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Anteriormente foi narrado como a interação entre o homo faber e os pensadores conduziu a humanidade à atividade científica, bem como os fatores comuns a este processo: o conhecimento e as formas de conhecer. Burke (2003), ao estudar estes aspectos e, principalmente, quem produziu o conhecimento na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII, concluiu que as respostas podem variar, dependendo da época, e que o

conhecimento pode ser diferenciado por suas funções e usos ou pelos grupos sociais que o produzem e transmitem.

Meadows (1999) considera como grupo social em atividade de pesquisa mais remota os debates filosóficos que os gregos antigos promoviam na Academia entre os séculos IV e V a.C. Naqueles tempos, a oralidade constituía o principal veículo de transmissão do conhecimento. Destaca-se novamente que já entre os gregos antigos se fazia distinção entre o conhecimento e a crença (GHIRALDELLI JÚNIOR, 2008; ZILLES, 2006).

São vários os tipos de conhecimento: ordinário, mítico, fé, filosófico e científico. O conhecimento ordinário surge da necessidade de enfrentar problemas imediatos, sem qualquer discussão prévia. Como resultante da associação entre o homem e as coisas com uma unidade superior, emerge o conhecimento mítico. A fé é convicção íntima, lealdade, confiança absoluta em alguém ou na existência de algo. A filosofia é uma forma de vida, uma concepção do eu e uma concepção do mundo (HESSEN, 2003; ZILLES, 2006). Já o conhecimento científico pode ser subdividido em três grupos distintos: as ciências formais, as empírico-formais e as hermenêuticas.

As ciências formais são as matemáticas e a lógica, que têm como característica serem “racionais, sistemáticas e verificáveis, mas não objetivas. [...] Tratam de entes ideais que só existem na mente humana.” As ciências empírico-formais “são as ciências construídas segundo o modelo da física. Visam a uma realidade empiricamente apreensível, mas na descrição e análise dessa realidade, usam o instrumental fornecido pelas ciências formais.” E a ciência hermenêutica “ocupa-se da interpretação dos signos em geral e, de modo especial, dos símbolos” (ZILLES, 2006, p. 235, 236, 243).

Mas esta classificação é contemporânea. De fato, os conhecimentos ordinários, ou práticos, de burocratas, artesãos, curandeiros e camponeses, transmitidos oralmente, foram percussores e impulsionadores da formação dos letrados europeus, que, anos mais tarde, legitimaram as universidades. Foi assim que estes intelectuais, alguns ligados ao clero, tornaram o saber um ofício e, naqueles tempos, a transmissão do conhecimento passou a ser papel das universidades (BURKE, 2003).

Até o século XIII, o ensino era basicamente oral, e o acervo das bibliotecas acadêmicas era formado por doações feitas por reis, aristocratas, autoridades religiosas, professores e alunos das próprias universidades, que entregavam para a biblioteca suas notas de aula. Aos poucos, porém, as investigações e as experiências, que eram realizadas, indicavam a necessidade de sistematização da busca do conhecimento, de forma a torná-lo útil e cooperativo (CARVALHO, 2004).

Contudo, somente dois séculos depois é que se difunde a tecnologia de reprodução por tipos móveis, aumentando a disponibilização de livros, permitindo que as

pessoas examinassem as mesmas imagens e textos, facilitando a interação entre os diferentes conhecimentos e possibilitando que as explicações dadas aos fenômenos e fatos fossem comparadas (BURKE, 2003).

A capacidade de multiplicar os exemplares com mais facilidade representa a difusão das pesquisas, e as universidades estabelecem serviços próprios de impressão e edição de livros (MEADOWS, 1999). A imprensa logo se tornou um elemento de transformação social, repercutindo nas formas de produzir, disseminar e recuperar informações, promovendo a expansão dos acervos das bibliotecas, que passaram a funcionar como um espaço de troca de ideias e informações. De acordo com Bardi (2008, p. 56), “a imprensa moderna foi introduzida na Europa por Laurens Coster na Holanda, e Johannes Gutenberg na Alemanha, e pelo século XVII a indústria editorial havia decolado”.

Mas tanta informação disponível trouxe um problema: havia livros em demasia para ler. Meadows (1999, p. 3) e Price (1976b, p. 40) destacam a reclamação, que parece contemporânea, mas foi feita em 1613 por Barnaby Rich: “uma das doenças desta época é a multiplicidade de livros; sobrecarregam o mundo de tal maneira que não é possível digerir a imensa quantidade de matéria inútil que cada dia desabrocha e é lançada ao público”.

