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APÊNDICE V Condição do produtor quanto ao acesso à terra na Região Extremo Oeste Catarinense

Capítulo 2. A AGRICULTURA FAMILIAR E AS POLÍTICAS PÚBLICAS AGROPECUÁRIAS NO BRASIL

2.1 A DIVERSIDADE DA AGRICULTURA FAMILIAR DIANTE DO REFERENCIAL MODERNIZANTE

2.1.1 O conceito de campesinato

Em termos conceituais, Wanderley (2014) destaca que o termo camponês tem duas conotações no Brasil. A primeira o associa com formas tradicionais de produção, caracterizadas pela pequena escala, emprego escasso de recursos produtivos e baixa integração ao mercado e

às cidades, sendo por vezes considerado expressão de atraso econômico e social. Nesse caso, para expandir as liberdades e alcançar o desenvolvimento, as características camponesas deveriam ser superadas via integração aos mercados. A segunda conotação tem um caráter “político”, que advém do seu emprego nas lutas por reforma agrária nas décadas de 1950 e 1960 (Ligas Camponesas76), o qual foi resgatado por movimentos sociais contemporâneos. Além do caráter subversivo, essa última carrega uma visão idílica de relação amistosa com a natureza e de superioridade moral das trocas de reciprocidade em relação às trocas mercantis excludentes. Esse segundo entendimento é mobilizado por movimentos sociais para criar uma identidade que se aproxima das demandas contemporâneas por um novo tipo de desenvolvimento, de caráter sustentável. Nesses termos, o presente estudo adota o conceito de camponês não como retorno ao passado, mas como referencial complementar - na medida que características de origem camponesa permitem enfrentar contradições da integração aos mercados (PLOEG, 2006).

Em termos conceituais, Ellis (1988) destaca que o camponês clássico se caracteriza pela dimensão familiar e pela integração parcial a mercados imperfeitos ou incompletos. A dimensão parcial se fundamenta em dois elementos: a) a unidade camponesa realiza produção e consumo, atendendo grande parte de suas necessidades produtivas e familiares sem trocas mercantis (autoprodução e reciprocidade); consequentemente, essa elevada autonomia lhe confere b) flexibilidade na relação com os mercados, na medida em que os afastamentos temporários não comprometem sua reprodução social. Quando amplia-se a integração, as trocas ocorrem em mercados imperfeitos (incompletos), adjetivação que se refere a sua inconformidade com a teoria econômica clássica77. Ou seja, o mercado

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As Ligas Camponesas eram um movimento rural criado a partir de 1946 com o objetivo de defender a realização da reforma agrária e a representação dos interesses dos trabalhadores rurais no Brasil. Em virtude de sua origem e organização estarem ligadas ao Partido Comunista do Brasil (PCB), partido pelo qual Francisco Julião foi deputado estadual e federal, suas propostas e ações foram associadas ao referencial socialista. Embora essas organizações já sofressem repressão do Estado desde sua origem, com o Golpe Militar de 1964, grande parte das lideranças do partido e das Ligas foram presos, assassinados e/ou exilados.

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Tal afirmação não implica dizer que existam mercados perfeitos, mas busca destacar sua distância em relação ao conceito ideal e hipotético da existência desses mercados (ELLIS, 1988).

seria baseado em relações pessoais e caracterizado pelo número restrito de intermediários (comerciantes), inexistindo a ampla opção de escolhas que fundamenta a racionalidade do Homo economicus78. Essa forte vinculação do indivíduo à estrutura sociocultural local restringe inclusive as opções de escolha e as oportunidades para trilhar uma vida diferente de seus pais.

Embora se relacione com a sociedade, recebendo influências da estrutura social, econômica, política e cultural em que está inserida, a unidade camponesa busca manter flexibilidades para enfrentar contingências que possam surgir. Em sua busca por autonomia, o modo de produção camponês é caracterizado pela combinação do cultivo de lavouras e criações voltadas à comercialização79 (obtenção de dinheiro para adquirir mercadorias e serviços necessários à família) com atividades geradoras de alimentos destinadas ao autoconsumo. Essa destinação das lavouras e criações “para o gasto” é marcada pela duplicidade de funções verificada na alternatividade autoconsumo/venda. Ou seja, pode destinar-se ao consumo direto na unidade produtiva (família, animais) ou ser comercializada para obter recursos que garantem a aquisição de itens imprescindíveis à família (WANDERLEY, 1999).

