• Nenhum resultado encontrado

Espaço, poder e exclusão, contexto econômico-social do patrimônio cultural do lugar turistificado. Patrimônio cultural: da memória ao sentido do lugar

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Espaço, poder e exclusão, contexto econômico-social do patrimônio cultural do lugar turistificado. Patrimônio cultural: da memória ao sentido do lugar"

Copied!
46
0
0

Texto

(1)

Copyright © 2006 da I a Edição pela Editora Roca Ltda. ISBN-10: 85-7241-608-0

iSBN-13: 978-85-7241-608-5

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, guardada pelo siste­ ma “retrieval” ou transmitida de qualquer modo ou por qualquer outro meio, seja este eletrônico, mecânico, de fotocópia, de gravação, ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. P341

Patrimônio cultura! : da memória ao sentido do lugar / Clerton Martins, organizador. - Sào Paulo : Roca, 2006

Inclui bibliografia ISBN-10: 85-7241-608-0 ISBN-13: 978-85-7241-608-5

1. Patrimônio Cultural. 2. Turismo. 3- Turismo - Aspectos sociais. 4. Cultura. I. Martins, Clerton. 06-0335 CDD 363.69 CDU 351.853 2 0 0 6 T o d o s o s d ir e ito s p a r a a lín gu a p o r tu g u e s a s ã o r e s e r v a d o s p e l a E D IT O R A R O C A L T D A .

Rua Dr. Cesário Mota J r ., 73 CEP 0 1 2 2 1 -0 2 0 - São Paulo - SP Tel.: (11) 3 3 3 1 - 4 4 7 8 -F a x : (11) 3 3 3 1 -8 6 5 3

E-m ail: vendas@edltoraroca.com .br - www.editoraroca.com.br Impresso no Brasil

(2)

Capítulo

ESPAÇO, PODER E EXCLUSÃO:

CONTEXTO ECONÔMICO-SOCIAL

DO PATRIMÔNIO CULTURAL DO

LUGAR TURISTIFICADO

Compreender as relações de poder na produção do espaço turístico im­ plica, necessariamente, compreender o espaço como algo socialmente produzido, que expressa as contradições do modo de produção capitalis­ ta ou do espaço-mercadoria. Ele é, a um só tempo, o lugar das estratégias para o capital e das resistências do cotidiano para os habitantes. O turis­ mo é uma das mais novas modalidades do processo de acumulação, que vem produzindo novas configurações geográficas e materializando o es­ paço de forma contraditória, pela ação do Estado, das empresas, dos residentes e dos turistas. Compreender essa dinâmica significa entender as relações produtivas do espaço e o exercício de poder do Estado, das classes empresariais e trabalhadoras em movimento e conflito. O turis­ mo, para se reproduzir, segue a lógica do capital, quando poucos se apropriam dos espaços e dos recursos neles contidos, apresentando-os como atrativos transformados em mercadorias.

Esta análise tenta fugir da abordagem estruturalista que considera o espaço objeto rígido, homogêneo, isótropo, neutro, delimitado por linhas

Luzia Ne id e Co riolano

(3)

32 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

periféricas, localizado, formal, a priori do homem, palco dos acontecim en­ tos e admiti-lo como um processo histórico e dialético, resultante das relações sociais de produção. Assim, o espaço geográfico não é suporte nem reflexo da ação da sociedade, mas um produto social. Mostra Santos:

“O espaço reproduz a totalidade social na m ed id a em q u e essas transform ações são determ in adas p o r necessidades sociais, eco ­ nôm icas e políticas. O espaço reproduz-se, ele m esm o, no interior d a totalidade, qu an d o evolui em decorrência do m odo de p ro d u ­ ção e d e seus m ovim entos sucessivos e contraditórios.”1

A partir dessa compreensão, o espaço físico em si passa a ser considerado a partir de sua organização, e o seu sentido são produtos sociais, são espacialidades, ou seja, espaços produzidos por meio das relações de forças e de poder que se estabelecem de forma contraditória, transformando a cha­ mada primeira natureza em segunda natureza.

Espaço é, assim, a principal categoria da análise geográfica e nele está contida uma série de outras categorias de apoio, tais como: território, lugar, região e paisagem, entre outras. Enquanto o território é, segundo Moraes, “o resultado histórico do relacionamento da sociedade com o espaço, o qual só pode ser desvendado por meio do estudo de sua gênese e desenvolvimento", visto como uma forma de relação de poder que remete a soberania, ao Estado- Nação e à fronteira, é o lugar das resistências, onde se travam as lutas cotidianas, a exploração das forças de trabalho, o fluxo da mais-valia e a reestruturação produtiva da acumulação capitalista2. As lutas que antes pa­ reciam apenas das classes sociais ampliam-se e chegam aos lugares. Não apenas as classes lutam por seus interesses antagônicos, mas os espaços, os lugares tornam-se competitivos e ameaçadores, ocorrendo o que Santos denominou de guerra dos lugares3. Os espaços vão sendo produzidos diferen- ciadamente, como forma de subsunção ao capital.

O turismo é, na atualidade, um dos eixos desencadeadores dessa es- pacialização, age desterritorializando è produzindo novas configurações geográficas. Assim é que regiões litorâneas originalmente ocupadas pelos indígenas, pescadores, comunidades tradicionais, os chamados “povos d o m a f são expropriadas para dar lugar às segundas residências, aos grandes resorts, às cadeias hoteleiras, aos restaurantes e demais equipamentos turís­ ticos, como parques temáticos, por exemplo. Nessa produção espacial, faz-se

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(4)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Espaço, Poder e Exclusão: Contexto Econômico-social do Patrimônio... 33

necessário considerar a luta dos diferentes atores locais: os nativos usuários do espaço litorâneo que tentam defender suas propriedades, ou bens de usos, contrapondo-se aos interesses dos empresários, dos agentes imobiliários e do próprio Estado, estes que se interessam pelo valor de troca do espaço, pois o transformaram em mercadoria.

Cabe ainda considerar a dupla dimensão do espaço - do conteúdo e da forma, como definiu Carlos4, desfazendo tendências de vertente de uma única mão, pois o espaço não é m ero receptáculo, como mostra Martins5, ou palco, nas ressalvas de Oliveira6, mas produto, condição e meio das relações sociais. Ao se fazer meio ou objeto para atividade econômica ou demais práticas so - ciais, é também força produtiva, apropriada pelo capital para sua reprodução. Assim, “o espaço não se encontra excluído das relações de produção, tampouco das relações de dominação consubstanciadas e expressas pelas relações de propriedade [,..]”5.

É no conteúdo do espaço de relações sociais que se engendram os pro­ cessos, pois é nessa formação histórica que se estabelecem, se recriam, se transformam as relações sociais e espaciais. Mas esse produto social não se faz sem conflitos, contradições e resistências. É justamente dessas contradi­ ções que emergem as relações de dominação e de poder na produção do espaço, que visa à acumulação capitalista. Carlos explica que “as relações sociais têm uma existência real enquanto existência espacial concreta, na medida em que produzem e assim efetivamente a sociedade produz o espa­ ço [...] ”4. Cada local, região ou país tem sua formação própria, sua cultura, valores e costumes e, desse modo, o espaço vai sendo produzido conforme essas relações mais amplas, em um processo articulado à produção geral da sociedade. Diz Chesnais que "os serviços são a nova fronteira para a mundialização do capital’’7. A reestruturação produtiva industrial desenvol­ veu uma infinidade de serviços funcionais à sua produção, ou seja, a cada bem produzido ligado às novas tecnologias desencadeiam-se os serviços de suporte e sustentação, sendo o turismo um desses serviços, voltado espe- cialmente à reprodução da força de trabalho e ao consumo.

O turismo significa o lazer de viagem, portanto um lazer especial e elitizado, dirigido às pessoas e grupos que se mobilizam facilmente, conforme os dita­ mes do capital internacional. As redes de serviços destinadas ao turismo, como o da hotelaria, levam em consideração as vantagens de localização represen­ tadas pela dotação de riquezas naturais (sol, mar, montanhas), bem como o valor do patrimônio cultural e histórico de um país (arquitetura, museus).

