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RESUMO: A identidade desperta muito interesse nos mais diferentes campos de

estudos, pois a constituição do sujeito está diretamente relacionada à maneira como as relações são estabelecidas entre diferentes indivíduos e culturas. A visão predominante quanto ao sujeito passou por uma transformação e sua identidade deixou de ser vista predominantemente como única, fixa, centrada e unificada, e passou a ser entendida como fragmentada e sujeita a um eterno processo de (re)construção (HALL, 2005). Em conformidade com tal perspectiva, e a fim de aprofundá-la propomos uma reflexão da obra Nihonjin (2011), de Oscar Nakasato, que aborda o choque cultural e o conflito entre gerações de imigrantes japoneses no Brasil. O romance proporciona uma reelaboração dos fatos históricos que muito contribuíram para o multiculturalismo brasileiro e a sua superdiversidade. O processo de imigração é quase sempre doloroso, pois de um lado há o luto por deixar sua terra natal, por outro o impacto pelo novo lugar e pela nova cultura. Trata-se de um evento que exige adaptação, tanto de quem migra, tanto de quem o recebe. Esse encontro de sujeitos e culturas distintas reconfigura e redefine tanto o nativo, como o estrangeiro. Nessa perspectiva, centralizamos a análise nas concepções de autores que discutem identidade e os conceitos supracitados com base em: Stuart Hall, Michel Maffesoli e Zigmunt Bauman.

Considerações iniciais

A globalização pode facilitar a entrada e permanência em um país, a dinâmica entre nações, diminuir fronteiras e aproximar diferentes povos, remodelar conceitos como ética e moral, assim como, reestruturar a política e a economia de uma pátria. No Brasil, um dos fatos impulsionados pelo processo foi a imigração de mão de obra livre: como a italiana e japonesa.

A imigração japonesa no Brasil iniciou no começo do século XX, o Japão precisava administrar seu excedente populacional e o território brasileiro necessitava de mão de obra para as lavouras de café, o que culminou na chegada de 781 imigrantes pelo navio Kasato Maru, em Santos, no ano de 1908.

O romance Nihonjin (2011), de Oscar Nakasato, reconstrói esse importante fenômeno histórico que muito contribuiu para o multiculturalismo e a superdiversidade no país. Foi vencedor do Prêmio Benvirá de Literatura em 2011, concorrendo com quase 2000 outros, e em 2012 ganhou o Prêmio Jabuti na categoria de melhor romance.

A obra narra a história da imigração japonesa e o processo de adaptação aos costumes de um novo país através de Hideo Inabata, um imigrante que partiu de Kobe, sua terra natal e se instalou no Brasil junto com sua primeira esposa Kimie. A intenção do protagonista era passar alguns anos em território estrangeiro, ganhar dinheiro e retornar à sua origem, porém teve seus sonhos interrompidos diante das dificuldades enfrentadas na nova morada, nunca conseguiu retornar.

A obra é narrada por Naburo, um de seus netos, ele reconstrói a história de seu avô a partir de memórias de outros membros da família e também do seu ponto de vista, e busca compreender tanto a história de seu progenitor quanto dos seus demais familiares, para poder entrar em contato com as práticas e valores sociais da comunidade nipônica. Nos primeiros anos em terra estrangeira Hideo perdeu sua esposa Kimie, mulher frágil e sonhadora, não se adaptou ao serviço duro da lavoura de café, preferiu a morte a viver longe de onde considerava o seu lar. Hideo, no entanto, casou-se novamente e teve seis filhos.

Nesse processo migratório, apesar de toda resistência de Hideo, pois mesmo em solo estrangeiro cultivava a sua cultura e criava barreiras para não se adaptar a

cultura brasileira, pela fidelidade às tradições nipônicas e, acima de tudo, ao imperador.

Nesse movimento de desterritorialização, o sujeito tem sua identidade (re)construída e reconfigurada, mesmo ele resistindo as fusões identitárias. Nesse processo tanto o nihonjin5 como gaijin6 tem sua subjetividade abalada. A partir dessa perspectiva, nesse artigo, busca-se uma reflexão sobre a resistência do sujeito que migra e a remodelação do seu aspecto identitário.

Entre dois mundos: Brasil e Japão

A obra explora o movimento migratório dos nipônicos para o Brasil, retrata a vontade e o desejo deles de trabalharem em solo estrangeiro, ganhar dinheiro e retornar ao país de origem o mais breve possível. Porém, nesse processo, para a grande maioria esse sonho tornou-se inalcançável.