Para diminuir os riscos diante das oscilações de mercado, o camponês produz seus insumos e mantém atividades passíveis de alternatividade mesmo que a rentabilidade esperada por área seja inferior àquela obtida com as culturas/criações destinadas à venda. Nesses termos, destaca-se que a comercialização do “excedente camponês” se refere às atividades destinadas inicialmente ao autoconsumo. Em certos casos, essa venda se destina a transformar em moeda os alimentos que poderiam ser perdidos em ausência de infraestruturas de conservação e beneficiamento (silos, galpões, agroindústrias etc.). Com mais intensidade no Nordeste brasileiro, a venda de animas também está associada à falta de alimentos diante da seca (WANDERLEY, 1999; GARCIA; HERÉDIA, 2009). Em outros casos, a negociação da produção “para o gasto” persiste como

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Além do interconhecimento, que restringe a impessoalidade das transações, muitas transações se caracterizam pela ausência do uso do dinheiro, realizada mediante cadernetas. Dessa forma, as próprias transações são interconectadas, não havendo a circulação de dinheiro e seu efeito atomizador (SIMMEL, 1998). 79

No Sul do Brasil é comum os agricultores chamarem essa atividade de “carro chefe” no sentido que uma atividade representa a principal fonte de renda, a qual se somam outras complementares.

alternativa em ocasiões que seus preços tornam-se vantajosos, sendo substituídos por opções disponíveis na unidade produtiva, ou até mesmo no mercado. A venda pode ocorrer ainda em situações desfavoráveis, mas forçadas para enfrentar dificuldades financeiras (fixas ou ocasionais), a exemplo do pagamento por serviços de saúde80.

Para além de ser caracterizado como um modo de produção, Mendras (1978) entende que o camponês clássico tem sua existência imbricada nas sociedades em que está inserido. Historicamente, a baixa capacidade de transporte e comunicação com o restante do mundo resultou em certo isolamento, com reflexos sobre sua dinâmica econômica e sociocultural. Logo, esse autor trabalha com o conceito de “sociedades camponesas”81

, que seriam caracterizadas pela: a) autonomia demográfica e sociocultural parcial em relação à sociedade global; b) estruturação com base nos grupos domésticos (famílias); c) sociedades de interconhecimento, onde todos se conhecem nos distintos aspectos de suas personalidades e a vida social é profundamente marcada por relações sociais de reciprocidade; d) sistema econômico de autarquia relativa baseado na produção local, inclusive dos meios de produção, havendo poucas trocas com a sociedade global; e e) a realização do transporte de produtos e de informações com o ambiente externo via mediadores (comerciantes), normalmente com assimetria de informações e de poder.

A constituição de um campesinato segundo o modelo clássico europeu no Brasil é alvo de controvérsias. Como exemplo, enquanto Caio Prado Jr. defende a tese da não formação dessa categoria social,

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Em casos de dificuldades econômicas ou área reduzida, os estudos apontam ainda para o uso complementar do trabalho remunerado externo. Esse fenômeno, denominado na atualidade de pluriatividade, ou trabalho acessório na formulação original de Chayanov, é caracterizada pela obtenção concomitante de rendas agrícolas e não agrícolas por integrantes de uma mesma família de agricultores. Os estudos conduzidos na última década evidenciam que a renda não agrícola cumpre papel complementar às agropecuárias para viabilizar a continuidade e viabilidade de muitos estabelecimentos familiares (SCHNEIDER, 2005).

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A expressão “sociedades camponesas” passa a ser adotada no interior das ciências sociais especialmente nos estudos antropológicos realizados por Robert Redfield nos anos 1940. Tal expressão caiu em desuso e, segundo Abramovay (2007), seria até impróprio, pois não é possível encontrar regras próprias de funcionamento que a diferencie de outras sociedades (capitalistas, socialistas, feudais). Nesse caso, esse autor defende que o termo aparentemente mais apropriado seria comunidades camponesas.

José de Souza Martins entende por camponeses brasileiros o grupo de agricultores que ficou excluído do pacto político que gestou o fim da escravidão. A principal explicação para essas diferenças está associada à passagem da escravidão para o regime de trabalho assalariado. Nessa direção, Cunha (2012) diferencia três origens de camponeses brasileiros, sendo que somente um se aproxima mais do modelo clássico:

[a)] proveniente de antigas zonas agroexportadoras, como as áreas de antigos engenhos de cana-de-açúcar, algodoeiras e cafeeiras - quando se formaram arranjos entre proprietários e foreiros, colonos ou arrendatários, trabalhadores camponeses que moram no interior da propriedade – e se originam núcleos camponeses nos arredores dessas propriedades, em “terras livres”; [b)] o denominado campesinato de fronteira, que consistiu na implantação de núcleos camponeses que garantiram o povoamento de áreas distantes, muitas vezes ligados à expulsão de povos indígenas (...); e [c)] o campesinato que mais se aproxima do modelo europeu, que ocorreu no sul do país, em conseqüência do incentivo, por meio de doação de terras pelo Estado Imperial, a imigrantes assentados em colônias (CUNHA, 2012, p. 3-4). Embora entenda-se que o modelo clássico de camponês tenha baixa expressão no caso brasileiro, a mobilização desse conceito permite evidenciar características que continuam presentes na agricultura familiar. Como destaca-se a seguir, para além das diferenças de origens na história de formação e de culturas dos povos que a constituíram, verifica-se a existência de distintas trajetórias de integração com a sociedade global, o que explica grande parte da diversidade social presente no interior da agricultura familiar brasileira.

2.1.2 A heterogeneidade da agricultura familiar e sua distinção em