(5)

34 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

São esses fatores, e também as decisões das multinacionais especializadas, que determinam a capacidade de o país receber turistas. As atividades liga­ das à indústria do turismo (hotéis, restaurantes, clubes de férias) são intensivas em m ão-de-obra e é por isso que as multinacionais do setor ob­ têm consideráveis vantagens por uma localização em países que combinem atrações naturais com mão-de-obra barata, segundo Chesnais7. As grandes cadeias de hotéis e de restaurantes funcionam como empresas-rede, utili­ zando o regime de franquia. As multinacionais deixam os branqueadores, seus parceiros subalternos, suportarem todo o peso dos investimentos lo­ cais e os imprevistos das flutuações da demanda, além de tudo o que diz respeito aos numerosos problemas da administração cotidiana da força de trabalho mal remunerada, e por isso migrante, de forma que consigam menores custos e o máximo de lucro passível.

O movimento reprodutivo do capital mundializado, em sua ânsia de acu­ mulação contínua e ampliada, reforça os conflitos, mas não sem produzir resistências. Como processo hegemônico e homogeneizante, faz surgir a ne­ cessidade de defesa dos atores locais, para manter as especificidades próprias da história dos lugares, do local e do regional, valorizando-as para não serem aniquiladas pelos interesses globais. É assim que o capital avança com inú­ meros objetivos, produzindo diferentes resultados sobre os espaços locais, a depender também das relações de poder da ordem local. Daí, as várias for­ mas de resistências em relação ao turismo global. Martins ressalta os motivos dos conflitos emanados do espaço como mercadoria, que:

"Se torna objeto das estratégias qu e visam im pulsionar a acu m u ­ lação d e capital, e, portanto, tende a d om in ar a prática social. O qu e am p lia o cam p o de tensões e conflitos, pois o qu e se encontra em questão é assegurar a produ ção e a reprodu tibilidade das re­ la ç õ e s s o c ia is d e p r o d u ç ã o fu n d a m e n t a is e e s s e n c ia is ao capitalism o através d a produ ção do espaço

Ainda na perspectiva de mercadoria, o valor de uso do espaço submeteu- se ao valor de troca e, assim, novas contradições vão aparecendo. O espaço do residente e os espaços dos turistas, o espaço esquecido do cidadão local e o espaço elitizado e luxuoso dos turistas entram em conflito. Lugares lutam entre si para atrair empreendimentos, obedecendo à lógica do capital.

Ressalte-se o papel determinante do Estado burguês nesse processo, posicionando-se abertamente a favor das classes dominantes, dos empresários

0 -f t0 9 -l P Z L B

(6)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Espaço, Poder e Exclusão: Contexto Econômico-social do Patrimônio... 35

do turismo, dos proprietários de terra, dos agentes imobiliários. Há os que lutam pelo espaço, lugares e territórios e são favoráveis à troca e à acumula­ ção capitalista, e aqueles que resistem com movimentos sociais e urbanos e rurais, às vezes fazendo alianças ou contando com a solidariedade de outros grupos que passaram pelo mesmo processo de resistência à aniquilação, em permanentes conflitos. Nessa luta de interesses de conflitantes, distingue-se facilmente a ocupação dos usuários e a dos usurários.

Para Oliveira, as resistências juntas com a capacidade de mudanças são mediadas pelos usos e costumes para determinarem a produção do espaço articulado entre o lugar, o nacional e o global6. O capital, ao transformar o es­ paço em mercadoria, faz surgir novas atividades econômicas, como o ramo econômico das atividades do lazer e do turismo e do lazer. O turismo provoca profunda mudança socioespacial, redefine as singularidades espaciais, além de reorientar os usos. Carlos4 reporta-se a Lefebvre8 a respeito da contradição entre a abundância relativa de produtos e as novas raridades, mostrando que o turismo e o lazer, ao provocarem essas mudanças, dão novos sentidos aos lu­ gares, levando-os a usos intensivos e tornando-os escassos. A escassez vai tornar a mercadoria-espaço sujeita a especulação pelo valor de troca em detrimento do valor de uso, acirrando os conflitos e as lutas de classe, acionando as relações de poder para deter a propriedade (ou apropriação) desse fator de produção que virou uma mercadoria, ou um bem econômico. A raridade se dará não apenas em termos produtivos, de locais propícios à atividade turística, mas por­ que concorrerá com espaços e lugares de antigos usos, de moradia e comércio, por exemplo, ou mesmo com o lazer dos moradores do lugar. Diz Oliveira6 que, no caso da transformação do tem po de ócio em negócio, entra em jogo o que Lefebvre8 chama de emergência das novas raridades (a luz, o ar, o espaço e tempo). O que antes era abundante toma-se raridade e entra no circuito das carências tão necessárias à economia política, por isso objeto de estratégias governamentais e privadas. Assim, o espaço passa a ser raridade, sobretudo, se acompanhado de atributos como natural, verde, rural, conservado.

Tomando como exemplo o caso do estado do Ceará, Brasil, até meados do século XX sua região costeira não era valorizada em termos de espaço urba­ no para o turismo. Apenas as atividades portuárias e de pesca artesanal ocupavam esse espaço, além das ocupações de residências e de atividades socialmente marginalizadas, como a boêmia, o artesanato e a cultura popular.

Com a valorização do litoral e implantação de projetos financiados pelas agências financeiras internacionais e nacionais, a partir da década de 1970

(7)

36 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

esse espaço foi redirecionado para o turismo. A partir da década de 1980, a população local disputou palmo a palmo o espaço construído e urbanizado para o turismo, com os seus espaços residenciais e para atividades econômi­ cas, recreativas e esportivas. Entretanto, tudo isso passou e passa por intenso processo de luta, mediante relações de poder para redefinição desses espa­ ços e de territórios.

As populações moradoras das áreas litorâneas sustentam uma luta de resistência para permanecerem nesses lugares, apesar do avanço da espe­ culação imobiliária, tendo o Estado como indutor de investimentos e da infra-estrutura implantada. Várias foram as favelas desmontadas e retiradas das dunas e lugares para serem direcionadas ao turismo, ao lazer e à m o­ radia das classes mais favorecidas, quando aquelas são expulsas para áreas periféricas da Grande Fortaleza.

O movimento dos moradores de bairros e favelas foi testemunha de uma trajetória de deslocamentos compulsórios, seguidos de conflitos, às vezes armados e sangrentos, e as comunidades litorâneas cearenses também con­ tam suas lutas com os especuladores imobiliários. A cada necessidade de modernização imposta pela reestruturação produtiva, sob influência do Es­ tado, a orla marítima de Fortaleza, especialmente, e todo o litoral do Estado do Ceará, passam por novos usos e apropriações.

Ao defender o turismo como atividade de forte impacto sobre sua economia, e, portanto, na geração de riqueza, o Estado retira as populações historica­ mente assentadas nesses lugares, sob o pretexto de que tais lugares estão degradados e agredidos, por serem pontos de prostitutas, vendedores e de­ socupados. A respeito dessas lutas mais recentes pela apropriação das áreas litorâneas de interesse turístico, Silva posiciona-se criticamente quanto à desocupação de uma área nas imediações do Farol Novo, nas dunas da Praia do Futuro. Diz ele:

“Se o Estado, através de m edidas m oralizantes, resolvesse buscar tudo o qu e é seu, teria qu e desocu par n ão só os lotes com o este d o Farol Novo, deveria reaver porções im ensas d e nossa cidade, esp e­ cialm ente no litoral. Os ocupantes são, certam ente, pessoas ‘ricas’ e ‘respeitáveis’. Ninguém m exe com elas. A cid ad e tem urna oferta considerável de im óveis vagos. Os pobres, alijad os desse m ercado, insistem na ocu p ação nas du n as e várzeas d e nossa cidade, luga­ res únicos d e p ossibilidade d e abrigo.”3

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(8)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Espaço, Poder e Exclusão: Contexto Econômico-social do Patrimônio... 37

Os mais pobres criam alternativas de espaços de usos que cedem às for­ ças de mercado, quando são compulsoriamente deslocados. Essa experiência em Fortaleza faz lembrar Lefebvre apud Duarte, que mostrava duas possibi­ lidades de ação pela manutenção de territórios:

“A vida p rogram ada no e p elo espaço tende a reduzir os ‘usadores’ à passividade e a o silêncio, salvo se eles se revoltam, su a revolta p od e e deve levar à apresen tação d e projetos, d e contra-espaços, de reivindicações algu m as vezes violentas {...]. ”10

Infere-se, portanto, que a produção do espaço é determinada por rela­ ções socioespaciais e de poder. Que o direito à cidade e ao espaço reclamado pelo filósofo francês, há pelo menos quatro décadas, continua sendo moti­ vação para a luta de muitos e que tais utopias só se concretizam quando essa parcela da população, mantendo relações de poder, possa fazer valer seus direitos, para se impor diante dos conflitos e contradições geradas pelo capi­ talismo em suas novas formas expressas nos artefatos modernos, entre eles, os do turismo.

