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2. OS GRUPOS, AS RELAÇÕES E A CONSTITUIÇÃO DOS INDIVÍDUOS:

2.1. Compreendendo os seres humanos enquanto seres plurais

Pensar o ser humano enquanto ser social, muitas vezes escapa à nossa reflexão porquanto vivenciamos processos incessantes de naturalização. Destarte, assim como a relação com as técnicas é algo inerente à humanidade, não podemos também nos dissociar da vida social. Ambas estão interligadas.

Vivemos em sociedade, e o ser humano, enquanto gregário por natureza,

[...] somente existe ou subsiste, em função de seus inter- relacionamentos grupais. Sempre, desde o nascimento, o indivíduo participa de diferentes grupos, numa constante dialética entre a busca de sua identidade individual e a necessidade de uma identidade grupal e social (ZIMERMAN, 1997, p. 26).

Seu primeiro grupo natural, comum a todas as culturas, é a família nuclear. A partir daí, inúmeros outros grupos, de formação espontânea ou não, constituirão o indivíduo a partir de vínculos diversos. Desde a sua infância “agrupamentos vão se renovando e ampliando na vida adulta, com a constituição de novas famílias e de grupos associativos, profissionais, esportivos, sociais, etc.” (ZIMERMAN, 1997, p. 27).

Seres plurais, escreveu Hesse (1995, p. 64), “não há nenhum eu, nem mesmo no mais simples, não há uma unidade, mas um mundo plural, um pequeno firmamento, um caos de formas, de matizes, de situações, de heranças e possibilidades”. Apesar do peito, do corpo, serem uno, nossas almas, que nele residem, são incontáveis, pois “o homem é um bulbo formado por cem folhas um tecido urdido com muitos fios” (HESSE, 1995, p.65).

Seguindo esse mesmo viés, Zimerman (1997, p. 27) coloca que

A essência de todo e qualquer indivíduo consiste no fato dele ser portador de um conjunto de sistemas: desejos, identificações, valores, capacidades, mecanismos defensivos e, sobretudo, necessidades básicas, como a da dependência e a de ser reconhecido pelos outros, com os quais ele é compelido a conviver. Assim, como o mundo interior e o exterior são a continuidade um do outro, da mesma forma o individual e o social não existem separadamente, pelo contrário, eles se diluem, interpenetram, complementam e confundem entre si.

Desta forma, “todo indivíduo é um grupo” (ZIMERMAN, 1997, p. 27, grifo do autor). O que nos liga e, assim, impreterivelmente nos leva, ao “plano das redes”, de Bruno Latour, inspirado na noção de “rizoma” trazida por Gilles Deleuze e Félix Guattari.

Rompendo “com a ideia de subjetividade constituída a partir da interioridade do sujeito” (EL KHOURI, 2009, p. 4), Deleuze e Guattari (GUATTARI; ROLNICK, 1996) concebem a nós mesmos como uma pluralidade, uma composição,

[...] renunciando totalmente à ideia de que a sociedade, os fenômenos de expressão social são resultante de um simples aglomerado, de uma simples somatória de subjetividades individuais. [...] é a subjetividade individual que resulta de um entrecruzamento de determinações coletivas de várias espécies, não só sociais, mas econômicas, tecnológicas, de mídia, etc. (GUATTARI; ROLNICK, 1996, p. 34). O primeiro princípio sobre a produção rizomática trata da conexão, e mostra que “um ponto pode se ligar ao outro independente de um pertencer a uma linhagem e o outro a uma outra, não existindo no rizoma nenhum esquema de oposição ou binaridade que não possam ser conectados” (FERREIRA, 2008, p. 34). Suas entradas múltiplas o fazem a-centrado, permitindo “que ele tome qualquer direção e forma. Não existe forma previa, nem determinismos, as conexões são feitas por contágio ou contato” (FERREIRA, 2008, p.34).

De forma semelhante, também a “Teoria Ator-Rede” de Latour (FERREIRA, 2008) pressupõe uma multiplicidade de atores, humanos ou não, compondo e decompondo novos territórios a todo instante. Sendo assim, o indivíduo e as diferenciadas formas de subjetivação que o compõem se inserem juntamente à rede, formada por fluxos, misturas, múltiplas entradas e conexões. Nela, “o que liga os atores são os interesses que convergem em algum ponto das redes, produzindo um nó (único elemento constitutivo da rede)” (FERREIRA, 2008, p. 33).

As noções tanto de rizoma como de rede nos levam a perceber o cotidiano6 como uma pluralidade, ou seja, uma composição a partir de entrelaçamentos, no qual os seres humanos são o próprio entrelaçar; e onde nós é pronome que se substantiva. Da mesma forma, nossas subjetividades são assim, produzidas e consumidas de acordo com a sociedade em que vivemos – com o que convivemos, com o que nos é apresentado –, sendo elas, produtos sociais. O que não quer dizer, no entanto, que as tecnologias criadas

6Cotidiano não no sentido de “lugar”, mas de “trama”, “processo”. Não temos aqui, a intenção de gerarmos um debate acerca dos conceitos em torno do cotidiano.

pelos seres humanos sejam determinantes sociais. O fato de as considerarmos condicionantes sociais não nos leva, necessariamente, a negar sua influência no meio social. Isso quer dizer apenas que não as consideramos atores autônomos (LÉVY, 1999), responsáveis pelas mudanças sociais, sejam elas positivas ou negativas.

