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Apesar do tema da amizade ter sido mais bem discutido na Ética, sua mais importante contribuição repercute na compreensão da Política. É com a introdução de uma temática desta natureza que se deu início à avaliação dos meios pelos quais se deveriam estabelecer os laços que unem uma coletividade feliz.

Ora, se o homem seria naturalmente incapaz de bastar-se a si mesmo, cumpre neste momento entender o significado da amizade, pois notamos que sem ela a própria felicidade se afiguraria impossível.

Seria pela amizade, pois, que se estreitam os laços da comunidade de cidadãos, de modo que o exercício do poder, por seu intermédio, tornar-se-ia mais assegurado, porquanto uma vez levada uma vida próspera, constituiria condição indispensável ter-se por perto pessoas amadas.

Aliás, seria primordialmente pela amizade que praticamos a excelência moral de modo integral. Por exemplo, um homem se tornaria mais susceptível de mostrar-se generoso com um amigo do que com uma pessoa não amada, ou de afigurar-se mais gentil com os seus entes mais próximos do que com aqueles estranhos.

Portanto, se a vida moralmente excelente fosse uma parte indispensável da felicidade humana, e se as relações de amizade fossem mais propícias à prática da excelência moral, a felicidade, então, não seria possível na ausência de certo número de amigos.

No início do Livro VIII da Ética, Aristóteles (2009, p. 237) asseverou que nem tudo pode ser objeto de amor, senão somente aquelas coisas que seriam essencialmente

amáveis. Seriam elas: o útil, o agradável e o bom.

Além disso, Aristóteles (2009, p. 238) acresceu que a amizade só seria possível na observância e na obediência de três condições básicas, quais sejam: a) o sentimento de

afeição mútua; b) a consciência da afeição que um sente pelo outro; e c) o fundamento

de tal afeição estar ou no bom, ou no útil ou no agradável.

Logo, de imediato, tornou-se possível distinguir a existência de três classes diferentes de amizade, isto é, a amizade fundada no útil, a amizade fundada no agradável e a amizade fundada no bom.

A amizade sob o fundamento da utilidade apresentar-se-ia entre homens que não se amariam pelo que cada um representa ou realmente é, mas somente à medida que, da amizade, resultem certos benefícios particulares para cada uma das partes. Este tipo de

amizade seria muito comum e mesmo indispensável entre cidadão e estrangeiro, ou entre cidades diferentes, pois não se trataria cordialmente um estrangeiro pelo que ele é, mas somente pelos benefícios que desta cordialidade poderiam resultar. Portanto, isto quer dizer que a amizade fundada no útil nunca estabeleceria ações que visem, absolutamente, o bem do amigo, mas somente ações que sirvam de suporte para o posterior desfrute de um bem próprio. Seria o que, por exemplo, acontece na guerra. O verso de Arquíloco (2008, p. 63) retrata bem esta condição de amizade: “Glauco, esse é aliado amigo apenas em combate.” Tais amizades, ademais, se desmanchariam com facilidade, sobretudo quando um amigo deixa de ser útil ao outro.

Por outro lado, a amizade que se funda no agradável apresentar-se-ia entre homens que também não reconhecem o amigo pelo que ele representa ou pelo que ele é, mas somente à medida que da mútua convivência resulte o agradável ou o prazeroso para ambas as partes. Esta classe de amizade seria muito comum entre crianças e entre aqueles que se movem pelas paixões, uma vez que tanto as primeiras quanto os segundos sempre têm o prazer como o objeto de suprema busca. Logo, a amizade que se funda no agradável visaria sempre ao benefício próprio e não o do amigo. Não se constituiria, portanto, enquanto verdadeiro amor, pois a afeição que os amigos sentem um pelo outro se resumiria somente no agrado que um é capaz de proporcionar ao outro. Tais amizades, assim como no caso anterior, se destruiriam com facilidade, pois a partir do momento em que uma das partes não goza mais o agrado que esperava gozar, procurar-se-á outra pessoa que possa oferecer o prazer. A este tipo de amizade o seguinte dístico de Safo (2003, p. 123) constitui belo exemplo:

ó mãe querida, não consigo mais tecer a trama:

queimo de amor por um moço, e a culpa é da lânguida Aphrodite.

