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Conceito de lesão vertebro-medular

A LESÃO VERTEBRO-MEDULAR

3.2 Conceito de lesão vertebro-medular

Numerosos autores são unânimes em definir lesão vertebro-medular (LVM) como sendo um quadro clínico que, segundo a natureza e especificidades dos factores etiológicos associados, produz alterações motoras, sensitivas e neuro-vegetativas (Desert, 1980; Krause, 2001; Staas et ai., 1992).

A história da avaliação e tratamento deste tipo de lesões, que é longa no tempo e extensa nas dificuldades, percorreu uma série de etapas que tornaram possível um aumento progressivo e qualitativamente valorizável da sobrevida (Fine, 1980; Kennedy, 1991; Laskiwski & Morse, 1993).

A mais antiga documentação disponível sobre LVM foi encontrada no papiro cirúrgico de Edwin Smith, que se julga ter sido escrito entre 3000 e 2500 a.C. (Kakulas,

1999). O seu autor parece ter sido o médico do Faraó, que descreve um sujeito com "fractura do pescoço que estava paralisado em todas as suas extremidades, cuja função excretória era caracterizada pelo gotejamento constante, e cujos músculos definhavam" (Freed, 1984, p. 667). A prescrição terapêutica era simples e concisa - "doença que não deve ser tratada" (Elsberg, 1931, citado por Freed, 1984, p. 667). Atendendo a que o mecanismo e sintomatologia da lesão eram mal compreendidos, esta 'forma de tratamento' foi adoptada durante séculos. Histórico é também o episódio ocorrido com o almirante inglês Lord Nelson, que, após ter sido atingido na medula por uma bala disparada a partir de um navio francês, durante a Batalha de Trafalgar, terá dito ao médico do navio - "Todo o poder de movimento e sensação abaixo do meu peito

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desapareceu" (citado por Vikhanski, 2001, p. 7). Este respondeu - "Meu Senhor, infelizmente para o país, não se pode fazer nada por si" (p. 7), tendo Lord Nelson sobrevivido apenas mais três horas.

Embora progressivamente tenham acontecido alguns avanços na abordagem das lesões medulares, designadamente no que concerne aos procedimentos cirúrgicos, só o aparecimento de um elevado número de sujeitos com LVM, consequente às batalhas travadas durante a I Guerra Mundial, despertou um inevitável interesse médico perante este tipo de lesões. Segundo Kuhn (1947, citado por Freed, 1984), 80% dos soldados americanos que foram afectados por este quadro traumático durante a primeira Grande Guerra morreram antes de terem sido evacuados e, dos que o foram, apenas 10% continuavam vivos decorrido um ano após a lesão. A maioria dos óbitos entre os pacientes com LVM que sobreviviam à fase inicial eram provocados por patologia das vias urinárias e por úlceras de decúbito, complicações estas que hoje são facilmente prevenidas ou controladas.

Com a II Guerra Mundial, tendo a tecnologia belicista atingido um desastroso nível de destruição, verificou-se um ainda maior acréscimo de LVM, levando ao aparecimento duma consciência social crítica, defensora dos valores da condição humana, que exigia uma melhoria imediata das condições assistenciais (Pinheiro, 1994; Seidel, 1982).

Desde então, a esperança média de vida dos sujeitos traumatizados vertebro- -medulares aumentou significativamente (Gibson, 1992), facto para o qual muito contribuíram os trabalhos pioneiros de D. Munro nos Estados Unidos e de L. Guttman na Grã-Bretanha (Staas & Ditunno, 1992). Este último, neurocirurgião judeu em fuga à

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Alemanha Nazi, deixou claro que os mecanismos lesionais produzem uma destruição do tecido nervoso medular, bem como alterações vasculares na área afectada, tendo ainda defendido que a evolução clínica deste quadro atravessa várias fases, com manifestações sintomatológicas diferenciadas, que exigem procedimentos terapêuticos específicos (Guttman, 1976). Os ensinamentos transmitidos por Munro e Guttman aos profissionais de saúde contribuíram em larga escala para a eliminação de atitudes derrotistas, dando lugar ao aparecimento de programas de reabilitação activos e dinâmicos.