R

eferências

B

ibliográficas

1. SANTOS, M. Espaço e Sociedade.Petrópolis: Vozes, 1979.

2. MORAES, A. C. R. Território e História no Brasil.São Paulo: Hucitec, 2002.

3. GUERRA dos lugares. Folha de São Paulo,8 Ago. 1999. Caderno Mais, p. 3-5.

4. CARLOS, A. F. A. “Novas" contradições do espaço. In: DAMIANl, A. L. et al. (Orgs.). O Espaço no Fim do Século: a nova raridade.São Paulo: Contexto, 1999. p. 65. 5. MARTINS, S. Crítica à econom ia política do espaço. In: DAMIANl, A. L. et al. (Orgs.).

O Espaço no Fim do Século: a nova raridade.São Paulo: Contexto, 1999. p. 25. 6. OLIVEIRA, C. R. Introduzindo o espaço do ócio. In: DAMIANl, A. L. et al. (Orgs.). O

Espaço no Fim do Século: a nova raridade.São Paulo: Contexto, 1999. p. 202.

7. CHESNAIS, F. A Mundialização do Capital.São Paulo: Xanã, 1996.

8. LEFEBVRE, H. O Direito à Cidade.Trad. R. E. Frias. São Paulo: M oraes, 1991.

9. SILVA, I. B. Nas Trilhas da Cidade Fortaleza: museu do Ceará.Fortaleza: Secretaria

de Cultura e D esportos do Estado do Ceará, 2001.

10. DUARTE, C. R. Notas de pesquisa: das contradições do espaço ao espaço vivido

em Henri Lefbvre. In: DAMIANl, A. L. et al. (Orgs.). O Espaço no Fim do Século: a

(9)

PATRIMÔNIO CULTURAL E

IDENTIDADE: SIGNIFICADO E

SENTIDO DO LUGAR TURÍSTICO

Cler to n Ma rtin s

I

ntrodução

Apenas o que o espaço físico proporciona não é o suficiente para a condi­ ção de lugar especial. A própria percepção de especial é dada por quem percebe o lugar. Quem vê, avalia, partindo desde seus sentidos e expe­ riências. Mas o que de verdade dá sentido a um lugar é o conjunto de significados, os símbolos que a cultura local imprimiu nele, e é isso que leva o outro a sentir, partindo de seus valores, o lugar o qual se visita.

Esse conjunto de valores representado pelos significados e símbolos projeta-se no espaço geográfico e, ao mesmo tempo em que dele vai apro­ priand o-se, im prim e m arcas com o que dizendo isto sou eu e, em comunhão com o grupo social, isto som os nós.

“O território em qu e vivem os é m ais q u e um sim ples conjunto d e objetos, m edian te os qu ais trabalham os, circulam os, m ora­ mos, m as tam bém um d a d o sim bólico. A linguagem regional f a z p a rte d esse m u n d o d e sím b o lo s, e a ju d a a cria r esse am álg am a, sem o q u a l n ão se p o d e fa la r de territorialidade. 85 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(10)

40 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

Esta não provém do sim ples fa to de viver num lugar, m as d a co­ m unhão qu e com ele m an tem os." 1

Esse processo não é breve e nem tem um final. Ele reúne história, conheci­ mento e demonstra em várias linguagens a relação que o sujeito tem com o espaço geográfico, lugar que é identificado como extensão de si mesmo. Todo espaço é sua casa, seu lar, seu lugar, uma significação de existência, dando um toque de peculiaridade, identidade, referência e essência desse lugar, como, por exemplo a técnica de preparação dos alimentos, a combinação de sabores baseada no que a terra oferece, a maneira como o homem se relacio­ na com o místico, os templos, igrejas, sinagogas, terreiros, centros, as festas, a celebração por conta da chuva, ou do sol, ou a realização de um ritual an­ cestral, a adaptação da cultura alienígena que construiu a história local, as lendas, os mitos, as guerras do povo em defesa de seu espaço, a arte nativa, a arquitetura, as relações sociais, os laços afetivos etc.

Na realidade, o que torna o lugar atraente é a cultura de sua gente, o jeito que esse povo encontrou de estar e ser em sua existência, em seu espaço, vivendo sua realidade. Lenz ap u d Santos diz:

‘‘Para m im a terra natal não é exatam en te o lugar on d e nossos mortos estão enterrados; é o lugar on d e tem os as nossas raízes, onde possuím os nossa casa, fa la m o s nossa linguagem, pu lsam os os nossos sentim entos m esm o qu an d o fica m o s em silêncio. É o lugar on de sem pre som os reconhecidos. É o qu e todos desejam os, no fundo d o coração: serm os reconhecidos e bem recebidos sem nenhum a pergunta.”1

C

ompreensão

de

P

atrimônio

C

ultural

O conceito de patrimônio histórico e artístico usado desde o século XIX foi pau­ latinamente sendo substituído pelo conceito mais amplo de patrimônio cultural, respondendo a atualizações de estudos, que deram visão a uma abrangência da área e, ainda, consoante com a concepção antropológica de cultura. Partindo dessas atualizações globais, a Constituição Brasileira de 1988, no artigo 216, seção II - d ac u ltu ra, estabelece um conceito de patrimônio cultural:

“Constituem P atrim ônio cultural brasileiro os bens d e natureza m aterial e im aterial, tom ados individualm ente ou em conjunto,

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(11)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Patrimônio Cultural e Identidade: Significado e Sentido do Lugar Turístico 41

portadores de referência à identidade, à ação, à m em ória dos d i­ feren tes grupos form ad ores d a socied ad e brasileira, nos qu ais se incluem : I - A s fo rm a s de expressão; II - Os m odos de criar, fa z er e viver; III-A s criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV -A s obras, objetos docum entos, edificações e dem ais espaços destin a­ dos às m anifestações artístico-culturaisçV - Os conjuntos urbanos e sítios d e valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.’’2

Complementando essa preocupação esboçada no texto constitucional, o decreto presidencial n- 3.551, de 4 de agosto de 2000, sugere mecanismos de registro do patrim ôn io im aterial. Essa ação se dará pelo registro nos livros: (1) dos saberes, contemplando aqui conhecimentos, habilidades e modo de fazer; (2) das celebrações, em que serão assinalados rituais e festas represen­ tativos para a sociedade brasileira; e (3) das fo rm a s de expressão, em que seão registradas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas. Com essa medida, procurou-se reparar uma prática de mais de 60 anos, que desprezou elementos significativos da cultura brasileira.

Dessa forma, considera-se prudente clarificar alguns conceitos e ain­ da eleger uma possibilidade de compreensão para a expressão patrimônio cultural.

Aguirre afirma que é difícil definir um conceito de patrimônio, pois é ter­ mo que envolve amplos e diferentes campos. Patrimônio e patrimonial são termos utilizados por juristas, sociólogos, historiadores e antropólogos. O homem comum, quando quer dar um sentido de valor a alguma coisa, diz que é um patrimônio. Mas há um ponto comum em todas as possibilidades conceituais: o patrimônio é algo de valor, que se transmite e do qual todos se utilizam, seja individual ou coletivamente3.

Na perspectiva antropológica, segundo Clemente, apudAguirre, patrimônio equivale a cultura. Assim, patrimônio assume uma função globalizante, assi­ nalando tratar do principal testemunho da contribuição histórica, para as civilizações universais, da capacidade criativa contemporânea, não poden­ do ser resumido apenas a um conjunto de bens dignos de conservação por uma nação, por razões de arte e de cultura3.

Os estudos sobre o patrimônio, hoje, estão ampliados a muitas perspecti­ vas: território, ambiente, museografía, político-administrativa, didática, áreas social e cultural etc. Ao longo da história, desenvolveu-se a idéia de patrimônio

(12)

42 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

sempre se levando em conta o momento cultural e o contexto social; assim, os conceitos, ampliaram-se. Aguirre mostra que primeiro a palavra patri­ mônio referia-se quase exclusivamente ao artístico, aplicando-se aos produtos humanos caracterizados pelo sublime Herskovits, ap u d Aguirre, como ma­ nifestação da capacidade de criação estética de uma cultura3. Pode-se observar a tendência, ainda hoje no contexto brasileiro, dessa representação, em que as obras produzidas por classes consideradas populares, para o con­ ceito, não estavam aptas a tais feitos.

