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3 – O PROCESSO CRIATIVO E “A DESCOBERTA DAS AMÉRICAS”

3.9. COMUNICAÇÃO COM O PÚBLICO

Jean-Jacques Roubine (2011, p. 107), em seu livro “A Arte do Ator”, analisa a relação entre ator e público. Para ele, a atuação tem um caráter imediato de efemeridade que se realiza diante dos olhos dos espectadores cuja presença e olhar podem influenciar o resultado final do trabalho do ator. Existe uma tensão e uma polarização cujos efeitos desse face a face poderão gerar reações e variações que interferirão de alguma forma, mesmo que sutil, na interpretação. A presença afetiva do público, por exemplo, pode ganhar mais peso que a comunicação linguística. Se determinada peça exige mais silêncio e concentração, por exemplo, o resultado tende a ser promissor. Essa dinâmica e essa imprevisibilidade funciona como desafio a cada nova apresentação. Nas últimas duas décadas, os artistas passaram a tomar mais consciência desse caráter paradoxal do espectador no teatro contemporâneo, conforme percebe Peter Brook:

A verdadeira função do espectador é uma coisa difícil de entender: ele está ali e, ao mesmo tempo, não está ali; ele é ignorado, e, no entanto, necessário. O trabalho do ator não é feito para o público, e, no entanto, o é sempre. Aquele que olha é um companheiro que se deve esquecer e, contudo, tê-lo sempre presente no espírito. Um gesto é afirmação, expressão, comunicação, e ao mesmo tempo é uma manifestação pessoal de solidão- é sempre o que Artaud

chama de “um sinal através das chamas” -, e, portanto, isso implica uma

experiência compartilhada, a partir do momento em que o contato é estabelecido. (BROOK apud ROUBINE, 2011, p. 108).

Roubine acrescenta que existe hoje uma preocupação maior nessa relação ator/plateia com tentativas para mobilizar o público de fórmulas ora ingênuas ora meticulosamente elaboradas. Para ele, levar em consideração a existência do espectador no espetáculo amplia o campo de interpretação do ator e multiplica as potencialidades da arte cênica, conforme constata Jacques Lassalle:

O ator que me interessa é o ator que, estando consciente do artifício básico – eu estou diante dos outros-, consegue superá-lo e atingir uma nudez essencial, uma integridade que, por sua vez, me perturba, me obriga a me reconsiderar diante do mundo. Nada me toca tanto quanto o espetáculo de uma teatralidade aberta, que faz o espectador o protagonista, verdadeiro, definitivo, da representação. (LASSALLE apud ROUBINE, 2011, p. 112).

Peter Brook reflete novamente sobre a relação ator/espectador, sobre o processo de comunicação que se estabelece e sobre o sentido da presença em um trecho do seu livro “O Ponto de Mudança”:

No teatro, o espectador se encontra localizado a uma distância fixa. Contudo, essa distância varia de forma constante: basta que uma pessoa no palco o convença a depositar sua confiança nela, para a distância seja reduzida. Então, experimenta-se essa qualidade conhecida como “presença”, que é um tipo de intimidade. Existe também o movimento contrário; quando a distância aumenta, algo se relaxa se distende; o espectador se sente ligeiramente afastado. A verdadeira relação dramática funciona como a maior parte dos relacionamentos: o grau de envolvimento entre dois indivíduos está constantemente variando. Essa é a razão pela qual o teatro possibilita que se experimente algo de forma extremamente poderosa, conservando, ao mesmo tempo, certa liberdade. Essa dupla ilusão se constitui no fundamento tanto da experiência teatral como da forma dramática. (BROOK, 1994, p. 251).