Paralelamente ao advento da imprensa, o sistema postal foi aperfeiçoado e os pesquisadores começaram a utilizar este serviço para se comunicar. Surgem os jornais e boletins de notícias impressos, ancestrais do jornal moderno, que serviram de modelo para o surgimento da revista científica. As cartas de conteúdo científico, antes manuscritas e destinadas a um público reduzido, passam a ser impressas e distribuídas para vários pesquisadores com interesse comum por via postal (MEADOWS, 1999).

Foi a própria imprensa que, de certa forma, solucionou o problema da sobrecarga de informações trazida por tantos livros impressos e a falta de tempo para lê-los: os livros escritos por diversos autores passaram a ser compilados, resumidos, resenhados e depois reunidos em uma única publicação (MEADOWS, 1999; PRICE, 1976a; ZIMAN, 1981). Foi neste cenário que surgiu em Paris, em 1665, a revista científica como a entendemos hoje.

O pioneiro foi o francês Denis de Sallo, que editou o Journal de Sçavans. A publicação apresentava resumos sobre o conteúdo dos livros publicados na Europa e divulgava experiências em física, química e anatomia, entre outros assuntos. Logo a seguir, em março do mesmo ano, um grupo de filósofos ingleses, ligados à Royal Society, editou o

Philosophical Transaction, periódico publicado regularmente e que se propunha a divulgar

as correspondências trocadas entre os membros da sociedade inglesa e seus colegas europeus (MEADOWS, 1999, PRICE, 1976a). “A partir dessa época, pode-se passar a encarar a ciência como uma atividade social organizada” (ZIMAN, 1981, p. 63).

publicações especializadas, atingindo um total de cerca de cem, no começo do século dezenove, de cerca de mil, em meados do mesmo século, e de aproximadamente dez mil por volta de 1900. [...] Se fizermos essa contagem estendendo-nos no tempo, desde 1665 aos dias de hoje, torna-se óbvio, de imediato, que o enorme aumento da população dos periódicos científicos passou da unidade para a ordem dos cem mil, com uma regularidade extraordinária, raramente observada em qualquer levantamento estatístico relativo a fenômeno humano ou natural (PRICE, 1976a, p.145-146).

Observando ao longo do tempo as revistas científicas e os produtos gerados por elas, tais como artigos, abstracts e bibliografias, percebe-se um impressionante aumento na quantidade, fenômeno este que obedece à lei do crescimento exponencial (PRICE, 1976a, 1976b). E obviamente por trás de tanta produtividade, há um ator extremamente importante neste cenário: o cientista. De acordo com Price (1976b, p. 1),

[...] qualquer cientista jovem que esteja atualmente se iniciando, ao olhar para trás, ao final de sua carreira, após um período de tempo de duração normal, constatará que 80 a 90 por cento do progresso científico se processou diante de seus olhos, e que apenas 10 a 20 por cento desse progresso o antecedeu.

Os filósofos naturais do século XVIII, cientistas diletantes, deram lugar aos cientistas trabalhadores do século XIX, engajados no trabalho acadêmico e que ganham um salário para se dedicar a este ofício (MEADOWS, 1999; PRICE, 1976a, 1976b; ZIMAN, 1981).

Encontram-se ainda outros dois fenômenos nesta expansão: a formação mais complexa dos pesquisadores e a especialização das áreas do conhecimento. A formação de um pesquisador passa a exigir uma capacitação adicional e formalizada, e aquele que pretende se iniciar na pesquisa necessita realizar um curso de pós-graduação sob a guia de um orientador para produzir uma pesquisa sobre um tópico específico, gerando, por consequência, uma especialização (MEADOWS, 1999).