Segundo Benedict Anderson (2008, p. 33): “As comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas”. Sendo assim, a identidade nacional se configura no espaço e no tempo, tendo em consideração a língua, a etnia, costumes, enfim, cada grupo imagina uma proposta de identidade, a qual se solidifica em certo grau em cada sujeito daquela sociedade. A identidade, portanto, pode ser entendida como um agrupamento de elementos, das quais fazem parte: a língua e a cultura, características construídas socialmente. A identidade, porém, não está diretamente e completamente ligada ao local de nascimento, mas também às escolhas e experiências do indivíduo.

Nesse período, das primeiras levas de migrações do Japão ao Brasil, sem as facilidades proporcionadas pelos atuais meios de comunicação, a migração configurava-se como uma real separação entre o imigrante e sua sociedade “envolvendo a perda ou a dramática redução do papel e influência social, cultural e

5 Japonês.

política7” (BLOMMAERT; RAMPTON, 2011, p. 3, tradução nossa). Atualmente, nesse novo cenário migratório, quem migra mantém o vínculo com sua terra natal, as interconexões, o acesso fácil à internet, como transmissão em tempo real, de qualquer lugar, contribuindo dessa maneira com o aparente desaparecimento da distância geográfica:

Agora tem a possibilidade de reter uma conexão ativa por meio de um elaborado arranjo de tecnologias de comunicação a longa distância. Essas tecnologias têm impacto também em comunidades sedentárias anfitriões, com pessoas se envolvendo com redes que oferecem formas potencialmente alteradas de identidade, comunidade de formação e cooperação8 (BARON apud BLOMMAERT; RAMPTON, 2011, p. 3).

A superdiversidade, termo cunhado pelo antropólogo Stven Vertovec em 2007 está presente em toda a parte, e nesse sentido para Blommaert (2013, p. 10), essa expressão se refere à ‘diversidade dentro da diversidade’.

Superdiversidade é caracterizada pelo enorme crescimento de categorias de migrantes, não apenas em termos de nacionalidade, etnicidade, linguagem, e religião, mas também em termos dos motivos, padrões e itinerários de migração, processo de inserção no mercado de trabalho e imobiliário das sociedades hospedeiras, e assim por diante9 (VERTOVEC apud BLOMMAERT, RAMPTON, 2011, p. 1, tradução nossa).

De acordo com Michel Maffesoli (2001) a identidade na pós-modernidade é algo heterogêneo, o autor aponta a ambiguidade do ser humano em querer permanecer em seu lugar de origem, por outro lado, existe a insatisfação, fazendo

7 “involving the loss or dramatic reduction of social, cultural and political” (BLOMMAERT, RAMPTON, 2011, p. 3).

8 “These technologies impact on sedentary ‘host’ communities as well, with people getting involved in transnational networks that offer potentially altered forms of identity, community formation and cooperation” (BARON apud BLOMMAERT, RAMPTON, 2011, p. 3).

9 calls ‘super-diversity’. Super-diversity is characterized by a tremendous increase in the categories of migrants, not only in terms of nationality, ethnicity, language, and religion, but also in terms of motives, patterns and itineraries of migration, processes of insertion into the labour and housing markets of the host societies, and so on (VERTOVEC apud BLOMMAERT, RAMPTON, 2011, p. 1).

com que esse indivíduo queira estar em outros lugares. A metáfora do nomadismo reside nessa identidade múltipla, construídas por diversos fatores e perfis dentro do mesmo indivíduo. Assim, Maffessoli (2001) afirma que, ao mesmo tempo que o homem quer permanecer (sedentarismo), ele também deseja o movimento (nomadismo), e essa dinâmica, o autor dá o nome de ‘enraizamento dinâmico’.

Todo mundo é de um lugar, e crê, a partir deste lugar, ter ligações, mas para que este lugar e estas ligações assumam todo o seu significado, é preciso que sejam, realmente ou fantasiosamente, negados, superados, transgredidos. É uma marca do sentimento trágico da existência: nada se resolve numa superação sintética, tudo é vivido em tensão, na incompletude permanente (Maffesoli 2001, p. 79).

