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COMPREENDENDO COMO HUMANOS E NÃO HUMANOS RELACIONAM-SE NAS

4. ANALISANDO OS DADOS COLETADOS: O QUE OS PROFISSIONAIS DE

4.3 COMPREENDENDO COMO HUMANOS E NÃO HUMANOS RELACIONAM-SE NAS

A Upsilon é efeito da rede sociomaterial estabelecida entre sala, praticantes, clientes, fornecedores, dados, produtos, projetos, softwares, computadores. Sem todos esses elementos, ela não existiria como uma organização (LAW, 1992). As escolhas sobre quais elementos humanos e não humanos irão compor as práticas de trabalho, como a performance dos projetos, são relacionais e envolvem uma série de agenciamentos, conhecimentos e experiências profissionais, preferências pessoais, meios utilizados para pesquisa das ferramentas e soluções geradas por cada software.

A prática de inteligência ordena o ambiente da Upsilon, reunindo os profissionais da equipe de serviços e outras práticas como a de precificar, gerir, reunir- se com o cliente, analisar e reportar dados. Na prática de precificação, o preço é definido de maneira relacional, em que escopo do projeto, cliente e recursos da empresa são agentes que, associados a uma planilha eletrônica, emitem o valor final a ser repassado ao cliente. Ou seja, a cada novo projeto ou produto, reedita-se esse cálculo, conforme as características do projeto e a situação da empresa, naquele momento, em relação a outras atividades.

A gestão é distribuída e exercida de maneiras distintas, conforme as etapas do projeto. No início, ela costuma ser mais centralizada e, no decorrer do projeto, tende a se tornar mais fluida. Os líderes são emergentes e escolhidos conforme seus

conhecimentos técnicos e sua capacidade de relacionamento com os clientes. As ferramentas de gestão, incluindo as de comunicação e acompanhamento das atividades, e a frequência de reuniões são definidas de modo relacional, englobando preferências pessoais e local onde a equipe está alocada, ativando diferentes actantes.

Reunir-se com o cliente é uma prática negociada conforme as necessidades e o perfil de cada um, envolvendo também o estabelecimento de porta-vozes dos clientes, como costumam ser James e/ou João. As conexões estabelecidas com os clientes, diretamente ou na mediação realizada pelos projetos, oportuniza situações de aprendizagem, que decorrem de entender particularidades e atendê-las, buscando o melhor jeito de satisfazer a demanda. Com isso, o aprendizado não fica restrito a técnicas, ampliando-se para saber como se relacionar.

Analisar dados envolve a interação entre humano e dados, quando ambos constituem-se mutuamente, como fica claro na designação dos profissionais que realizam a atividade – analistas de dados ou cientistas de dados – conforme a autodenominação de Lúcio Machado. Não há analista de dados sem os dados, nem cientistas de dados sem os dados. Tampouco, os dados adquirem significado sem a ação humana. A identidade profissional é constituída heterogênea e hibridamente.

Os analistas coletam dados, assim como os profissionais de tecnologia, conforme o escopo do projeto, ou trabalham com os dados disponíveis, escolhendo, para elaborar os relatórios, aqueles que melhor respondem às perguntas levantadas pelos clientes. Ao associar-se com os dados, os profissionais geram valor comercial para a empresa. O dado pode, porém, impor restrições de coleta, de design, exigindo do analista ou do profissional de tecnologia a atualização de saberes ou o desenvolvimento de novos para lidar com estas reservas.

Tendo escolhido os dados que serão apresentados aos clientes, os analistas trabalham junto ao design para que as informações fiquem mais apresentáveis, mais fáceis de ler, mais bonitas. No trabalho de design, a preocupação estética com os dados torna-se mais evidente, mas não se limita a isso, pois envolve correções gramaticais e, às vezes, questionamentos sobre o sentido atribuído aos dados pelo designer.

A prática de reportar os dados envolve um trabalho conjunto entre analista e designer, no qual ambos compartilham saberes para tornar o relatório útil e esteticamente agradável. O formato final do relatório é resultado da rede estabelecida entre os profissionais, o cliente, os requisitos de projetos e os dados.