À divisão tradicional entre patrimônio histórico e artístico, com a nova abor­ dagem de patrimônio cultural, passou a agregar o arqueológico, documental, bibliográfico e o etnográfico, cada uma dessas possibilidades chamando para si a metodologia própria de suas respectivas ciências.

Assim, com referência ao patrimônio, pode-se atribuir o que sugere Bourdieu, a p u d Aguirre com relação à cultura: existe apenas um patri­ mônio, o cultural, do qual se apropriam de forma diferente a cultura dominante e a popular. Cada uma delas seleciona e potencializa, de acordo com suas identidades3.

"[...] a idéia d e Patrim ônio Cultural, qu an d o envolve todos os a s­ pectos d a ativ id ad e hu m an a, conduz a um a revalorização do natural, d o m eio am bien te com o algo relacion ado ao h om em e m an ip u lad o p o r ele. O hom em em interação com natureza d o ­ m ina suas espécies, o m eio geográfico e o am biente. Controla, consciente ou inconscientem ente, o h abitat on de desenvolve sua vida, p oten cializan do um as espécies em detrim ento de outras. Neste sentido, o m eio am biente está intim am ente relacionado com o cultural e portan to com as produções do hom em [...]."z O conceito de patrimônio cultural, então, envolve em grande escala o fei­ to humano atrelado a um contexto. Uma vez que todo o espaço ocupado pelo homem pressupõe uma atuação que significa a busca de sobrevivência e bem- estar, o espaço geográfico natural está impresso pelo resultado da ação do homem, levando-nos a inferir que tudo que representa a impressão, seja no nível material, ou simbólico, representa uma interferência humana, que sig­ nifica cultura, a qual, por sua vez, também é patrimônio cultural.

O patrimônio, assim, não é algo sem importância, fruto de convenções so­ ciais. É dinâmico, serve para proporcionar aprofundamento nos contextos sociais, históricos, econômicos etc. O antropólogo, partindo dessas produções,

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(13)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Patrimônio Cultural e Identidade: Significado e Sentido do Lugar Turístico 43

toma contato com as necessidades da sociedade que o produz e na qual vive, tendo a possibilidade de entender seus problemas, o que os gera e colabora na busca de soluções.

Dessa forma, o património é reflexo da sociedade que o produz, sendo necessário esclarecer que ele nem sempre é fruto da coletividade, pois exis­ tem processos nos quais o patrimônio é produto de contextos econômicos, políticos ou culturais, que, por sua vez, possuem origem em decisões de gru­ pos concretos, ou classes, mas apenas representam patrimônio, quando tais construções são assumidas pela coletividade de forma autônoma.

Aguirre apresenta a definição de patrimônio etnológico, termo que repre­ sentaria toda a riqueza e variedade dos citados patrimônio material e imaterial, envolvendo os bens móveis e imóveis, no qual estão englobados todos os aspectos ideacionais de um povo, suas festas, literatura oral, crenças, mitos e ritos. O patrimônio etnológico presume um valor popular enraizado3.

O patrimônio etnológico engloba aspectos tão variáveis como as paisa­ gens naturais, assim tenham sido estes manipulados pelo homem. Nele se abre um campo para a antropologia do espaço e a contribuição para a valori­ zação simbólico-espacial. A paisagem humanizada já não é vazia, adquire significado.

Dessa forma, pode-se concluir que qualquer definição que surja de patrimônio remete a um fator comum, o de patrimônio humano, ou seja, tudo o que o homem, não importando as definições de estratificação que podem nos apresentar, possa produzir.

P

atrimônio

C

ultural

, C

idadania

e

P

articipação

"Um h om em a qu em se paga, sabidam en te, m uito m enos do qu e necessita p ara viver com um m ín im o d e d ecên cia n ão é tratado p ela socied ad e com o um verdadeiro cidadão. Será um instrum en­ to d e trabalh o, um p a ra fu so em u m a m áq u in a, ja m a is u m a criatura qu e p elo sim ples fa to d e viver é p ortad ora d e direitos." 1

O conceito de participação, que, enfatizado no princípio democrático, no qual todos os que são atingidos por medidas sociais e políticas devem parti­ cipar do processo decisório, não importando o modelo político ou econômico adotado, não é massificação nem manipulação ou cooptação dos grupos

(14)

44 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

p o p u la re s. B u s c a o c o m p ro m e tim e n to d o s g ru p o s e n v o lv id o s n u m p ro je to de g e r ê n c ia e d e c is ã o d o s a s su n to s d e s e u m a io r in te re ss e . A p a rtic ip a ç ã o p o p u la r p o d e , m u ita s vezes, p a re c e r n ã o s e r m u ito e ficie n te , p o rq u e d e m a n ­ d a te m p o , a u m e n ta n d o os c u s to s e a c o m p le x id a d e d o p r o c e s s o d e cisó rio . E n tre ta n to , o s b e n e fício s do d e se n v o lv im e n to n ã o p o d e m s e r m e d id o s e x ­

c lu s iv a m e n te p e lo s g a n h o s fin a n ce iro s. A p a r tic ip a ç ã o p o p u la r tra z o u tro s

b e n e fício s à c o m u n id a d e e ao p aís.

No processo de preservação do patrimônio histórico e artístico, ou patri­ mônio humano, ou cultural, observa-se ausência de participação popular. Do processo de excluir a população do que é seu, advém uma série de outros desconhecimentos. O ideal seria a participação total da população local nas decisões relativas à sua própria cidade. Mas é possível uma população com problemas de primeira necessidade, como alimentação, trabalho, com pro­ blemas econômicos, de saúde e sem informações, interessar-se pelo destino de uma igreja barroca, de casas coloniais ou de uma floresta?

A definição mais comum de cultura a identifica como saber privilegiado, refinamento de um conhecimento abrangente, só alcançado por uma elite. A perspectiva antropológica amplia esse conceito. Todo comportamento social que se utiliza de símbolos para construir, criar ou transmitir, é cultura3. Por intermédio da cultura, no sentido elitista, pode-se apreciar a arte barroca e desejar preservá-la. Outro caminho seria integrar tais monumentos à cultura do povo, ao lado do futebol, do carnaval e de outras manifestações populares.

“Q uando se fa la do hom em -cidadão, d o h om em en qu an to ser p o ­ lítico, vem autom aticam ente à tona a questão do hom em produtor e d o hom em consumidor, um a vez qu e o p a p el do Estado é tam ­ bém determ in ado pelo fu n cion am en to d a econ om ia.”1

Cidadania pode ter várias formas de interpretação, porém, tradicional­ mente, segundo Fernandes, tem-se considerado cidadania como mera relação legal estabelecida entre o indivíduo e o país de sua nacionalidade, identifi­ cando aquele que está na posse de seus direitos políticos, cumprindo seus deveres de cidadão. No entanto, o termo possui mais significantes e pode-se ampliar a visão de cidadão como:

“[...] aqu ele ser responsável p ela H istória qu e o envolve. Sujeito ativo na cena política, reivindicante ou provocador d a m utação, d a transform ação social. H om em envolto nas relações d e fo rça

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(15)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Patrimônio Cultural e Identidade: Significado e Sentido do Lugar Turístico 45

qu e com an d am a historicidade e a natureza política. Enfim o ci­ d a d ã o com o ser, hom em e sujeito a um só tem po 4

Compreendendo os conceitos de cidadania, de participação e de patri­ mônio, pode-se fazer uma correlação entre os três e concluir que o patrimônio, na realidade, é uma conseqüência da percepção do homem e seu valor, no contexto no qual está inserido.

Segundo Fernandes, num contexto onde os mais elementares direitos de cidadania são negados à grande parcela da população, a cultura às vezes é tratada como algo supérfluo, e até mesmo desnecessário, em face de outras demandas mais básicas4.

Ainda assim, sabe-se que o que a história imprime no espaço representa memória, reflexão, identidade, ser sujeito local; assim, a falta de esclareci­ mento popular sobre a valorização cidadã de patrimônio acarreta um descaso com o próprio sujeito, enquanto povo e memória.

