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CAPÍTULO I- ROMANCE, ÉTICA E SOCIEDADE

2.4. Conceito de poligamia

O lexema “poligamia” resulta da combinação de dois vocábulos, poly “muitos” e gamos “casamento”. Logo, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o vocábulo “poligamia” significa «um tipo de organização familiar ou forma de união conjugal legítima, em que uma pessoa tem simultaneamente vários cônjuges, em que uma pessoa é polígama».152 Entretanto, a “poligamia” é um lexema abrangente quer para o homem quer para a mulher, desde que esteja nas condições acima referidas, congrega termos próprios que devem ser aplicados nas circunstâncias de comunicação em que se pretendem especificar os respetivos sexos, poliginia e poliandria.

Dos vários pontos de vista que possam ser referenciados para se definir a poligamia, selecionam-se dois, o de Riviére e o de Joel Tiago. Define o primeiro: «A poligamia designa a aliança matrimonial de um homem com várias mulheres, que têm simultaneamente o estatuto

147 Margarida Calafate Ribeiro e Maria Paula Meneses, Moçambique das Palavras Escritas, Afrontamento,

Porto, 2008, p.163.

148 Cf. Ibidem, p. 141.

149 Cf. Isabel do Carmo e Lígia Amâncio, Vozes Insubmissas A história das Mulheres e dos Homens que

Lutaram pela Igualdade dos Sexos quando era Crime Fazê-lo, p. 86.

150 Cf. Ibidem, s.v. “Essencialismo”, p.141.

151 Cf. Maria Teresa Nobre Correia, A Personagem Feninina nos Contos de Mia Couto, p. 46.

152 Cf. António Houaiss, et alii, Dicinário Houaiss da Língua Portuguesa, Instituto António Houaiss de

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de esposas vivas legítimas».153 E realça Joel Tiago: «devem realizar tantas cerimónias nupciais quantas mulheres com quem o marido se casa. Cada mulher constitui uma unidade matrimonial».154 Estas definições opõem-se à de poliandria, já que esta apresenta um comportamento inverso ao de poligamia e definida por António Silva como «Estado da mulher que tem mais de um marido ao mesmo tempo»155.

Tanto os casamentos onde várias mulheres partilham o mesmo homem como nas uniões onde se verifica o inverso, ambos divergem do casamento monogâmico, pois, genericamente, o conhecimento que se tem sobre a monogamia é o facto da relação conjugal ocorrer na base da fidelidade entre os cônjuges, tendo o marido uma só esposa e a esposa um só marido. Entretanto, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, monogamia é um «um sistema de organização familiar em que o regime jurídico do país proíbe a um homem ou uma mulher a possibilidade de ter, ao mesmo tempo, mais do que um cônjuge».156 Com a mesma

preocupação, Ruzyk subdivide este tipo de casamento em duas vertentes, uma endógena e a outra exógena:

A monogamia endógena consiste na existência de uma única relação de conjugalidade no interior de uma mesma estrutura familiar. Ela não exclui a possibilidade de conjugalidades múltiplas, desde que exteriores à estrutura monogâmica constituída. Difere, pois, de uma monogamia também exógena, que implica a vedação absoluta do relacionamento sexual com outros indivíduos que não aquele como o qual se constituiu a conjugalidade.157

Ou seja, a monogamia pode esconder infidelidades. Muitos casamentos são monogâmicos apenas na aparência social.

Na Antiguidade, como na Grécia Antiga, acreditava-se nas histórias mitológicas, estando os humanos subjacentes ao poder dos deuses, tidos como seres supremos, com o poder de controlar, regular e condenar todas as ações daqueles que não eram divinos. Zeus era um deus extremamente infiel a sua esposa, Hera. Também os mitos influenciaram, de alguma forma, os hábitos culturais do povo africano. Um dos contos populares africanos da tradição oral que melhor pode fazer compreender a poligamia em África é o seguinte:

Segundo uma camponesa do vale do Zambeze, uma enchente do rio fez com que os homens que habitavam as suas ilhas morressem todos afogados. Às mulheres sobreviventes coube assumir todos os trabalhos para a manutenção da vida, exceto, claro está a procriação. Por isso, à medida que envelheciam a cidade ia ficando cada vez mais vazia. Passado algum tempo, dois irmãos que viviam num povoado do outro lado do rio decidiram atravessá-lo, em jeito de desafio. Contudo, já não conseguiram regressar à sua ilha. Na busca dos alimentos, foram até um campo de milho, começaram a colher as espigas apressadamente para não serem apanhados pelos donos, mas acabaram por

153 Cf. Riviéres, 1995, p. 78, apud João Bonifácio Aurélio Ribeiro, Representação da Condição Social

Feminina em Balada de Amor ao Vento, Universidade de Aveiro, Aveiro, 2014, p. 17.

154 Cf. Bernardi, 2017, p. 304, apud Joel António Tiago, Conflitos de Género, em Niketche de Paulina

Chiziane, Universidade de Aveiro, Aveiro, 2014, p. 32.

155 Cf. António Morais Silva, Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa, Horizonte Confluência, s/l.,

9ª ed., vol. IV, 1999, s.v. “poliandria”, p. 315.

156 Cf. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Verbo, Lisboa, vol. II, s.v. “monogamia”, p. 2516. 157 Cf. Ruzyk, 2005, p.98, apud Gabriel Pedroni, A Maçã Proibida,: a ausência de tutela jurídica para as

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ser apanhados pelas mulheres que os levaram até uma festa de cerveja. Ao outro dia, a chefe, em Assembleia, quis decidir sobre o futuro dos dois homens: as que os quisessem mortos deveriam passar para o seu lado esquerdo, as que os quisessem vivos deveriam permanecer à direita. Nenhuma passou para o lado esquerdo. Assim recuperou-se o ciclo da procriação que havia sido perdido com a morte dos maridos.158

Com este conto, podemos compreender duas componentes essenciais que nos interessam na nossa análise. A primeira tem que ver com a existência da poligamia, resultante da conveniência dos homens em benefício da procriação. A segunda deve-se ao reconhecimento do poder e das capacidades da mulher na organização das estruturas funcionais das comunidades.

Referindo-se às tradições africanas subjacentes à poligamia, Jostein Gaarder alude que em África se criou-se uma ideologia que faz crer ao povo a existência de espíritos dos mortos num lugar privilegiado. A constituição da família não é só feita do universo sensível, mas também pelas pessoas que não fazem parte do mundo dos vivos. Logo, um homem que possua mais do que uma mulher e muitos filhos tem a sua alma em paz, sendo isto usado como argumento a favor da existência da poligamia desde os imemoriáveis.159