualquer forma, o pré-movimento impregna o movimento dançado.

O aparelho psíquico se exprime através do sistema gravitacional e é por seu intermédio que carrega de sentido o movimento, modulando- o e colorindo-o de desejo, de inibições, de emoções. O tônus resistente do sistema gravitacional se instala antes mesmo do gesto, desde o momento em que se formula o projeto de uma ação e, portanto, sem que o indivíduo se dê conta e antes de atingir sua consciência em estado de vigília. É por esta razão que os profissionais do movimento, os dançarinos em particular, sabem que, para melhorar, modificar ou diversificar a qualidade do gesto, é preciso atingir todas as suas dimensões, inclusive o pré-movimento, que somente o acesso ao imaginário permite tocar. (GODARD, [s.d.], p.19).

Ampliando essa análise da relação musculatura tônica-estado emocional, do pré-movimento e movimento dançado, para a análise dos pares ideia e ação, intenção e gesto, é plausível pensar que Serres diria a Godard: também entre ideia e ação há o corpo empoderado; a ideia acionada é sempre outra coisa. Reconhecer o poder do corpo-totalidade é reconhecer que essa passagem – da intenção ao gesto, da ideia a ação, do pré-movimento ao movimento dançado – pode se dar também no sentido contrário, o gesto podendo transformar a intenção, a ação fazendo nascer a idéia, o sentimento. Aqui entram, verdadeiramente, os poderes do corpo e do treinamento, postulados por Serres.

Recapitulando, o pré-movimento, portanto, seria essa primeira dimensão do movimento dançado. E é influenciado por uma primeira esfera de conexão da dança com o mundo, com a vida, que se dá pela inserção do próprio corpo no espaço-tempo do mundo. Essa conexão é basilar, inelutável, e não inviabiliza a singularidade impertinente da dança; ao contrário, lhe alimenta. Depois

se pode falar no centro motor como o ponto de início do circuito estabelecido pelo movimento de dança.

O corpo cria dança a partir de um processo que pode se originar por motivação de qualquer de suas partes: da motricidade, por um movimento que se desdobra; da afetividade, por um sentimento ou emoção que se deseja expressar; da racionalidade, por um conceito que se deseja encarnar e também expressar, são alguns exemplos dentro de uma infinidade de possibilidades e suas combinações. Independente do ponto inicial, o circuito daí estabelecido envolverá o corpo todo, com maior ou menor ênfase em alguns de seus fluxos, ou com diferenças de tensões, a depender da dança que se faz. Em todas elas, um constructo de fluxos, tendo o pré-movimento como plano de fundo, se consubstancia na musculatura, num ato de composição com as diversas partes do corpo e elementos do movimento.

Daí existirem danças tidas como mais formais, por não intencionarem evidenciar aspectos emocionais do movimento; danças mais codificadas, que concentram seus esforços numa especialização padronizada da coordenação motora; danças tidas como expressionistas, que aprofundam, entre outros, aspectos afetivos do movimento etc.. E essas danças assim se fazem em resposta a desejos de seu criador e a seu tempo histórico-cultural. Godard lembra:

Os dançarinos que partilham a experiência social comum ao grupo a que pertencem irão trabalhar com essa experiência como substrato, com suas danças constituindo, alternadamente, expressão ou instrumento de questionamento dessa experiência.

Não existe, no entanto, nenhuma re-gra [sic] linear que permita imaginar que qualquer modificação no espaço social leve, imediatamente, a mudanças reconhecíveis na produção coreográfica. O que se observa são períodos de acumulação de tensões estéticas que podem encontrar uma expressão artística só muito mais tarde, do mesmo modo que uma explosão social também é fruto de acumulações de tensões que num determinado dia, atingem um limite que obriga sua expressão. (GODARD, [s.d.], p.22 e 23).

Como, de fato, o corpo cria sua dança, inscreve-se em sua opacidade e mistério. Há que se dançar ou fruir a dança para saber.38 O que o pensamento e a linguagem verbal que o expressa podem fazer são aproximações.

Independente da motivação inicial da dança, o corpo intensifica a conexão de suas partes e fluxos, dispõe sua estrutura neuro-muscular, ativa sua escuta proprioceptiva, amplia espaços internos e compõe. Compõe com todas essas informações e fluxos, atualizando virtualidades. O corpo cria e nessa criação, expressa-se. Respondendo à primeira das reflexões propostas na seção 2.2., pode- se dizer, pelo visto até aqui, que o corpo-totalidade não é só da dança, mas com ela ele se potencializa, intensifica e se expressa em sua totalidade.

A dança contemporânea tem cada vez mais investigado as formas de conexão desses fluxos no corpo, para assim aprimorar seu fazer. Essa situação é reflexo das próprias transformações do ser-corpo-humano, salientadas por Serres anteriormente (seção 2.1.1.), em conjunto com as transformações históricas da própria dança, por ela mesma estimulada, numa retroalimentação.

Técnicas como contato-improvisação e BMC, o interesse cada vez maior nos processos da cognição, práticas como meditação, yoga, pathwork, ou a própria diversificação de práticas corporais adotadas no treino técnico motriz de muitos grupos de dança (lutas marciais, le parkour, capoeira etc.) evidenciam uma preocupação dos profissionais da dança em aprofundar e diversificar seu conhecimento sobre os mistérios do nascer da dança em seu movimento. No entanto, nos parece que em algumas experiências esse aprofundamento se dá com uma ênfase maior no processo de conhecimento do que na composição da dança, o

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Porque o espectador compartilha com o dançarino, de forma virtual, esse mesmo processo de criação. (Ver GODARD, [s.d.]; GIL, 2004; MENDES, 2010).

quê, ao final, parece não colaborar muito com esse mesmo nascimento. A dança nasce, mas, enfraquecida em sua expressão, parece não vingar.

