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1.3 A GUERRA PELA INDEPENDÊNCIA E O PRIMEIRO GOVERNO MOÇAMBICANO PÓS-COLONIAL: A QUEBRA DAS RELAÇÕES ESTADO-IGREJA

1.3.1 A COMUNIDADE SANTO EGÍDIO NO MOÇAMBIQUE

A Comunidade Santo Egídio é uma organização não-governamental humanitária, definida como associação católica pública de leigos, com status autônomo e personalidade jurídica reconhecida pelo Estado Italiano, que nasce em 1968, por iniciativa de um dos estudantes de liceu, Andrea Riccardi121. Ele reuniu os colegas para escutar o evangelho e colocar seus preceitos em prática. O trabalho tinha como base as mudanças propostas pelo

116 ARAÚJO, op.cit.

117 Esse direito estava presente de forma muito superficial e sujeito a interpretações variadas, sendo motivo de

discordância entre o governo e as instituições religiosas.

118 MORIER-GENOUD, op.cit. 119 ARAÚJO, op.cit.

120Ibidem, p. 34.

121 Fundador da comunidade Santo Egídio, o italiano Andrea Riccardi é professor de História Contemporânea na

Universidade de Roma III. É estudioso da Igreja na idade moderna e contemporânea e de religião em geral. RICARDI, Andrea. Andrea Riccardi. 2015. Disponível em:< http://www.andreariccardi.it/en>. Acesso em: 25 abri. 2015.

Concílio Vaticano II e dava ênfase ao diálogo inter-religioso à prestação de auxílio aos menos favorecidos122. Desde então, a Comunidade vem crescendo e angariando adeptos por todo o mundo123.

Apenas alguns anos após a sua formação, a Comunidade recebeu como doação do Vaticano o antigo Convento Carmelita, situado no distrito de Transtevere, em Roma. O convento foi reformado e tornou-se a sede da organização124. Em 1986 o Papa reconheceu oficialmente a associação religiosa e a sua vocação em levar o cristianismo para os locais que mais necessitam, por meio do diálogo ecumênico com outras religiões e pelos serviços prestados às populações carentes125. Apesar de a organização declarar-se leiga, ou seja, seus membros não professam a religião por “profissão”, eles têm motivações religiosas, como a comunicação do evangelho. Além disso, mantém relações estreitas com a Santa Sé, e várias vezes ao ano, o Papa encontra com os líderes da Santo Egídio para se inteirar dos seus projetos126.

Os primeiros contatos da Comunidade Santo Egídio com o Moçambique são estabelecidos pelo arcebispo católico Don Jaime Gonçalves127. Em 1976, Gonçalves foi estudar

em Roma e tornou-se amigo de membros Comunidade. Um ano depois, recém-nomeado arcebispo da Beira, ele retorna a Roma para um sínodo. Nesse episódio, ele relata aos seus amigos da Santo Egídio os problemas enfrentados pelas igrejas em Moçambique.

122 SANT’EGÍDIO (Roma). A Comunidade. Disponível em:

<http://www.santegidio.org/pageID/2/langID/pt/A_COMUNIDADE.html>. Acesso em: 21 abr. 2015.

123 “Hoje é um movimento de laicos, ao qual aderem mais de 50.000 pessoas, empenhado na evangelização e na

caridade em Roma, na Itália e em mais de 70 países de vários continentes. [...]. As várias comunidades, espalhadas pelo mundo, partilham a mesma espiritualidade e os mesmos fundamentos que caracterizam o itinerário de Sant'Egidio. SANT’EGÍDIO, op.cit.

124 HEGERTUN, Nikolai. Faith-based Mediation?: Sant’ Egidio’s peace efforts in Mozambique and Algeria.

2010. 125 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Peace And Conflict Studies, Universitetet I Oslo, Olso, 2010. Disponível em: <http://www.duo.uio.no/>. Acesso em: 22 abr. 2015.

125 HAYNES, Jeffrey. Conflict, Conflict Resolution and Peace-Building: The Role of Religion in Mozambique,

Nigeria and Cambodia. Commonwealth & Comparative Politics, [s.i], v. 47, n. 1, p.52-75, fev. 2009. Disponível em: <https://www.kent.ac.uk/politics/carc/reading group/Religion and peace-building.pdf>. Acesso em: 02 mai. 2015.