Ao debruçarmo-nos sobre o conceito de LVM, importa referir que este pode assumir diferentes especificidades, consoante o nível e a extensão da lesão.

Genericamente, uma lesão medular ao nível cervical, originará uma tetraplegia, ou seja, uma paralisia dos membros superiores, inferiores e tronco, enquanto uma lesão nos segmentos dorsais, lombares ou sagrados será responsável por um quadro de paraplegia, manifesta através da paralisia dos membros inferiores e de todo ou uma

parte do tronco (Freed, 1984).

Quanto à extensão da lesão, pode ocorrer uma secção medular completa, havendo uma paralisia e anestesia totais abaixo do nível lesionai, ou incompleta, provocando uma parésia mais ou menos acentuada e problemas de sensibilidade mais ou menos evidentes.

Tendo em conta o nível da lesão, fala-se então em paraplegia/tetraplegia aquando de lesões completas, e de paraparésia/tetraparésia aquando de lesões incompletas. Saliente-se, no entanto, que a utilização destes dois últimos termos tem vindo a ser

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desencorajada, uma vez que descrevem as lesões incompletas de uma forma imprecisa (Maynard et ai., 1997).

Preocupada em homogeneizar a terminologia usada na avaliação das LVM, a American Spinal Injury Association (ASIA) desenvolveu em 1982 a primeira edição dos International Standards for Neurological and Functional Classification of Spinal Cord Injury, a qual tem sido alvo de sucessivas actualizações, tendo a mais recente ocorrido em 1996.

De acordo com os responsáveis pela publicação desta última revisão (Maynard et ai., 1997), as LVM continuam a ser divididas, de acordo com as suas características, em tetraplegia/paraplegia e completa/incompleta, respectivamente no que concerne ao nível e extensão lesionais, acrescentando, no entanto, uma maior precisão nos critérios classificativos.

Deste modo, a tetraplegia é definida como a perda ou diminuição da função motora e/ou sensorial nos segmentos cervicais da espinal medula, causada pela destruição de elementos neurais dentro do canal medular, resultando numa alteração da função nos membros superiores e inferiores, bem como no tronco e órgãos pélvicos. Segundo Freed (1984), é raro que um sujeito sobreviva a uma lesão situada acima do quarto segmento cervical, pois ocorrem dificuldades respiratórias significativas.

Por sua vez, a paraplegia é definida como a perda ou diminuição da função motora e/ou sensorial nos segmentos torácicos, lombares ou sagrados da medula espinal, em virtude da destruição de elementos neurais no interior do canal medular. Na paraplegia a função dos membros superiores mantém-se íntegra, mas, dependendo do nível da lesão,

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o tronco, os membros inferiores e os órgãos pélvicos podem estar funcionalmente comprometidos.

O exame neurológico constitui o procedimento indispensável à avaliação da LVM, possibilitando determinar o nível neurológico - segmento mais caudal da medula espinal em que a função sensorial e motora se encontram mantidas de ambos os lados.

No entanto, tendo em conta a possibilidade da não coincidência entre o nível sensorial e o nível motor, bem como a de eventuais diferenças entre a metade direita e esquerda do corpo, impõe-se ainda a necessidade de realizar um teste de sensibilidades e um teste muscular. O exame sensorial é realizado em cada um dos 28 dermátomos existentes em cada lado do corpo, através da sensibilidade ao toque ligeiro e à compressão com um alfinete, variando numa escala de três pontos - ausência, alteração, ou sensibilidade normal. Do mesmo modo, o exame motor é efectuado num ponto chave de cada um dos 10 miótomos de cada metade corporal, sendo a força muscular classificada numa escala de seis pontos, que varia entre a paralisia total e o movimento activo normal (Maynard et ai., 1997).