Compreender o direito à memória como dimensão da cidadania implica reformular as relações entre o sujeito e suas produções enquanto povo. Cabe às instituições, desde a mais básica, à família e à escola em seus mais diver­ sos níveis incorporar o valor de nossas tradições e patrimônio, possibilitando resgatar a importância dos museus, dos sítios, das festas, do artesanato, da regionalidade, para que se possa alcançar, ainda que apenas agora, a dimensão da importância desse tema para nós mesmos.

P

atrimônio

C

ultural

como

D

iferencial

do

L

ugar

O turismo é um fenômeno surgido com o advento da Revolução Industrial, que proporcionou ao homem um tempo heterocondicionado5. Significa di­ zer que, quando o homem passou a ter seu tempo controlado pelo tempo do trabalho e este, por sua vez, passou a significar, sobretudo no meio urbano, o tempo principal da vida humana, surgiu a necessidade da busca de tempo natural, do tempo cíclico, do tempo de ser sujeito de seu tempo.

O turismo adquiriu um significado de reencontro consigo e busca do que se perdeu. Assim, em dados períodos e de acordo com o que se pode pagar, as populações das cidades saem em busca dos chamados paraísos utópicos, sonhando com o exotismo do paraíso e com o encontro consigo mesmo.

Isso decorre da perda, por parte do homem, da possibilidade de construir seu próprio tempo e, ainda, de estar, na maior parte de sua existência, em

(16)

46 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugai

ambientes artificializados em todos os aspectos, exercendo pouco de suas potencialidades.

O turismo surge como essa possibilidade de reencontro, de fantasia, des­ canso, felicidade. Dessa forma, o homem sai em busca de existência enquanto ser, longe de tudo que pode significar um tempo que não seja o tempo autocondicionado, portanto um tempo construído por ele mesmo5.

O que busca esse homem? Que lugares seriam seus preferidos? Nesse con­ texto, vem a referência ao patrimônio cultural mais autêntico, tal como foi relacionado anteriormente.

O que interessa ao fenômeno do turismo são os aspectos mais peculiares de cada lugar, é o caráter mais autêntico de sua gente e seu cotidiano mais original, representado por toda sua gama simbólica, ainda que possa pare­ cer estranho à estética da globalização. No entanto é preciso limitar a ação do turismo para que os lugares e suas culturas mantenham-se íntegros, o que remete ao conceito de turismo sustentável.

A partir da concepção do conceito de sustentabilidade, passou-se a con­ siderar que desenvolvimento sustentável do turismo é, segundo Ruschmann, ap u d Ferreira “aquele que atende às necessidades dos turistas atuais, sem comprometer a possibilidade do usufruto dos recursos pelas gerações futu­ ras”6. Esse conceito de turismo sustentável está intim am ente ligado à sustentabilidade dos meios natural e cultural, considerados como atrativos básicos do turismo. No entanto, dentro da perspectiva do desenvolvimento sustentável, não se pode dissociá-lo da dimensão econômica e social6.

É inquestionável, para o turismo, a importância de cenários naturais, como florestas, rios e lagos de águas límpidas, montanhas e serras com seu ar lim­ po e puro e a diversidade de animais, e as culturas bem peculiares preservadas. O crescimento vertiginoso nos últimos anos do setor de turismo tem mostra­ do benefícios mensurados, por meio da geração de empregos diretos e indiretos, porém tal crescimento econômico dos núcleos turísticos recepto­ res não consegue esconder os danos socioambientais decorrentes dessa atividade6.

A Segunda Guerra Mundial trouxe a preocupação com os problemas ambientais decorrentes das ações do homem, do que na realidade o próprio homem seria capaz de fazer com o planeta, aliado ao crescimento desor­ denado, bem como seus efeitos nas sociedades. Por conta disso, estudiosos passaram a escrever sobre as possibilidades de esgotamento dos recursos naturais e incapacidade da ciência para solucionar tais problemas6.

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(17)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Patrimônio Cultural e Identidade: Significado e Sentido do Lugar Turístico 47

Na década de 1960, diante dos questionamentos formulados pela socie­ dade acadêmica e civil sobre as implicações do modelo de desenvolvimento vigente, um grupo de 30 pesquisadores (cientistas, educadores, econ o­ mistas, hum anistas, industriais e funcionários públicos) reuniu-se na Academia de Lincei - Roma, com o objetivo de “promover o entendimento dos com ponentes variados, mas interdependentes - econôm icos, polí­ ticos, naturais e sociais - que formam o sistema global em que vivem os”. Tal encontro resultou na formação do Clube de Roma, que se caracteriza pela organização inform al que tem corno foco de estudo os problem as da humanidade.

A sustentabilidade, segundo o modelo sugerido pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, criada pelas Nações Unidas em 1983, não só consolidou os princípios do novo modelo de desenvolvimen­ to, como agregou o sentido da sustentabilidade. Conforme proposto no relatório Nosso Futuro Com um , produzido pela referida comissão, o desen­ volvimento para ser sustentável deve “atender às necessidades do presente sem com prom eter a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades”, trazendo para a nossa reflexão a idéia de que se deve planejar e agir sempre considerando um prazo mais longo do que se está acostumado, incorporando um compromisso ético para com as fu­ turas gerações7.

Essa meta, no entanto, só poderá ser alcançada com a obediência dos se­ guintes princípios:

• E qü id ad e social: significa disposição para reconhecer igualmente o di­ reito de cada um.

• Eficiência econ ôm ica: significa que a distribuição e a gestão dos recur­ sos econômicos e financeiros é feita de forma planejada para garantir o funcionamento eficiente do sistema.

• P rudência ecológica: significa a adoção de ações que visam aos seguin­ tes pontos: reduzir o consumo de recursos naturais e a produção de lixo. A partir dos elementos referidos, pode-se representar o modelo de desen­ volvimento e, dessa forma, pode-se perceber que a interseção destes resultará em um modelo de desenvolvimento que contempla a sustentabilidade nas três dimensões6, conforme Figura 4.1.

(18)

48 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

Equ id ade social

Figura 4.1 - Princípios do desenvolvimento sustentável8.

No entanto, o turismo tem proporcionado a certas localidades alguns pro­ blemas como:

• Destruição de espécies animais e vegetais.

• Poluições atmosférica, sonora, dos rios, praias, lagos etc.

• Aculturação da população nativa, que se deixa influenciar por novos cos­ tumes e valores e substitui as atividades tradicionais (pesca, artesanato e agricultura) para trabalhar no setor turísdco, geralmente em funções mal remuneradas, dada sua baixa escolaridade; descaracterização do artesa­ nato, que passa a incorporar gostos dos visitantes; eb alterações nos valores morais, pelo estímulo à prostituição, ao uso de drogas etc.

• Interferência nos valores sociais e, até mesmo, mudanças no modo de falar e vestir, ocasionando interferência negativa no maior bem para o turismo e para sua comunidade: o valor local, o jeito de ser nativo no cotidiano, portanto, seu patrimônio6.

C

onsiderações

F

inais

- Q

uando

o

L

ugar

P

erde

o

A

trativo

"Q uando o h om em se defronta com um espaço qu e n ão aju d ou a criar, cuja história desconhece, cuja m em ória lhe é estranha, esse lugar é a sede de um a vigorosa a lien ação." 1

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(19)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Patrimônio Cultural e Identidade: Significado e Sentido do Lugar Turístico 49

A identidade perdida no global proporciona a perda das referências. O litoral do Nordeste brasileiro sempre terá seu jeito próprio, ainda que um turbilhão de idéias consumistas descontextualizadas possa sugerir. Os sujei­ tos em seus espaços, seja no Nordeste, no Sul do Brasil ou em qualquer lugar do mundo, sabem o que são e valorizam-se por meio de suas construções simbólicas, as quais, por sua vez, refletem sua história, bem como toda a real significação dos lugares, resgatando em suas linguagens, leituras e expres­ sões o que sempre serão em essência.

Retirada do sujeito, sua essência, a qual é o que o identifica e o valoriza no lugar e nele próprio, o lugar e o ser desqualificam-se, restando o desinte­ ressante, o sem sabor, o lugar comum.

Assim como cidadania e cultura formam um par integrado de significa­ ções, da m esm a form a cultura e territorialidade são, de certo modo, sinônimos. A cultura, forma de comunicação do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das relações pro­ fundas entre o homem e seu meio, resultado obtido por meio do processo de viver. Incluindo o processo produtivo e as práticas sociais, a cultura é o que dá a consciência de pertencer a um grupo, do qual ela é o cim ento1.