As reflexões de Alvarenga (2012) instigam o nosso pensamento. Ele aponta, de forma positiva, o crescimento recente (primeira década dos anos 2000) do número de eventos na área de dança, de diferentes formatos – festivais, seminários, encontros, mostras etc. – dando visibilidade a diferentes produções e atraindo um maior público. Mas faz dois destaques: a quantidade de solos e duos, onde os intérpretes são também os criadores, e, em algumas situações, o esvaziamento das plateias. E ele se pergunta como se dá a aproximação do público aos trabalhos de dança, nessas apresentações “esvaziadas”; como seus criadores se colocam nessas situações.

Ainda que Alvarenga trace sua análise a partir dos solos, suas reflexões podem ser ampliadas para outras formações (grupais), acreditamos que sem perda de coerência. Ele lembra que para alguns representantes da dança moderna alemã (Mary Wigman entre eles) a “arte devia prestar tributo à personalidade do artista” (ALVARENGA, 2012, p.3), e, para esse fim, os solos se mostravam eficientes. Essa função da arte parece permanecer na atualidade como uma herança da dança moderna à contemporânea, e encontra nos solos sua evidência. Mas, para Alvarenga, isso se dá com a diferença de que a dança moderna partia de movimentos referenciais da dança reconhecíveis no tempo e avançavam na investigação de sua contínua transformação; já a dança contemporânea feita em grande parte desses solos, radicalizando o tributo mencionado acima, dedica-se mais a uma justaposição de elementos vindos de técnicas corporais mais voltadas a uma abordagem psicológica do movimento, ao auto-conhecimento e expressão (técnicas como Rolfing, Feldenkrais, Alexander, Eutonia, Body Mind Centering),

favorecendo uma vivência “com outras possibilidades de pesquisa e criação de movimentos, ampliando sua criatividade e a busca por uma maior espontaneidade, num intenso trabalho sobre si mesmo, personalizando ainda mais o resultado final de suas criações.” (ALVARENGA, 2012, p.4). Essa análise reforça a nossa concepção de uma dança supermoderna, onde a autonomia adquirida na modenidade, aliada à superambundância de informações do tempo presente (Augé) ao invés de caminhar para uma autonomia conectada, parece distender-se para o isolamento, ou para conexões despotencializadoras. E Alvarenga acrescenta que, ao mesmo tempo em que tais práticas permitiram ao dançarino contemporâneo uma descodificação das técnicas de dança mais dominantes até então (bále e alguns códigos da dança moderna), terminaram por criar, em grau menor, novos códigos e clichês.

O que se apresenta, aparentemente, é um processo de composição baseado fortemente na satisfação pessoal do dançarino-criador na expressão pelo movimento, e que não leva em conta de forma mais consistente, elementos outros necessários à composição coreográfica, e que irão lhe dar coerência. Como resultado, são levados à cena processos experimentais, experiências investigativas, etapas de um procedimento ou mesmo as ferramentas utilizadas pelo criador. E Alvarenga (2012, p.7) pergunta: “Até que ponto interessa a uma plateia os níveis e processos de elaboração, por mais refinados que sejam, da criação a ser fruída?”

Em nossa compreensão, numa análise abrangente, entre esses elementos necessários à composição estão, a princípio: a) o esforço pela percepção do pré-movimento, que condiciona nossos “projetos sobre o mundo” (GODARD) e talvez, por esse esforço, percebermos a distinção entre o tributo a nossa personalidade e o “estar disposto a ser novamente ninguém” que nos propôs Rodrigues na seção 1.2.; b) o domínio dos meios, do modus operandi da dança, e

suas relações com os fins pretendidos; c) a preocupação estética com o sentido, a finalidade e d) o outro; esse outro sendo dois: o com quem se dança e, também, o outro para quem se dança. E, nesse último caso, esse pensamento é desconfortável, complexo, de difícil defesa, posto que atinge a dança diretamente em seu fundamento artístico mais caro: sua autonomia, sua singularidade impertinente (RODRIGUES). Mas é um esforço possível, necessário e urgente, acreditamos.

Em favor dessa defesa está a dança na máquina. Na cena que ela cria, o público é parte integrante, exigente, participativa. Acompanha os jogos-dança com efusivas manifestações de apreço ou desapreço, de alegria e surpresa. Geralmente é composto dos próprios jogadores que se alternam durante as competições entre fruidores e dançarinos, e dos amigos torcedores. Quando não em competições, muitas danças são feitas para a câmera, para que sejam veiculadas pela Internet. O jogador-dançarino procura o público, e esse exerce influência sobre as ações do próprio jogador, como veremos na seção 4.1.1..

Por hora o importante é destacar que, para este estudo, as conexões da dança com o público e mesmo com outros domínios do saber/fazer humanos (aqui, o jogo e as tecnologias digitais) constituem um segundo nível de conexão distinto do primeiro (do pré-movimento) por seu caráter intencional, deliberado, desejante, podendo, de fato, auxiliá-la em seu processo, e não, inexoravelmente, restringir sua soberania, ainda que esse risco seja real. Lembremos que no funcionamento do corpo-totalidade, o movimento pode agir por sobre o pré- movimento. E esse pré-movimento, por seu caráter integrativo do corpo e condicionante da qualidade do movimento, constitui-se desafio de percepção e categoria de análise necessários à compreensão das conexões que a dança estabelece no seu fazer.

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