Adrião mantém a atenção do público com técnica e expressividade. De acordo com Dip, o trabalho solo potencializa a comunicação com a plateia:

Como construção discursiva, o solo concretiza uma forma de diálogo de dimensão crítica com a comunicação na contemporaneidade. Na esfera social, a penetração da mídia conseguiu diminuir drasticamente os espaços de encontro, de confronto e de diálogo. Sob um olhar lógico especular, poder-se- ia esperar um sujeito que monologue, mas ao contrário, o que descobrimos é um diálogo que explode e se multiplica, convidando o espectador a um ato de interlocução simbólica. O solo, muitas vezes, não reflete o grande monólogo da sociedade contemporânea, mas se posiciona criticamente ante ela. (DIP, 2005, p. 127).

Fo acredita que não é preciso que o público receba todas as informações de um espetáculo de forma clara e sim com recursos suficientes para abrir portas para sua interpretação e imaginação:

A leitura objetiva e aprofundada do que sabemos estar por trás dos fatos que permite recriar hoje, de maneira grotesca, irônica ou trágica, o que a informação imediata nunca poderá nos dar. [...] Assim, iremos contrariar o programa e a estratégia que o poder tenta levar adiante, ou seja, doutrinar o público a nunca usar o seu senso crítico: achatamento mental, fantasia zero. (FO, 2007, p. 201).

Na foto a seguir, Padan mostra simbolicamente a imagem de Jesus Cristo crucificado para tentar explicar aos índios, na aula de catequese, a forma como ele morreu. Nessa cena, Padan fica estático com os braços abertos e a cabeça baixa por cerca de 20 segundos e em silêncio. Isso provoca um momento de reflexão, mesmo que fugaz, sobre os efeitos da violência nos espectadores e também nos índios.

FIG. 09 – Imagem de Cristo crucificado 19

Nessa troca de experiências compartilhadas, com mais de 600 apresentações para todo tipo de plateia, Adrião aprendeu a utilizar o tempo e as manifestações desse mesmo público para dar direcionamento e uma dinâmica ao espetáculo:

O desafio é fazer sempre o melhor com a plateia dizendo: ‘poxa, ainda bem que eu vim, porque duvido que ele faça assim amanhã’. O espetáculo é único,

ele se encerra quando o aplauso vem e, você terá, para justificar a indicação de quem gostou, de refazê-lo depois. Você não pode ser dar ao luxo de simplesmente repeti-lo, porque não é uma fórmula. É uma ação física muito intensa, diante da qual tenho de inclusive desligar o ar-condicionado, por causa da suadeira que me dá. (ADRIÃO apud MAGIOLI, 2011).

A necessidade de se manter o frescor nesta peça está intrinsecamente ligada à comunicação direta e sem rodeios com o público, uma comunicação popular e de massa. Ao mesmo tempo, o excesso de improvisos, interferências e o natural acomodamento de algo que se conhece e se controla pode ser talvez o ponto negativo e que deve ser pensado a cada apresentação. Adrião impõe conscientemente uma autovigilância para não cair no perigo de se encantar com o riso fácil de um público sedento por rir.

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A partir dessa relação com o público, a diretora Alessandra Vannucci procura refletir sobre a essência do teatro calcado no ator:

Perfurar o teatro até sua essência de comunicação emotiva pode provar que, mesmo sendo um luxo, teatro é arte pobre. Um ator não tem mais nada para vender que o próprio corpo e a própria voz. Um ator é sujeito (autor) e objeto (material) de sua arte, diversamente do pintor, do músico, do escultor (que utilizam cores, instrumentos musicais etc.) A ausência de outros recursos faz com que o ator se engenhe. Inventar e se reinventar, treinar truques para cativar a plateia, emocionar, mentir: esta é a arte do ator. A cada noite, uma plateia, um espetáculo único. Por não ser mecanicamente reproduzível, mas só em presença do ser humano ator e do ser humano espectador, o teatro vai ficar para sempre fora da lógica do consumo de massa. (VANNUCCI apud ZANONI, 2008, p. 169).

Pode-se notar que ator e diretora de A Descoberta das América sempre exaltam a importância da participação do público em cada apresentação e do quanto essa cumplicidade para entrar no jogo e na história a ser contada os alimenta a continuar com a montagem em cartaz.