Com base nestas características, praticar inteligência constitui uma unidade, um conjunto de atividades da equipe de serviços. Embora persista no tempo como a maneira usual de fazer as coisas, que é repassada para os novos entrantes, as atividades mudam a cada nova reprodução. O relatório emitido mensalmente para a mesma empresa, por exemplo, pode parecer sempre igual, no entanto é performado pelos dados e pelos pequenos ajustes que podem se fazer necessários.

Essa prática é reconhecida socialmente pelos praticantes que, mesmo não compartilhando da mesma definição de inteligência, visto que a empresa não exige isso de seus colaboradores, buscam compreender a ‘dor’ do cliente e atender suas necessidades. A compreensão do conceito de inteligência não ocorre de forma explícita, mas tácita, à medida que os praticantes engajam-se na atividade e vivenciam o que é a inteligência posta em ação. O modo de fazer isso é adaptável, os meios são flexíveis, contudo o resultado deve acatar as solicitações dos clientes, essa é a principal regra.

Estes comentários acerca da prática de inteligência remetem aos quatro aspectos das práticas expostos por Gherardi (2006) quanto ao aspecto holístico e qualitativo (unitário), ao temporário, à questão da legitimidade e ao modo de ordenamento. Além disso, demonstram o caráter sociomaterial das práticas (GHERARDI, 2012), tendo em vista que a inteligência é performada por diversos dispositivos tecnológicos, como planilhas e softwares contidos nos computadores, que, embora sejam empregados para facilitar o trabalho, também podem atrapalhá-lo quando falham ou não fornecem as informações solicitadas.

Relacionar-se com os dados, buscar novas formas para coletá-los, relacionar-se com o cliente, fazer as perguntas corretas para entender as demandas, ouvir acidentalmente sobre o projeto do colega e, com base nisto, buscar entender sobre o que ele está falando, são aspectos decorrentes das práticas cotidianas, que evidenciam o knowing-in-practice, ou seja, a aprendizagem que ocorre no dia a dia de trabalho (GHERARDI, 2006, 2012; NICOLINI; GHERARDI; YANOW, 2003; ORLIKOWSKI, 2002), como exemplifica Lúcio Machado:

um pouco é com certeza no batente. A gente vai aprendendo. Até se me perguntassem há um ano atrás o que é um ad hoc eu ia ficar: ahn? Não ia faze a menor ideia. Mas à medida que novos projetos vão aparecendo, na volta, a gente acaba escutando os nossos colegas falando sobre os projetos.

Na precificação, é preciso saber os requisitos do projeto para prever custos e tempo de realização, às vezes lidando com falta de objetivos claros por parte do cliente. Na gestão, é preciso saber como organizar os colaboradores nos projetos de modo que

seus saberes complementem-se e, com isso, agreguem maior valor ao serviço. Ao lidar com o cliente, é necessário ter empatia para entender sua necessidade e saber como fazer perguntas que definam melhor o escopo, é requerido saber ouvir e questionar.

Para analisar os dados, é imperativo conhecer as ferramentas e como usá-las; saber separar o que é útil do que não é; saber onde procurar dados. Para reportá-los, é indispensável saber comunicar; saber relacionar-se com o outro (analista e designer); fazer os dados conversarem; conhecer as preferências do cliente ao ler os relatórios (se ele prefere informações quanti ou qualitativas, por exemplo); identificar como atendê- las.

A relação diária entre os colaboradores é fonte de aprendizagem, pois seus saberes são heterogêneos, advêm de cursos, experiências, projetos e contato com clientes de perfis distintos. Embora os conceitos que os reúnem sejam os mesmos, inteligência ou serviços, cada um reedita seus conhecimentos nas situações com as quais se depara. Elas nunca são as mesmas, pois os projetos mudam, os dados mudam e os clientes mudam. A multiprofissionalidade da equipe permite a justaposição de conhecimentos que não permanecem os mesmos, pois são reformulados nas trocas cotidianas, mesmo na ausência de consenso (FENWICK, 2014).

Da rede estabelecida com os clientes e com os projetos emergem inovações como os pilotos do ciclo de produto, proposto por João, ou as inspirações de Vitor, fruto de suas relações com o mercado. Estas relações, bem como as demais citadas nesta seção, evidenciam que a rede da Upsilon ultrapassa seu espaço físico, reconfigurando o que poderia ser considerado interior ou exterior, ultrapassando as concepções topológicas tradicionais (LAW, 1999).