126 HUME, op.cit.

127 Jaime Gonçalves é arcebispo da Beira e foi um dos primeiros africanos do clero católico de Moçambique, “a

quem a colonização portuguesa tinha negado a formação de uma igreja autóctone, com receio que esta se tornasse num veículo de nacionalismo indígena.” Censuravam-no por ser favorável à ideia política de autodeterminação e sua ordenação como presbítero foi adiada e por isso, foi mandado para fora de Moçambique para estudar. ROCCA, op.cit. “D. Jaime revelar-se-ia uma figura central no processo de paz não só pela ligação à Comunidade de Santo Egídio, mas também à Renamo. Ele não só é oriundo do mesmo grupo étnico a que pertence quase toda a liderança da Renamo, os N’Dau, como também é parente da mulher de Dhlakama.” PAVIA, José Francisco Lynce Zagallo. A Multi-Track Diplomacy na prevenção e resolução dos conflitos em África: o caso de Moçambique. In: Conferência Internacional a Prevenção e a Resolução de Conflitos em África, 6., 2011, Lisboa. Política

Internacional e Segurança. Lisboa: Lusíada, 2012. p. 11 - 50. Disponível em: <http://revistas.lis.ulusiada.pt/index.php/lpis/article/view/124/117>. Acesso em: 06 abr. 2015. p.16.

Sensibilizados, os membros da organização passaram a buscar formas de atenuar as restrições religiosas128.

No intuito de angariar aliados para fazer pressão sobre o governo moçambicano, a Andrea Riccardi e Matteo Zuppi129 (membros da Comunidade Santo Egídio) organizaram um encontro do arcebispo moçambicano com o então chefe do Partido Comunista Italiano (PCI), Enrico Berlinger, tendo em vista que, o governo italiano mantinha relacionamento estreito com FRELIMO130. Além disso, o partido havia lançado uma proposta de “compromisso histórico131” entre comunistas e católicos, que visava dar à Itália um governo estável e progressista e vedava discriminações baseadas em critérios ideológicos feitos contra crentes e religiões132. No encontro, Gonçalves relatou a situação de sufocamento da Igreja moçambicana e Berlinger se comprometeu a usar de sua “autoridade moral e fraternidade partidária” para persuadir a FRELIMO a remover as restrições contra as práticas religiosas133.

O Vaticano também se pronuncia sobre a situação vivida pela igreja moçambicana. Demonstra preocupação com relação às políticas antirreligiosas do novo governo e na declaração de 21 de março de 1979, o Papa exorta o mundo a “rezar pela Igreja em Moçambique, pois ela realmente precisava134”. Esse pronunciamento, juntamente com a

pressão exercida junto ao governo pela Comunidade Santo Egídio e o PCI, contribuíram para a redução das tensões entre a Igreja Católica e o governo nos anos 1980. Além disso, de acordo com Araújo, outros fatores que influenciaram para o relaxamento da posição de hostilidade foram: a sensação de isolamento e da ausência de apoio interno ao regime no contexto da guerra civil (explicada no tópico a seguir); a crise econômica e a necessidade de promover o desenvolvimento do país, o que exigia o apoio dos diversos setores da população e boa imagem no cenário internacional; bem como o papel preponderante desempenhado pelo governo nas

128 HUME, op.cit.

129 Matteo Zuppi é um bispo católico italiano, associou-se à Comunidade Santo Egídio em 1971e mais tarde tornou-

se padre. Ibidem.

130 “A Itália tinha aviado estreitas relações com Moçambique desde a época precedente à independência. [...] A

Itália era também uma importante base logística para a Frelimo, estrategicamente situada perto de Portugal e de África; [...] Depois da independência, Moçambique tem, na Itália, um país particularmente amigo.” Além disso, a Itália foi um dos principais parceiros de desenvolvimento econômico do governo pós-independência. ROCCA, op.cit., p.20.

131 O compromisso histórico foi um acordo político que uniu o Partido Comunista Italiano à direita governista do

Partido Democracia Cristã (DC). A partir desse compromisso, os comunistas ganharam força dentro do parlamento e passaram a integrar o governo italiano. FUJII, William. O Caso Aldo Moro: Teorias da conspiração e a estratégia

do subterfúgio. Disponível em:

<http://www.academia.edu/1801240/O_Caso_Aldo_Moro_Teorias_da_conspiração_e_a_estratégia_do_subterfú gio?login=&email_was_taken=true>. Acesso em: 22 abr. 2015.

132 ROCCA, op.cit.

133 HUME, op.cit.,p.17, tradução nossa.

conversações de Lancaster House, que culminaram na independência do Zimbábue em 1980135, fazendo com que o governo revisse sua postura frente às políticas internas. O abrandamento das tensões foi acompanhado da retirada das medidas de restrição de movimento dos religiosos e da reabertura de alguns locais de culto136.

Apesar de ter alcançado, parcialmente, o seu objetivo, o interesse da Comunidade Santo Egídio pelo Moçambique não se esgota com o arrefecimento das tensões entre a Igreja Católica e o governo. Esse foi apenas o começo de um relacionamento, que vai ser muito importante no desenrolar de um conflito armado que se inicia logo após a independência do país. No próximo tópico, retornar-se-á ao ano de 1976 para explicar o começo das hostilidades entre o governo e a oposição armada, ressaltando o posicionamento da Igreja Católica diante desse cenário inicial.

1.4 A GUERRA CIVIL NO MOÇAMBIQUE: O ARREFECIMENTO DAS TENSÕES