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Desde o primeiro semestre de 2001, a disciplina História e Turismo II, ministra­ da aos alunos do Curso de Turismo da Universidade de Fortaleza, tem realizado, durante as aulas de laboratório, visitas técnicas tanto a alguns sítios históricos e arquitetônicos do período colonial cearense (Icó, Aracati, Aquiráz), quanto às comunidades pesqueiras do litoral leste (Canto Verde e Estevãos, inicialmente).

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No tocante ao segundo roteiro, diante dos debates sempre intensos sobre os con­ flitos envolvendo pescadores e empresários dos ramos imobiliário e turístico, no ano de 2003, foram desenvolvidas duas pesquisas de campo sobre a realidade dos pescadores de Balbino, próximo à Praia da Caponga, no município de Cas­ cavel, a aproximadamente 60km da capital alencarina. Intitulados ‘Meus Pais

Viviam d a Maré': educação popular e turismo com unitário na praia de Balbino e ‘Só Saio daqu i quando Deus m e Tirar’: conflito, resistência e sustentabilidade na com unidade de Balbino (1970 - 2001), esses estudos de campo apresentaram aspectos peculiares dos pescadores, como a natureza do conflito em que estão inseridos e as estratégias de reconhecimento e posse do território, a partir da evocação da memória e da história da comunidade.

Com a pesquisa, constou-se que, desde meados da década de 1970 até os dias hodiernos, comunidades pesqueiras, comoTatajuba, Maceió, Canto Verde, Ponta Grossa, Balbino, entre outras, vêm sofrendo com o avanço dos interesses imobiliários sobre o litoral cearense. A princípio, os especuladores imobiliários vinham modestamente aliciando os nativos a venderem suas casas e terrenos junto aq mar. Contudo, a partir da segunda metade da década de 1980, período em que as políticas públicas do estado do Ceará passam a priorizar e incentivar os investimentos estrangeiros (indústrias, resorts, restaurantes, hotéis etc.), per- cebe-se a existência de intensos conflitos entre pescadores e empresários.

“Eles tocaram fo g o em nossas casas [...] Um velho qu e m orava logo a li [apon ta p a ra um terreno a beira m ar] teve até a sua galin ha chocadeira qu eim ada viva. Eles [os empresários] pagaram hom ens arm ad os qu e vieram d e bugres e trator, qu e cercaram nossa terra, aterraram a Lagoa Seca [laguna próxim a ao m anguezal, don de os balbin en ses tiram p arte d a sua subsistência] e destruíram a l­ gum as casas [...] Até a p olícia f o i m an d ad a contra nós.”

L. S. (Conselho Fiscal da com u n id ad e de Balbino). D epoim ento cedido em 16/Mar./2004 O depoimento da moradora da comunidade de Balbino relata um dos episódios de violência ocorridos em meados da década de 1990. Sabe-se que, assim com o naquela realidade, outros povoados pesqueiros do litoral cearense sofreram e ainda sofrem agressões físicas e ameaças, como é o caso da Prainha do Canto Verde e dos Estevãos, respectivamente, nos municípios de Beberibe e Aracati.

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Ao que se atesta, por parte dos especuladores imobiliários, qualquer ação é justificada pela (ir)racionalidade do capital, até mesmo comprometer fa­ mílias e o meio ambiente, já que seus projetos visam lotear as áreas litorâneas (dunas, manguezais, florestas marinhas) valorizadas tanto pelos veranistas, quanto pelos empreendedores turísticos estrangeiros organizados em cartéis do entretenimento. Petras bem mostra o avanço das forças econômicas na realidade latino-americana, logo após a abertura desenfreada dos seus mer­ cados nacionais, em que tanto grupos oligárquicos regionais e investidores estrangeiros se empenham sobre “o Estado que vende cada vez mais recur­ sos públicos: florestas, províncias minerais, reservas naturais, recursos marinhos”10.

Ante a união de interesses dos agentes detentores do monopólio econômico, os moradores de Balbino não abriram mão da posse do seu território. Inicial­ mente, entre o final da década de 1980 e início da de 1990, gestou-se a idéia que logo se consolidou em ação político-representativa: a fundação da Associação dos Moradores da Praia de Balbino; núcleo aglutinador dos inte­ resses comuns dos pescadores e suas famílias pela garantia não só das suas moradas, mas também das suas atividades de subsistência e seus modos de vida. Os embates nos fóruns e tribunais pela legitimidade da territorialidade tiveram tamanha repercussão, tanto na imprensa local quanto entres as comunidades do litoral leste cearense, que aproximou o Instituto Terra Mar da luta balbinense. O referido instituto consiste em uma ONG fundada na Prainha do Canto Verde, cujos moradores também sofriam com a grilagem dos especuladores imobiliários.