Para além da correcta determinação do nível da lesão, este conjunto de testes permite ainda classificar a LVM como completa ou incompleta. Uma lesão medular é definida como completa, quando existe ausência de função motora e sensorial no segmento medular sagrado mais baixo, sendo incompleta quando existe preservação de funções motoras e/ou sensoriais abaixo do nível neurológico lesionai, incluindo o último segmento sagrado.

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A avaliação da completude ou incompletude da lesão revela-se por vezes difícil de objectivar, existindo mesmo relatos sobre sujeitos cujo exame neurológico indicou uma total perda da sensibilidade e das funções motoras voluntárias abaixo do nível da lesão, nas quais, no entanto, ocorria transmissão electrofísiológica através do foco da lesão (Dimitrijevic, 1988). Segundo Kakulas (1999), a descoberta de que um grande número de doentes revela alguma continuidade da substância branca da espinal medula reforça a necessidade de proteger a medula perante uma nova lesão e aumenta a expectativa de se conseguir potencializar as respostas das fibras nervosas residuais, através de técnicas interventivas que se encontram a ser investigadas actualmente.

No âmbito das lesões incompletas, são referenciados cinco síndromes clínicos (Maynard et ai., 1997) - síndrome do centro medular, quando a lesão ocorre quase exclusivamente na região cervical, provocando um déficit sensorial e uma diminuição da força muscular, que é mais evidente nos membros superiores; síndrome de Brown-Séquard, resultante de uma hemisecção da medula, responsável por uma perda motora e proprioceptiva homolateral bem como da sensibilidade à dor e à temperatura, contralateral; síndrome medular anterior, quando a lesão afecta a área anterior da medula, acarretando uma perda variável da funcionalidade motora e da sensibilidade à dor e à temperatura, mantendo-se preservada a propriocepção; síndrome do cone medular, característico das lesões da região sagrada e das raízes nervosas lombares que se encontram no interior do canal medular, resultando habitualmente em perda dos reflexos nos membros inferiores, bexiga e intestinos; e síndrome da cauda equina, quando envolve uma lesão nas raízes nervosas lombo-sagradas, dentro do canal neural, com implicações idênticas à do quadro clínico anterior. Existe ainda quem referencie o

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síndrome medular posterior, que é raro, caracterizando-se por um envolvimento lesionai da área posterior, havendo preservação sensorial e motora mas alterações na propriocepção (Hayes, Hsieh, Wolfe, Potter & Delaney, 2000).

Embora a terminologia proposta pela ASIA seja aquela que é mais utilizada internacionalmente (Kirshblum, Groah, McKinley, Gittler & Stiens, 2002), quer na avaliação clínica quer em trabalhos de investigação, importa referir que no longínquo ano de 1969, Frankel e os seus colaboradores propuseram precisamente a Frankel Scale, distinguindo os critérios de diagnóstico de lesão completa e incompleta e descrevendo qualitativamente os graus de funcionalidade passíveis de se manifestarem nesta última condição.

Posteriormente, a própria ASIA, reconhecendo a validade do sistema classificativo proposto por Frankel, e atendendo a que este continuou a constituir um instrumento de trabalho em múltiplas unidades de reabilitação de sujeitos com LVM, introduziu-lhe modificações, de forma a torná-lo mais objectivo, passando a designar-se por Asia Impairment Scale (Maynard et al., 1997).

A terminar, saliente-se ainda que, de acordo com Duchesne e Mussen (1976), as LVM podem ainda ser classificadas em flácidas e espásticas. Geralmente, na fase inicial da lesão, quer as tetraplegias quer as paraplegias são caracterizadas por uma flacidez muscular, acompanhada por abolição dos reflexos. Após várias semanas, algumas destas lesões tornam-se espásticas, ocorrendo contracções musculares involuntárias de grupos musculares, em consequência do restabelecimento da actividade reflexa automática.

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