Com a faculdade de projetar, os seres humanos engendram no plano do pensamento as soluções para os seus problemas, e a partir de suas ações, “a realidade vai se povoando de fabricação intencional, realizada pelo ser que se tornou projetante” (VIEIRA PINTO, 2005, p. 55). Assim,

As máquinas são fabricadas para aliviar o trabalho humano, o que em larga margem conseguem, embora com frequência pela transferência de uma forma de trabalho a outra. São criadas, portanto, intencionalmente para que o homem se submeta a elas, no sentido positivo de acolhê-las no ambiente da existência. [...]. Se o homem inventou, por exemplo, o telefone, foi porque desejava submeter-se a ele, com as imensas vantagens trazidas e os relativos inconvenientes, também (VIEIRA PINTO, 2005, p. 91-92).

Os artefatos são assim, produzidos a partir da “transferência da ideia de uma ação, concebida e dirigida pelo sistema nervoso, para um dispositivo material exterior, que deve imitar ou realizar com maior rendimento algumas das funções do sistema pensante vivo” (VIEIRA PINTO, 2005, p. 92). Da mesma maneira, “os chamados ‘cérebros eletrônicos’ são apenas eletrônicos. O cérebro está em outro lugar, na cabeça dos inventores” (VIEIRA PINTO, 2005, p. 93).

Nesse sentido, corroborando a perspectiva de Vieira Pinto (2005), as técnicas são, para Lévy (2010), condicionantes sociais, e não determinantes, de modo que os processos materiais podem ou não ser condicionados por elas. Condicionar é abrir possibilidades, mas somente quem determina o curso da história é o ser humano.

Somos então, produtos do meio social que nós mesmos criamos. Nossas subjetividades são resultantes internas, externas, sociais, humanas, ou não. Somos nós em meio a um emaranhado de fios que nos constitui por meio de nossas múltiplas entradas e conexões. Fios que nos conectam e comunicam uns com os outros, seres humanos ou máquinas.

O ato de comunicar-se emerge assim, como questão imprescindível. Antes da globalização e das inúmeras invenções tecnológicas da informação e da comunicação, foram os diferentes sistemas de comunicação desenvolvidos pelos seres humanos que

Essencialmente social, a comunicação permite a nossa interação uns com os outros ao incluir “a transferência e a compreensão de significados” (CASADO, 2002, p. 271) daquilo que se quer transmitir, seja por palavras, gestos ou sinais.

Sobre a comunicação, explica Sousa (2006, p. 22 grifo do autor), que sua raiz etimológica

[...] é a palavra latina communicatione, que, por sua vez, deriva da palavra commune, ou seja, comum. Communicatione significa, em latim, participar, pôr em comum ou acção comum. Portanto, comunicar é, etimologicamente, relacionar seres viventes e, normalmente, conscientes (seres humanos), tornar alguma coisa comum entre esses seres, seja essa coisa uma informação, uma experiência, uma sensação, uma emoção, etc.

Nesse sentido, a comunicação pode ser colocada a partir de duas proposições que se complementam: enquanto processo – mensagens codificadas trocadas propositadamente – e atividade social – troca de significados entre pessoas inseridas numa mesma cultura. Desse modo, conforme Sousa (2006, p. 23 grifo do autor),

[...] as mensagens trocadas só têm efeitos cognitivos porque lhes são atribuídos significados e estes significados dependem da cultura e do contexto em geral que rodeiam quem está a comunicar. Por isso se diz também que a comunicação é um processo social.

Além de indispensável para a sobrevivência humana, ela também possui importância equivalente “para a formação e coesão de comunidades, sociedade e culturas” (SOUSA, 2006, p. 23). Seu intuito é possibilitar a troca de informações; o entendimento e o entretenimento mútuo entre os seres; a integração nos grupos e comunidades, e na sociedade em geral etc.

Rituais de cooperação são estabelecidos uns com os outros a todo instante. Compreender a cooperação – no sentido de mutualismo entre os indivíduos – entre os humanos é essencial quando a base para o nosso desenvolvimento é social (SENNETT, 2012). Podendo ser tanto formal como informal, Sennet (2012, p. 16) explica que a cooperação pode ocorrer refletida nos “rituais de civilidade, ainda os mínimos, como ‘obrigado’ e ‘por favor’”; ela também pode ser delineada por “pessoas que batem papo em um esquina ou em um bar”, envolvendo prazer recíproco. A habilidade dialógica que nos é necessária, conforme o autor pode “percorrer toda a gama de ações implicadas em ouvir com atenção, agir com tato, encontrar pontos de convergência e de gestão da discordância ou evitar a frustração em uma discussão difícil” (SENNETT, 2012, p. 17).