O autor recorre a Durkheim e a ‘noção de espirito’ para ilustrar tal sentimento de incertezas e tensão. O espirito é parte integrante de algum lugar, de um corpo, até mesmo de um povo, mesmo assim permanece livre, pois não está enraizado em nada fixo, esse espirito é livre, apesar de criar laços, esses laços são maleáveis e pode estar ligado a ele na distância, pode afastar-se deste espaço e, ainda assim, reforçar sua conexão com o mesmo. Ou seja, o espírito integra seu contrário (MAFFESOLI, 2001).

Hideo nunca se adaptou a cultura, ao português brasileiro e ainda teve grandes problemas para educar os filhos nos preceitos japoneses, essa relação conflituosa entre Hideo e seu filho Haruo, que nasceu e cresceu no Brasil é muito evidente. Ao começar a frequentar a escola, o menino escuta os amigos chamando- o de japonês, em casa ele ouve o pai louvando o imperador e o Japão. A professora fala que ele é brasileiro, pois nasceu no Brasil. O garoto não consegue se enquadrar enquanto nihonjin nem como gaijin, porém afirma que sente seu coração brasileiro, o pai sabia que estava diante de um grande problema,

[...] então explicou que a professora tinha razão, já que ele tinha nascido no Brasil. Portanto, no documento, na certidão de nascimento, ele era brasileiro. Mas era só um papel, e um papel se perde, vira cinza numa fogueira, e ter nascido no Brasil fora uma imposição do destino. [...] o que importava era o que ia na alma, no coração. – E na alma, você é japonês. Você tem o espírito japonês. E na cara, também. O que adianta

você sair por aí dizendo que é brasileiro? Todos olham você e sabem que você é japonês (NAKASATO, 2011, p. 66-76). O menino tinha consciência que os traços do rosto, o formato dos olhos e do nariz, o cabelo liso, além do nome, tudo isso era considerado parte da identidade japonesa, quem o olhava, sabia que aquele garoto era um issei10 ou um nissei11. O pai sempre impondo que o filho não era brasileiro “– seu nome é Haruo [...] se você fosse brasileiro, se chamaria João, Antonio, José” (NAKASATO, 2011, p. 67). Porém, o garoto desafiava o seu pai e concordava que o nome e a cara ele não poderia mudar, mas isso não importava muito para ele, “eu sinto que meu coração é brasileiro” (NAKASATO, 2011, p. 67). Diante dessa atitude, o pai se sente extremamente ofendido, pois não aceitava esse conflito identitário: “O tapa atingiu em cheio a face de Haruo. Imediatamente os olhos se encheram de lágrimas” (NAKASATO, 2011, p. 67). O patriarca disposto a aplicar um castigo depois da insolência do menino, pois esse não encontra no herdeiro o nihonjin que ele tanto valoriza e gostaria que ele fosse: “-Haruo, você precisa aprender a ser nihonjin! [...] Haruo ouvia as palavras do pai e não conseguia entender como alguém podia aprender a ser nihonjin” (NAKASATO, 2011, p. 68).

O personagem Haruo carrega em si uma identidade fragmentada, enquanto o pai deseja que ele tenha uma identidade fixa e rígida, entretanto, ela encontra-se alimentada pelas culturas japonesas e brasileiras, e por mais que o patriarca busque meios para mantê-la cravada e irremovível, independente dos esforços do progenitor, ela é flexível, a identidade do menino já não se sustenta na fixidez. As vivências, seu passado, a sua origem híbrida, tudo isso, faz parte do descentramento da identidade. Nesse processo identitário, Haruo descontrói o estereótipo que seu pai almejou, para Hideo, o filho deveria ser japonês independente de ter nascido no Brasil, e deveria orgulhar-se de suas raízes.

O processo da construção da subjetividade passa pelos discursos identitários, que cada sujeito se apropria de forma diferente, quase sempre embasados nas formas de exclusão – neste caso – nihonjin/gaijin. Haruo, no entanto, busca a

10 Imigrantes japoneses.

construção da sua própria identidade, para isso, ele utiliza tanto peças japonesas, como peças brasileiras. Bauman (2005) afirma que a identidade é como montar um quebra-cabeça, a diferença é que esse quebra-cabeça não está com as peças completas e, além disso, o importante é escolher as peças e colocá-las no lugar adequado e, essa montagem, não tem fim. A construção é um processo infinito, passível de experimentação e mudança, sendo construída no decorrer da vida. Dentro desse círculo de pertencimento o sujeito está exposto a diferentes formas de pertencimento. Não possuindo uma identidade fixa e rígida, sua identidade é reconfigurada em contato com muitos ‘outros’.

As identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas (BAUMAN, 2005, p. 19).

A identidade do indivíduo é formada a partir de percepções subjetivas que o sujeito está submetido, como: a língua, a cultura e os discursos aos quais esse sujeito tem pleno contato, e cada discurso pode ter um posicionamento diferente. Como afirma Hall (2005), o contato com outras culturas, os sujeitos passam a partilhar identidades, e dessa forma, torna-se impossível manter as identidades culturais intactas, elas tornam-se fragmentadas, sendo possível viver e conviver com múltiplas identidades, mesmo aquelas consideradas muito diferentes. Ela é reconfigurada no decorrer da vida, sendo mutável, o sujeito é ressignificado todos os dias. Diante dos costumes japoneses que Hideo perseverava, pois era a base do que o constituía como japonês, apesar de viver no Brasil há anos, Haruo sentia, então, incomodado:

Haruo reclamava, não se cansava de reclamar: que se sentassem também as mulheres à mesa, que era um absurdo aquele costume. Quando se casasse se sentariam à mesa a esposa e o marido, um em frente ao outro, porque não era o homem melhor que a mulher para ser o primeiro, e também porque assim poderiam compartilhar juntos a mesma refeição. (NAKASATO, 2011, p. 93).

A mãe ouvia as lamentações do filho e tentava justificar-se, que apesar de morar no Brasil não era brasileira, ela era estrangeira e não poderia virar gaijin, portanto:

[...] não podia se sentar à mesa junto aos homens durante as refeições como faziam as esposas brasileiras, não podia dizer não se otochan lhe pedia algo, não podia se queixar das decisões do marido (NAKASATO, 2011, p. 94).

Os protestos continuavam, porém sempre muito rígido, o pai, não escutava as indagações do garoto que já estava inserido nas duas culturas, e vivia nessa zona fronteiriça entre Japão e Brasil:

- Não podemos viver no Brasil como se estivéssemos no Japão, mamãe – insistia Haruo com obachan, que o escutava, ao contrário de ojiichan, que o deixava falando sozinho, cansado de ter suas ideias contrariadas. – Não perturbe o seu pai, você não vai convencê-lo (NAKASATO, 2011, p. 93). Essa indignação e discordância com o pai é parte do processo de transculturação12 que passam e vivem os imigrantes, Haruo, segunda geração nissei13 - já não faz parte da ‘velha cultura’ cultivada pelo patriarca.

Os filhos estão inseridos na cultura brasileira, nasceram e vivem no Brasil, por mais que o pai tente reproduzir seus costumes, esses já não são aceitos sem questionamentos, por terem entrado em contato com outras culturas, processo irreversível, portanto, as culturas foram entrelaçadas. “- Otochan, a cara e o nome eu não posso mudar, mas isso não importa muito. [...] o que importa é o que otochan está dizendo: o coração. E eu sinto que meu coração é brasileiro. [...] - você é quem seu pai quer que você seja. E você é nihonjin!” (NAKASATO, 2011, p. 67).

12 Termo criado em 1940 pelo sociólogo cubano Fernando Ortiz. “um processo, no qual, ambas partes da equação são modificadas. Um processo no qual emerge uma nova realidade, diversa e complexa: uma realidade que não é uma aglomeração mecânica de caracteres, nem um mosaico se quer, e sim uma realidade nova, original e independente”. MALINOWSKI, Bronislaw, no prefácio da 1 edição de ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco el azúcar. Caracas, Venezuela: Biblioteca Ayacucho, 1987, p. 5. Esse termo foi retomado por Ángel Rama na década de 1970.

Haruo viveu uma mistura de culturas, além de ser filho de japonês, é brasileiro e convive com os italianos, os caucasianos e os negros. Para Maffesoli (1996, p. 304), “o eu é uma frágil construção, ele não tem substância própria, mas se produz através das situações e experiências que o moldam num perpétuo jogo de esconde-esconde”, nesse sentido, Haruo é modificado e vive em perpétua transformação, é modificado pela sociedade em que vive, com isso, torna-se impossível uma identidade una e sólida (BAUMAN, 2005), e muito menos uma tal como projetava o seu pai. De acordo com Maffesoli os indivíduos são acima de tudo um conjunto de diferentes fatores, ou seja, o sujeito é policultural, ele não é individual e sim coletivo, nessa perspectiva, os indivíduos se entrelaçam e se interagem, processo cunhado pelo autor como ‘declínio do individualismo’ (MAFFESOLI, 1998).