Neste contexto, para fortalecer a luta jurídico-institucional, surge a ini ciativa de se trabalhar, com os moradores, a construção da referência com o lugar, uma vez que os empresários já haviam aliciado alguns pescadores a venderem suas terras. Esse trabalho de fortalecimento da referência ho­ mem-lugar partiu das professoras locais do ensino fundamental, que, com o projeto Escola Popular, aplicavam atividades para os alunos da alfabeti­ zação à quarta série, os quais realizam entrevistas com os anciãos da comunidade e, após o depoimento, passam a representar os relatos em for­ ma de teatro e de danças.

"Na escola as 'tias'ensinam a respeitar Balbino, q u e é a nossa casa, dos nossos pais, avós, e vai ser dos nossos filh o s e netos. [...] O tea­ tro representa a chegada dos prim eiros m oradores, os incêndios

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causados pelos ‘hom ens l a e a prostituição e as drogas com o acon ­ tece (sic) em Canoa Q uebrada (...) e a d an ça do coco também."

L. S. (Conselho Fiscal d a com u n id ad e de Balbino). D epoim ento cedido em 16/Mar./2004 Ao que se vê, aquela comunidade produziu suas estratégias para reforçar a idéia de posse histórica do território. Mais que isso: por meio da memória dos moradores mais antigos, as professoras realizam um modesto trabalho, porém uma ação pertinente, no tocante ao desenvolvimento da dimensão histórica dos balbinenses como sujeitos sociais. Além de estabelecer essa relação histórica com a experiência social e o espaço, desenvolveram-se linguagens que pudes­ sem ser mais atraentes tanto ao conjunto dos moradores, quanto aos visitantes, como o teatro e a dança do coco, manifestação típica da comunidade local. Vale salientar que tanto o teatro, a dança do coco, quanto o pequeno grupo de guias mirins e seus passeios sobre dunas, manguezais e lagoas, tomaram possível a modesta inserção da praia aos roteiros turísticos cearenses mais alternativos.

Nesse caso, pode-se entender que, em Balbino, o exercício à memória e à história, o resgate das práticas culturais, como as danças típicas e as encena­ ções teatrais, contribuem como realizações, a fortalecerem os laços entre os pescadores e suas famílias, visando à importância da terra como elemento cons­ tituinte da sua experiência no tempo e no espaço. Assim, sobre a compreensão e a importância do patrimônio cultural entendidas pelos balbinenses, cabe a afirmativa de Haroldo Camargo, de que “são as comunidades e grupos locais que irão garantir sua preservação, formalmente por intermédio das escolas ou informalmente por intermédio do lazer’’11. Essas atividades, juntamente com a agricultura de subsistência, artesanato, coleta de mariscos e a pesca, têm garantido a sobrevivência da população de Balbino, em busca da manutenção de sua existência enquanto sujeitos sociais e cidadãos.

Considerações Finais

Como pôde ser entendido ao longo deste trabalho, Turismo e Patrimônio Cul­ tural estão interligados. Sabe-se da importância que a preservação patrimonial representa para as atividades turísticas e, principalmente, para as comunida­ des que produzem o patrimônio cultural. Contudo, na realidade brasileira, tanto há descaso dos poderes públicos em virtude da ausência de políticas incisivas

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a incentivar a preservação, quanto a dimensão do patrimônio cultural tem sido limitada; seja pela sua ressignificação como mercadoria turística, seja priorizando a preservação dos objetos das elites brasileiras.

Foi pensando uma nova dimensão do patrimônio cultural, entendendo-o como o conjunto da diversidade material e simbólica produzida e vivenciada pelos grupos humanos, que se vislumbrou neste texto a importância do co­ nhecimento histórico na abordagem sobre as práticas sociais como campo de possibilidade analítica. Ao estudar a origem, a natureza e a experiência das diversas realidades sociais em seus folguedos, modos de vida, imaginá­ rio, crendices, religiosidade, gastronomia, artesanato, festas típicas, danças, músicas, rituais, comportamentos etc., o conhecimento histórico amplia a compreensão sobre as infinitas possibilidades de reprodução e atualizações do existir, desejar e do saber fazer humano. Dessa maneira, o Turismo, ativi­ dade que se apropria dos patrimônios culturais, precisa estar planejado e orientado a existir segundo o respeito às alteridades culturais, ao direito de a vida manifestar-se diferente e singular no tempo e no espaço.

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