Por fim, a amizade que se funda no bom seria a verdadeira amizade, ou aquela diante da qual todas as demais se apequenariam. A natureza da afeição que a amizade fundada no bom apresentaria consiste no querer o bem do outro pelo que ele representa e pelo que ele realmente é. Assim sendo, quando um amigo age de modo benévolo com outro, ele não o faz esperando a retribuição de um bem, ou de um prazer imediato. A própria ação de agir bem se conjugaria com o agradável; mas não aquele agradável de natureza inferior e acidental, isto é, os prazeres corporais e restaurativos. Admitiu-se, ademais, que a amizade fundada no bom seria a mais estável e duradoura entre todas as

demais classes de amizade, ao passo que a possibilidade de sua consolidação só se daria entre pessoas verdadeiramente excelentes do ponto de vista moral. Tal amizade, com efeito, deveria ser aquela que funda os laços dos cidadãos que exercem o poder, pois assim poderiam manter-se soberanos pela mútua proteção que oferecem uns aos outros. Outro dístico de Safo (2003, p. 107) representa bem este gênero de amizade:

é belo, na duração de um olhar, o belo; o valoroso para sempre há ser de belo

Dito isto, Aristóteles (2009, p. 243) sintetizou essa discussão do seguinte modo:

Sendo a amizade, portanto, dividida nessas espécies, as pessoas inferiores constituirão amizades por prazer ou por utilidade, caso sejam semelhantes nesse respeito, enquanto indivíduos bons serão amigos por causa deles mesmos entre si, uma vez que são semelhantes no ser bons. Estes últimos, portanto, são amigos num sentido absoluto, ao passo que os primeiros o são fortuitamente e mediante sua similaridade com os últimos.

Vê-se, portanto, que o sentido absoluto de amizade seria aquele em cujo fundamento consiste a benevolência mútua das ações entre homens de disposição moral excelente. Isto equivale dizer que caso o indivíduo não tivesse sido educado nas excelências morais, provavelmente não ultrapassaria os vínculos de amizade fundados no prazer ou na utilidade. Pois agir em benefício do outro por si mesmo seria ato da mais nobre humanidade, sendo que este tipo de ação só poderia ter as excelências morais por fundamento.

Até o presente momento a amizade foi somente tratada sob o aspecto da equidade. Aliás, de acordo com o que até agora se discutiu, a amizade verdadeira só se daria entre iguais e moralmente excelentes. No entanto, a amizade também seria possível entre

desiguais.

Ora, enquanto as amizades fundadas no agradável, no útil e no bom geralmente se dariam, conforme cada caso, entre crianças da mesma idade, jovens da mesma idade, varões da mesma idade e velhos da mesma idade, estas mesmas modalidades de amizades poderiam ser observadas nas relações entre pai e filho, marido e mulher, senhor e escravo, em suma, entre desiguais, embora esta acepção constituísse um sentido imperfeito do próprio termo amizade, tal como acima o apresentamos.

Acresce-se a isso que a essência da amizade entre desiguais implicaria sempre a superioridade de um em relação ao outro. Não obstante, o cidadão seria sempre superior relativamente à esposa, ao filho e ao escravo. Logo, como de imediato não seria possível verificar igualdade nestas relações, resulta óbvio que os inferiores devessem demonstrar mais amor ao superior do que o superior aos inferiores, caso as partes queiram manter uma relação proporcional de amistosa amizade.

Além disso, a amizade entre pai e filho (paternal), marido e mulher (nupcial), senhor e escravo (despótica), seriam específicas, pois em cada caso ambas as partes se afetam de diferentes modos, o que resulta em heterogêneos tipos de afeição mútua. Como a mulher, o filho e o escravo teriam funções e valores sociais distintos, caberia ao cidadão estabelecer os justos padrões de afeição de acordo com cada caso.

Que fique estabelecido desta forma o conceito de amizade.