Haruo carrega em si, tanto a cultura japonesa, como a brasileira, porém o Japão que ele carregava dentro de si era diferente do Japão da perspectiva do seu pai. Ele sente seu coração brasileiro, prefere ser brasileiro, defende a derrota do Japão na segunda Guerra Mundial, e nega a divindade do imperador. Para Maffesoli (1998) o ser humano tem motivações diversas, são instáveis e podem se deslocar para diferentes contextos. O individualismo é substituído pela necessidade de identificação com um grupo.

Haruo aludia sempre a Cassio Kenro Shimomoto, de quem se tornara amigo, e ao seu artigo histórico publicado no jornal Gakusei, órgão da Liga Estudantina Nipo-Brasileira. Haruo guardava o recorte do artigo como uma relíquia e lia: ‘os brasileiros descendentes de japoneses têm uma grande responsabilidade perante a nação brasileira... Como podemos amar a terra de nossos antepassados? Se nem a conhecemos? Podemos ter quando muito um sentimento de respeito pela pátria de nossos pais, mas nunca a ideia de patriotismo pela terra dos crisântemos’ (NAKASATO, 2011, 95).

Hideo mesmo não aceitando também é transformado, e sua identidade pode ser avaliada tanto antes quanto depois de passar pelo processo de transculturação. Na viagem para o Brasil acontecem os primeiros embates com a nova terra, primeiro que nenhum japonês pudesse ter uma ideia negativa das terras brasileiras, deveriam respeitar o imperador que não os enganou, pois o trabalho seria difícil, todavia,

trabalhariam, juntariam dinheiro e retornariam para ajudar na reconstrução do Japão. Porém, no navio, um artista que estava na viagem, acostumado a pintar as louças, questionou:

O que me deixa apreensivo é que lavraremos uma terra alheia, estrangeira, e obedeceremos às ordens dos donos dessa terra, que não conhecemos. Os meus vizinhos sempre foram nihonjins, eu ia ao mercado e era um nihonjin que me vendia cereais, eu ia comprar tinta e era um nihonjin que me atendia, conversava comigo em japonês (NAKASATO, 2011, p. 14). Neste processo migratório é evidente que os japoneses tinham poucas informações sobre a nova terra, alguns sabiam tão pouco que dizia que no Brasil a língua falada era o brasileiro. O contraste era evidente, doze horas de fuso horário que separa o Brasil e o Japão, simbolizam partes dessas diferenças.

Acompanhamos a trajetória de Hideo no Brasil também pela visão de Shizue, sua segunda esposa:

De que adiantava pensar que poderia ter sido diferente? A vida lhe reservara um homem bom, exigente e duro, de quem aprendera a gostar e a quem aprendera a respeitar. Assistiu a sua batalha diária, primeiro na Fazenda Ouro Verde, depois no sítio que arrendara com seu pai, empunhando a enxada aos sábados e domingos, só guardando o dia do Imperador, por fim na pequena loja no bairro da Liberdade. Viu o marido trabalhar sem descansar para retornar ao Japão, depois viu seu sonho se acabando aos poucos. [...] Hideo não se submeteria à humilhação de voltar ao Japão na mesma condição em que saíra de lá. [...] Sem que se reconhecesse, uma nova vida, que não era a vida japonesa nem a vida brasileira, organizava-se à sua volta. (NAKASATO, 2011, p. 110-111).

Os anos passaram e o patriarca com toda sua rigidez e inflexibilidade, vê o inverso acontecendo, muitos descendentes de japoneses, assim como seu neto, Naburo, saem do Brasil para trabalhar como dekasegi 14no Japão. Naburo quer reconstruir o Japão que tanto ouviu de seu avô:

[...] ir ao Japão é quase um retorno, que na primeira oportunidade me desvencilharei dos sapatos, pisarei a areia

branca e sentirei um contato antigo, os pés revivendo o toque, moldando-se a formas desenhadas há muitos e muitos anos e ignoradas pelo tempo, que me sentarei num campo de cerejeiras brancas e permanecerei ali por uma, duas horas, que irei aos pés do monte Fuji, olharei o pico coberto de neve e o reconhecerei, que será um reencontro (NAKASATO, 2011, p. 162).

Naburo feliz em poder conhecer a terra de seus avós. O seu avô, Hideo, no entanto, sabe que o Japão que deixou há mais de 40 anos, não existe mais:

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