Dessa forma, cada lugar é definido por sua própria história, ou seja, pela soma das influências acumuladas, provenientes do passado, e dos resulta­ dos daquelas que conservam maior relação com as forças do presente e dão suporte ao desenvolvimento do grupo.

A sociedade é, pois, representada por seu patrimônio, pelo qual ela mesma se mostra. Está representada nele pela ideologia, cultura, religião, instituições, organizações e território, que são o resultado das forças ativas de seus mem­ bros, devendo para o desenvolvimento de qualquer atividade, e principalmente do turismo, ser preservadas e respeitadas.

R

eferências

B

ibliográficas

1. SANTOS, M. O Espaço e o Cidadão.São Paulo: Nobel, 1999.

2. BRASIL. Constituição (1988). Seção II - Da Cultura: Art. 216. In: Constituição da

República Federativa do Brasil.17. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 200.

3. AGUIRRE, A. et al. Cultura e Identidade Cultural.Barcelona: Bardenas, 1997.

4. FERNANDES, J. R. O. Educação patrimonial e cidadania: um a proposta alternati­

va para o ensino da história. Revista Brasileira de História,São Paulo, v. 13, n. 2 5 /

(20)

50 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

5. MUNNÉ, F. Psicosociologia d e i T iem p o L ibre: u n e n fo q u e crítico. M éxico: Trillas,

1980.

6. FERREIRA, A. M. R. In: MARTINS, J. C. (org.). Turism o, C u ltu ra e Id en tid a d e. São

Paulo: Roca, 2003.

7. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente

e Desenvolvimento. N osso F u tu ro C o m u m . 2. ed. Rio de Janeiro: FGV, 1991.

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(21)

'■gíç **■ *•

■: r:>

’ ? . v •

« -'í-v? í«JÉ*'V « v „ j i ■

Capítulo

5

MUSEU, MEMÓRIA E TURISMO:

POR UMA RELAÇÃO DE

LIBERDADE

Ed u a r d o Lú c io G. Amaral

O E

spaço

da

M

emória

e

o

"P

ovo

sem

M

emória

"

Há algumas décadas os museus fazem parte da atração principal do chama­ do turismo cultural. Isso é evidente, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, onde existe uma cultura sedimentada de visita aos museus. Assim, o Museu do Louvre, o Museu do Prado, o Museu Britânico, o Museu Egípcio (em Londres) já são atrações tradicionais, consagrando-se como parte do processo de formação educacional desses mesmos povos. É interessante per­ ceber que, para além do m arketing cultural, construído para divulgar e atrair atenção aos museus, é a sua função educacional que se põe em foco. Sua importância mede-se pela possibilidade de garantir à comunidade e ao mun­ do a guarda dos objetos havidos como necessários à identificação de uma cultura e uma história comum, revitalizando os elos temporais entre o passa­ do e o presente e servindo à reflexão múltipla da história, da memória e da construção de significados, por meio da manipulação simbólica dos objetos.

O Brasil, apesar de possuir um número bastante considerável de mu­ seus, dedicados a todas as especializações possíveis, ressente-se da falta de freqüência de público a eles, fazendo com que se tornem "apêndices 85-7 2 4 1 -6 0 8 -0

(22)

52 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

inúteis da burocracia estatal"1, um luxo desproporcional para um país sufo­ cado por urgentes problemas sociais. Ignorados, os museus, principalmente os oficiais, acabam passando por perene crise financeira, resultado do des­ leixo e da falta de diálogo com a sociedade. Enclausurados em si mesmos, sua função de guardiões de uma história oficial desgastada e sem relação com a comunidade em sua volta faz com que pareçam um corpo estranho na vida de uma sociedade. Apenas em momentos isolados, quando as grandes bienais de arte tomam espaço ou na exposição de algum tema ou artista ilus­ tre, é que os museus passam a ser lugar da freqüência das pessoas.

O senso comum identifica no caráter brasileiro uma tendência à fa lta da m em ória. Desmemoriados, os brasileiros vagariam num eterno presente, em que as preocupações cotidianas não criariam vínculo com o passado vivido ou com a história. As respostas ao problema invariavelmente culpam as pessoas comuns como responsáveis pelo descaso com a memória. Os brasileiros são assim porque são e não há mais nada o que fazer. Sua identidade seria marcada pela falta de identidade. Não resta dúvida de que o argumento do senso comum é resultado de um longo processo de convencimento ideológico - difuso pela sociedade - de que é incapaz naturalmente para as atividades intelectuais. Pode-se até ressaltar a espontaneidade do brasileiro, nunca sua inteligência.

Este texto procura, a partir da colocação do museu como problema, desconstruir tais argumentos, buscando nas práticas do poder as razões para o malsinado desm em oriam en to dos brasileiros. Recuperando, enfim, o espa­ ço do museu como pólo educacional e intelectual, refaz-se a noção de que ele seria consagrado simplesmente ao amontoado dos objetos do passado. Revigorando seus propósitos, busca afastar o discurso derrotista e consagrá- lo ao diálogo com a comunidade em que está inserido. E, finalmente, propor os caminhos para revigorar sua freqüência e estabelecê-lo como atração tu­ rística devidamente respaldada pela comunidade à sua volta.

M

emória

, I

maginário

S

ocial

e

M

useus

O que são os museus? A que eles se prestam? Qual sua função dentro da socie­ dade? Por que são objetos do interesse público? Por que atraem visitantes? Por que estão inseridos no roteiro das atrações turísticas? Precisa-se recupe­ rar determinadas idéias que parecem justificar-se por si próprias. A ação desencadeada na prática da valorização dos museus proporá determinadas

8 5 -7 2 4 1 -6 U8 -U

(23)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Museu, Memória e Turismo: por uma Relação de Liberdade 53

questões cruciais para a continuidade desse desenvolvimento. Aliás, o mu­ seu tem o caráter da dúvida, move-se no terreno pantanoso da história, instiga a todos, propõe questões. Sem o reconhecimento mínimo dessas questões latentes na existência museológica, impossibilita-se seu aproveitamento como referencial turístico.

O nascimento do museu é um dos vários sintomas desencadeados pelo movimento romântico ao longo do século XIX. O romantismo, por sua vez, é filho pródigo da Revolução Industrial européia, que transformara culturas, ex­ tinguira padrões tradicionais de vida e da existência, reorganizara as nações, incitara o imperialismo ávido de matérias-primas e de mercados, enfim, que fundara decisivamente o moderno cotidiano das grandes cidades. Não são pequenas as transformações pelas quais os europeus passaram nesse momento. Desde a luz elétrica até o advento do estado nação; da corrida neocolonial até o trabalho exaustivo das fábricas fumacentas. Para onde se olhasse, contem­ plava-se o avanço do capitalismo impondo um novo modo de vida às pessoas, à organização do espaço (cada vez mais racionalizado) e do tempo (que agora vale dinheiro) e à própria definição de humanidade e de cultura2.

É nesse contexto de privação das formas tradicionais de organização e de vida comunitária que surgirá o romantismo. Algumas de suas características são de extrema importância para a reflexão que se intenta desenvolver. A primeira delas liga-se basicamente à aparição, no vocabulário dos homens, da palavra tédio. Em inglês, spleen, em francês, mélancholie. Pela primeira vez na história os homens passam a sentir um vazio espiritual derivado das novas formas de vida ainda não completamente estabelecidas perante o mundo tradicional já decisi­ vamente extinto*. Uma das principais características desse novo modo de vida é o desenvolvimento do individualismo e da privacidade em oposição ao comunitarismo da vida gregária anterior. A falta de referenciais comunitários ou de grupo impele o homem a uma angústia decisiva e permanente, vítima do ocaso das identidades primitivas e produtora de um desajustamento a um mundo ainda estranho. Sintomático é o nascimento da psicanálise ao fim desse período e, principalmente, o surgimento de doenças da personalidade, como fora a his­ teria no século XIX e a depressão no século XX3’4.

* "A modernidade, pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena comunida­

de e da tradição, substituindo-as por organizações maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segu­ rança oferecidos em ambientes mais tradicionais. A terapia oferece alguém para que possamos nos voltar, numa versão secular do confessionário’’4 (p. 38).