Estes fenômenos criaram uma “tendência de cursos universitários especializados e a consequente designação de docentes especializados para ministrar tais cursos [que] afetaram não só [...] a ciência e a tecnologia, mas também as humanidades” (MEADOWS, 1999, p. 24). De acordo com Wallerstein (2004), a questão da especialização provocou a expansão mundial do sistema universitário e aumentou consideravelmente o número de cientistas sociais. De fato, estes fenômenos afetaram a universidade num

[...] movimento pendular, impelido por duas exigências diferentes, se não contraditórias ou opostas. Por um lado, a que levou a se organizar em áreas de conhecimento, a distinguir as disciplinas e a instaurar (dentro das disciplinas) as especialidades. Por outro, a que levou a reunir as especialidades, disciplinas e áreas do conhecimento num espaço institucional comum (departamentos, faculdades, institutos, escolas, além das próprias Universidades), segundo suas naturezas e conforme suas afinidades, numa tentativa de unificação do diverso, do disperso e do fragmentado (DOMINGUES et alii, 2004, p.13)

servir a algum desenvolvimento técnico, ganham vigor ao se tornarem experimentais e com pretensões de produzir conhecimentos buscando satisfazer necessidades práticas e econômicas (LE COADIC, 2004). Todo este movimento, principalmente após a II Guerra Mundial, provoca a chamada explosão informacional, que aumenta com o advento da computação e a exigência de produtividade dos pesquisadores por parte dos órgãos de fomento à pesquisa (WATERS, 2006).

A computação trouxe a possibilidade da publicação eletrônica dos documentos científicos, bem como facilitou sua recuperação por meio da automação dos sistemas de recuperação da informação.

Para Targino (2000), a circulação da informação é vital para a ciência, pois permite o intercâmbio de ideias. Ela engloba as atividades associadas à produção, disseminação e uso da informação, e quando efetivada, a comunicação científica passa a ser formadora do estoque universal de conhecimentos. Zilles (2006, p. 240), porém, é mais taxativo:

O conhecimento científico é comunicável: não é inefável, mas expressável; não é privado, mas público. A linguagem científica comunica a informação a quem for capaz de entendê-la [e] a comunicabilidade é possível graças à precisão. É uma condição necessária para a verificação dos dados empíricos e das hipóteses científicas. A comunicação dos resultados e das técnicas da ciência não só aperfeiçoam a educação geral, mas multiplicam também as possibilidades de sua confirmação ou refutação.

A questão da publicação é vital para a ciência. Quem primeiro publica os resultados da pesquisa ganha o direito à autoria. Um bom exemplo dessa situação é o que ficou conhecido como a Guerra do Cálculo, famosa batalha pública sobre quem seria o legítimo inventor do Cálculo, Newton ou Leibnitz, ocorrida no início do século XVIII e muito bem narrada por Bardi (2008).

Mas o que caracteriza uma comunidade científica? Le Coadic (2004, p. 28-29), ao examinar a construção da informação, define comunidade científica como sendo

[...] um grupo social formado por indivíduos cuja profissão é a pesquisa científica e tecnológica. A noção de comunidade científica é muito ambígua e se reveste de uma espécie de mito surgido no século XIX. Trata-se do mito da “república das ideias”, [...] em que cientistas exclusivamente teóricos, desvinculados de sua condição social e material e ligados entre si pela preocupação com a verdade, se encontram para trocar ideias abstratas. No que concerne a este mito, existem as comunidades científicas reais, segmentadas em função de disciplinas, línguas, nações e mesmo ideologias políticas; comunidades de trabalhadores científicos motivados por forte espírito de competição, em que o cientista que vence é quem primeiro publica a informação.

Todo progresso científico faz com que o ator cientista represente diversos papéis tanto na comunidade científica, quanto no processo de comunicação científica, muitas vezes, de forma simultânea: leitor, autor, editor ou árbitro (MEADOWS, 1999; PRICE, 1976a; WATERS, 2006; ZIMAN, 1981). Contudo, a política de publicar ou perecer se

encontra institucionalizada, e tanta exigência de produtividade está tornando o estudioso típico cada vez mais semelhante à figura do operário retratado por Charlie Chaplin no filme

Tempos Modernos: há aumento significativo das publicações, mas não há progresso!

(WATERS, 2006)

Esta trajetória da comunidade científica como grupo social desperta a curiosidade dos estudiosos de um campo de estudo, denominado posteriormente de sociologia da ciência nas suas linhas teóricas com denominações distintas: estudos sociais da ciência, ciência das ciências, nova sociologia da ciência, sociologia do conhecimento, etc.

Independentemente do nome adotado, a sociologia da ciência tem como objeto de estudo os impactos da ciência na sociedade, os impactos da sociedade na ciência, a estrutura social, os processos de produção do conhecimento científico, os aspectos sociais de disciplinas específicas, bem como o comportamento dos cientistas integrantes de uma comunidade (TARGINO, 2000).