Além da equipe de serviços, a Upsilon é performada pelas práticas da equipe de tecnologia e do Omega, que é apresentado mais adiante, por isso, aqui falo predominantemente da equipe de tecnologia. Em conjunto, as atividades organizativas mencionadas constituem sua tessitura de práticas (GHERARDI, 2012), embora nem sempre serviços e tecnologia andem juntos, dado as particularidades de cada produto ou projeto.

A principal prática que entrelaça a equipe de tecnologia é o desenvolvimento, que engloba práticas de constituir bases de dados; gerir produtos e projetos; combinar metodologias e ferramentas de trabalho, como abordado nas próximas seções. Ela combina conhecimentos técnicos, como os de gestão de projetos. Para desenvolver, os profissionais precisam compreender o problema a ser resolvido e, com base nisto,

escolher as melhores ferramentas a serem utilizadas, por exemplo, para desenvolver a intranet da empresa, gerar um relatório automático ou programar um robô para captura dados.

Entre as ferramentas que performam esta prática estão o aplicativo de gerenciamento visual e as linguagens de programação. A escolha de qual linguagem utilizar é relacional, pois parte de uma busca prévia, por meio de profissionais de referência ou outros meios on-line, para identificar qual a melhor ferramenta para cada tipo de problema.

O saber desenvolvido pelo praticante para usar determinada linguagem, torna-o uma referência, refletida inclusive no nome do cargo que este ocupa, por exemplo desenvolvedor.net. No entanto, novos projetos solicitam o desenvolvimento de novos saberes, que poderão advir de trocas entre profissionais, de cursos on-line ou de treinamentos informais. Geralmente, o praticante parte de um conhecimento inicial, a fim de aprender, à medida que utiliza a linguagem para realizar suas atividades, neste percurso as dúvidas surgem.

Ao optar por determinada linguagem, o desenvolvedor necessita dominar uma série de funções ou comandos para informar ao software o que deve ser feito. A escrita do comando no ambiente de programação precisa ser correta, caso contrário, a ação será executada erradamente, podendo resultar em problemas como bugs, erros de código, que podem levar o software a não funcionar corretamente. Esses erros também são fonte de aprendizagem, pois, ao se identificar onde está o problema, é possível evitar a reincidência.

A prática de desenvolvimento envolve reuniões associadas a uma metodologia de gestão de projetos, inspirada em métodos ágeis de desenvolvimento, mas adaptada as características da equipe. As reuniões são realizadas para definições e para soluções de dúvidas, ocorrendo habitualmente duas vezes por semana, porém variando conforme a sobrecarga de trabalho.

A performance da prática de desenvolvimento é sociomaterial, pois humanos, os desenvolvedores e as tecnologias, como as linguagens de programação e os softwares, relacionam-se no trabalho cotidiano para criar novos softwares e produtos. O usuário, ao se relacionar com problemas e buscar a melhor solução, define a linguagem de programação para resolvê-los e, recursivamente, a linguagem molda a forma como o trabalho será realizado. Ou seja, usuários moldam a estrutura tecnológica e ela determina como os equipamentos serão utilizados (FELDMAN; ORLIKOWSKI, 2011).

Os humanos têm o papel de conectar as tecnologias de modo que elas se complementem para atingir determinado resultado. No exemplo citado anteriormente, sobre a reunião da equipe da Upsilon com o fornecedor, estava-se buscando estabelecer relacionamentos entre o front-end e as APIs para que o software em desenvolvimento funcionasse corretamente. As tecnologias deveriam também se conectar com diversos outros sites e informações disponíveis na internet, para que o analista da empresa cliente pudesse tomar decisões de negócio mais assertivas.

No entanto, nem sempre as tecnologias comportam-se como esperado, perturbando a rotina de trabalho, demonstrando sua agência não humana (CAMILLIS; BUSSULAR; ANTONELLO, 2016; FENWICK; EDWARDS, 2010; LATOUR, 2005). Essas ocorrências podem ser fruto de programações incorretas ou devido a erros de código ou problemas de comunicação entre máquinas, envolvendo tanto associações com humanos quanto entre humanos e com outros não humanos.

Finalizada a apresentação da Upsilon em sua singularidade, a próxima seção é dedicada ao outro campo de pesquisa, a Omicron.