(24)

54 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

A busca por valores que passassem por verdadeiros ou autênticos move­ ram a geração romântica ao passado longínquo ou ao estrangeiro. Romances históricos como os de Walter Scott venderam aos borbotões. Os roteiros fan­ tásticos de viagem de Júlio Verne foram am plam ente lidos, amados e reconhecidos. Idealizaram-se o passado e as culturas estrangeiras, pois se viu nelas a possibilidade de redenção do tédio presente. Não à toa, o romantismo foi um argumento conservador, mas um conservadorismo legítimo, já que vál­ vula de escape às pressões cotidianas. O estrangeirismo, ou o orientalismo, foi de marcada influência na cultura européia da época. Desde Charles Baudelaire (com sua idealização da índia), passando por Claude Monet (e sua idealização do Japão) até a Art Noveau (com seus complicados arabescos em ferro), pres­ sentiu-se a vigorosa ânsia de escapismo presente na sociedade européia5.

Marcou passo com a idealização de outras culturas a idealização do próprio passado: talvez mais digno, talvez mais heróico, mas amplamente reconhecido como portador de valores mais autênticos que o presente. Numa época de busca por novas identidades o estado nacional construiu uma história comum que serviu como referencial para novas solidariedades. Dada a perda das identi­ dades locais pôs-se no lugar uma identidade nacional: meticulosamente construída, fruto de uma necessidade de legitimação ideológica a um siste­ ma político emergente e novo6. A função do museu, nesse contexto, é a de funcionar como um lugar privilegiado da memória (nacional) que se quer hegemônica e atuante dentro de um novo processo de construção de lealda­ des coletivas. Dessa maneira, Abreu afirma:

“No m u n do m odern o a m em ória teria d eixado de estar in corpo­ ra d a à viv ên cia c o tid ia n a d a tra d içã o e d o costu m e, sen d o substituída p o r ‘lugares d a m em ória’. Ou seja, a m em ória teria d eix ad o d e ser um a fu n ção ativa no conjunto da socied ad e p ara se to m a r atributo de alguns. Ao invés d e ser encontrada nó p ró­ p rio tecido social - no costume, na tradição - a m em ória tom aria fo r m a em determ in ados lugares, passan do a depen der d e agentes

especialm en te dedicados à su a produ ção.’’1

O museu já nasce sob o signo da legitimação ideológica e da construção de um passado que se quer hegemônico e total, significando toda a sociedade e respaldando todo o aparato político do estado-nação. É o lugar privilegia­ do da ação artificial e intencional da construção de uma memória coletiva

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(25)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Museu, Memória e Turismo: por uma Relação de Liberdade 55

substitutiva. No cerne de um mundo que se projeta para a modernidade, as identidades são objeto da preocupação oficial. Não existem mais por si, sim­ plesmente. Devem ser organizadas, classificadas, construídas e devidamente etiquetadas. E o museu será o espaço artificial dessa construção identitária. E são os museus nacionais a primeira modalidade de museu a surgir da Eu­ ropa: British Museum (1759), Museé du Louvre (1793), Museu Dinamarquês

(1807), Museo Del Prado (1819) etc.

Mas, se a cultura imaterial de um povo é formada mais por um sentimento de comunidade do que por qualquer outra coisa, que objetos serão da respon­ sabilidade e guarda dos museus? No processo de construção da identidade nacional, foram eleitos determinados objetos que guardam uma inesgotável representação imaginária de parte da sociedade. Nem todas as histórias foram para o museu, nem todos os objetos reputaram-se necessários à construção identitária da nação. A história intocada, imaculada, santa, que merecera aten­ ção estatal, fora a história da elite política do país. E a identificação da elite política com a idéia de nação desmerecera outras possibilidades de passado, outras construções imaginárias, outras identidades. O estado-nação homo­ geneíza o passado, dota-lhe de uma inteligibilidade, de um sentido e de um processo de continuidade. Enfim, transveste-se no seio das aspirações legíti­ mas e populares, quando, na verdade, impõe uma visão de mundo particular à arena do conflito social; e, finalmente, ao consagrar-se como única instância legítima possuidora e produtora de passado, desarma possíveis contestações a sua ação hegemônica e ideológica*. Dessa forma, “a função da memória so­ cial consiste em atualizar e difundir valores no presente. Ao evocar o passado, os agentes envolvidos nessa construção recriam o passado em função de seus interesses e de suas visões de mundo no presente”7.

E o museu? Deve ser desconsiderado pela sociedade, já que é uma arma­ dilha ideológica de uma elite política interessada na manutenção do seu status social? As condições que permearam seu nascimento não podem confundir- se com as novas possibilidades do seu uso e, então, se deve estar atento ao potencial educativo e à nova ação dos museus no seio das coletividades. Sem

* “Os vestígios de um passado construído para ser cultuado serviram para reforçar uma

concepção de patrimônio e o destituía de toda historicidade: reiteravam e sacralizavam a história do Estado como se fosse a história de todos os homens; erigiam no plano simbóli­ co a unidade da nação capaz de ocultar as diferenças e os conflitos; e, acima de tudo, constituíam o mais imponente testemunho do próprio progresso que se buscava afirmar como uma linha de inteligibilidade do passado e de ocultamento dos conflitos”1 (p. 73).

(26)

56 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

esquecer que a história é um instrumento potencialmente ideológico e pas­ sível de manipulação, não se deve ficar alheio à sua função libertadora e reflexiva. Se a história e os historiadores não são neutros, também não são simples manipuladores das consciências. Que a história não é toda a verda­ de ou todo o passado, como realmente aconteceu, também não é toda a mentira, uma grande farsa arquitetada por uns poucos para exercer seu do­ mínio sobre muitos. É sobre a função educativa e libertadora dos museus que se tratará a seguir.

M

emória

C

oletiva

e

F

unções

E

ducativa

e

L

ibertadora

dos

M

useus

Instrumento eficiente de fixação das identidades coletivas, o museu guarda ampla possibilidade de reflexão e deve constituir interlocutor privilegiado entre a sociedade e seu passado. Se útil na caracterização do espírito n acio­ nal, não será menos válido para o fortalecimento e afirmação das múltiplas identidades coletivas que se formam nas solidariedades cotidianas. Nesse sentido é que podem surgir instituições como o Museu da Cultura Afro-Bra­ sileira em Salvador (MAFRQ). Recuperando os vestígios de um passado comum8, resgatando e valorizando uma memória que se quer viva; afirman­ do, enfim, os valores que determinada comunidade ou grupo étnico quer excelentes. O Museu da Cultura Afro-Brasileira é um exemplo bem-sucedido quando se pensa no museu como interlocutor social.

Assim, mais do que um bastião da afirmação social de grupos tradicional­ mente marginalizados pela história social, o museu torna-se um espaço dedicado à cidadania. Perceber que as diferentes histórias coletivas criam uma teia de significados no diálogo com o tempo, que criam e recriam o mundo, que oferecem projeções de futuro e sentidos àquela comunidade é uma das razões do sucesso do museu como instituição: no reforço do diálogo crítico e reflexivo com a sociedade ou com a comunidade que o cerca e o inclui.

Ser o espaço das diversas experiências temporais, contrapondo visões de mundo e de sociedade, e incentivar a reflexão no tempo e sobre o tempo são algumas das vocações dos museus. Impulsionar a sua democratização e con- graçamento com o mundo em sua volta tem sido a preocupação das políticas museológicas no Brasil, conforme documento final do Congresso Patrimônio Histórico e Cidadania, realizado em São Paulo, 1992:

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(27)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Museu, Memória e Turismo: por uma Relação de Liberdade 57

“Art. 18. As políticos museológicas devem con tem plar os diferentes sujeitos históricos, deixando de relegar os m useus a m onum entos reiteradores de um a exaurida m em ória oficial, contrapondo diver­ sas experiências históricas e apon tan d o para um diálogo com um público cada vez m ais am plo. Ao lado d e questões técnicas e cientí­ fica s de conservação, estudo e fo rm a çã o d e seus acervos, os museus devem trabalhar no sentido de sua dem ocratização e enraizam ento social, transform ando-se em instrumento d efo rm a çã o da cid a d a ­ nia nos vários cam pos da ação h u m an a.”9

Se a história não é patrimônio de uma elite, se é compreendida como uma teia de experiências humanas compartilhadas, multifacetada e plural, seria de se esperar que os museus afirmassem, da mesma forma, sua voca­ ção democrática e seu diálogo com o tempo. Mesmo surgindo dentro de um contexto que apontava para uma homogeneização do passado pela via do estado nacional, a crítica da ideologia nacional estimulou a recriação do museu. Garantidas as vias pelas quais os diversos grupos se reconhecem na história, o museu moderno amplia sua atuação, consolidando-se como pólo cultural e educativo.

A finalidade educativa dos museus é expressa no diálogo que mantém com as mais diversas áreas do saber. Por exemplo, no urbanismo, os museus podem gerar uma intensa revitalização das cidades, atraindo empresas e bens culturais e consolidando novos pólos de atração turística. Caso mais espe­ tacular é o do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (RJ), de forte impacto social por toda a orla leste da baía de Guanabara e que projetou para Niterói a imagem de um município de alta qualidade de vida. Em Fortaleza, o Centro Cultural Dragão do Mar conseguiu, por exemplo, a façanha de revitalizar todo um setor da cidade, degradado pelo descaso público. Os museus de arte Guggenheimer tiveram esse papel nas cidades em que se instalaram (Nova York, Veneza, Bilbao e Las Vegas e, proximamente, o Rio de Janeiro).

Na área de formação profissional, pode-se tomar um pólo profissional muito interessante, desenvolvendo atividades técnicas específicas e promovendo a formação de conservadores, restauradores e museólogos. São constantes os diálogos com historiadores e antropólogos, e esses são alguns dos espaços de referência para sua atuação. Arquivistas, biblioteconomistas e designers têm atuado cada vez mais nos museus, principalmente se eles consolidam-se como centros de pesquisa e estudos. Administradores de empresas, turismólogos e

(28)

58 Patrimônio Cultural - Da Memória ao Sentido do Lugar

arquitetos têm uma função importante a cumprir nos museus, desde que se fortaleça a compreensão da gestão dos bens culturais como segmento impor­ tante a ser ocupado no mercado. As universidades locais também podem e devem manter diálogos com os museus, principalmente no que tange às ques­ tões do desenvolvimento científico, tecnológico e cultural. Cada vez mais as universidades brasileiras mantêm museus dentro do seu âmbito institucional, os quais se prestam aos mais variados interesses, como os museus antropoló­ gicos, arqueológicos, artísticos, da ciência e tecnologia, oceanográficos etc.

O novo movimento dos museus abrange ainda a instituição dos museus co­ munitários, dos museus de bairro, dos centros de cultura popular, dos museus profissionais (dos tipógrafos, dos ferroviários), dos museus temáticos (da cacha­ ça, do automóvel, de cera, da moda, da imprensa), dos museus institucionais (de bancos e empresas que conseguem formar um patrimônio e mantê-lo dis­ ponível à visitação do público), dos ecomuseus, entre outras possibilidades.

A vocação do museu é a do diálogo. Ele pode vir a se tornar uma institui­ ção atuante socialmente, desde que assuma essa vocação. Como instituição de ensino, formando profissionais e consagrando-se como espaço de refle­ xão multidisciplinar e produtora de conhecimento; como instituição cultural, motivando e atuando nos mais diversos segmentos da sociedade e da cida­ de, estabelecendo-se como elo entre as políticas públicas de cultura e a comunidade; como atração turística, angariar visitantes de elevado padrão cultural, estimulados pela possibilidade do intercâmbio cultural, tendo no museu o centro de referência.

Apesar do bom número de museus no Brasil, raros são os que agem num amplo espectro multidisciplinar. Caso a ser louvado é o centenário Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém (PA), que, além de ser um guardião do patrimônio ambiental local e produtor de conhecimento, mantém alto pa­ drão em pesquisa, principalmente nas áreas de botânica, zoologia, biologia e antropologia. Esse também é o caso do Museu de Mineralogia e Geologia da Escola de Minas, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). O Mu­ seu Nacional do Rio de Janeiro, pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), sedia há anos o curso de Antropologia e consagra-se como pólo de excelência na pesquisa social no Brasil. Não resta dúvida de que ou­ tras instituições esforçam-se para sua recriação: de espaço de depósito de objetos antigos a espaço de construção de cidadania e conhecimento. Esse é o caso do Museu do Ceará, em Fortaleza (CE), que há alguns anos trava saudável diálogo com a história e com a sociedade cearense por meio da publicação

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

(29)

8 5 -7 2 4 1 -6 0 8 -0

Museu, Memória e Turismo: por uma Relação de Liberdade 59

periódica da C oleção Outras Histórias e dos Cadernos Paulo Freire, todos de alto nível científico e cultural relativos a temas ligados ao acervo.

A percepção libertadora do museu enfatiza, assim, a educação. Não como urn doador de cultura, simplesmente, mas de instituição educacional consa­ grada à pesquisa e à reflexão temporal*. Integrados social e culturalmente, os museus legitimam sua vocação cidadã, não apenas na pesquisa ou no alto deba­ te acadêmico, mas também na formação profissional e na geração de emprego e renda (como acontece nas iniciativas que formam conservadores e restaura­ dores do patrimônio). Educar para a liberdade significa garantir a autonomia humana ante os desafios modernos, não só o desafio antiideológico e manipulador do conhecimento, mas também o desafio da construção de urna sociedade mais justa, mais limpa e plural e nesse sentido, os museus, sendo instituições cidadãs, têm tal compromisso natural10.

M

useus

e

T

urismo

Os museus, principalmente de arte, têm sido, juntam ente com os sítios arquitetônicos tombados, as grandes “vedetes” do chamado turismo cultural**. A cada ano, milhões de pessoas deslocam-se pelo mundo em busca dos ícones artísticos da cultura mundial. Os destinos, apesar de tudo, são quase sempre os mesmos: os museus europeus e os gênios da pintura ocidental. Sedi­ mentou-se no nosso mundo globalizado que a visita - quase religiosa - a esses símbolos são referenciais obrigatórios a quem queira se identificar como culto.

* “Mostrar o típico, a identidade cultural ou resgatar a memória são expressões que re­

velam a fragilidade educativa de uma proposta museológica. O papel do museu não é revelar o implícito, nem o explícito, nem é resgatar o submerso, não é dar voz aos excluídos (nem aos incluídos...), não é oferecer dados ou informações. Em suma o museu não é um doa­ dor de cultura. Sua responsabilidade social é excitar a reflexão sobre as múltiplas relações entre o presente e o passado, através de objetos no espaço expositivo”10 (p. 127).

** Sobre turismo cultural, a definição do Conselho Internacional dos Museus (ICOM),

expresso na sua declaração de Québec de 1976, é a seguinte: “O turismo cultural é aquela forma de turismo que tem por objetivo, entre outros fins, o conhecimento de monumen­ tos e sítios histórico-artísticos. Exerce um efeito realmente positivo sobre estes tanto quanto contribui - para satisfazer seus próprios fins - a sua manutenção e proteção. Essa forma de turismo justifica, de fato, os esforços que tal manutenção e proteção exigem da comunida­ de humana, devido aos benefícios sócio-culturais e econômicos que comporta para toda a população implicada” (Disponível em: http://www.revistamuseu.com.br/legislacao/turismo/ tur_cultural.htm - Acesso: 07/M ar./2004).

Referências

Documentos relacionados

Já segundo Roche (1969), as palavras colono e colônia têm origem no idioma alemão, respectivamente nos termos Kolonist (que se refere ao homem que desbrava e cultiva a terra)

Já há alguns casos em que a ação de preservação iniciada pelo IPHAN atingiu esse objetivo, com o apoio de outras entidades – este é o caso das fortificações de Santa

Os sete artigos que compõem esta publicação têm como preocupação problematizar o patrimônio natural e cultural da Nação como um importante elemento de formação da cidadania,

Esse bem cultural, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e também pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais

Assim, foi possível identificar permanências e rupturas nas ideias e práticas em torno da articulação entre planejamento, conservação e turismo cultural nos Encontros de

Matéria Médica Pura reúne todos os sinais e sintomas de todos os experimentadores de determinadas drogas, ou substâncias, no propósito de registrar potenciais medicamentosos, estando

Produção de 5 vídeos de divulgação do projeto, divulgação dos artistas e shows em cada uma das cidades em redes sociais e envio para os meios de

Pleiteia, no mérito, seja o recurso conhecido e provido, para reformar a decisão agravada, com a concessão da tutela antecipada no sentido de “ suspensão da exigibilidade