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O CONCEITO DE DIFERENÇA EM DELEUZE

2 A PRODUÇÃO SOBRE ENSINO E CRIAÇÃO EM DESIGN NO BRASIL A

3.3 O CONCEITO DE DIFERENÇA EM DELEUZE

O conceito de diferença em Deleuze (2006) é composto por variados aspectos que a consideram uma unidade de força e movimento que cria uma intensidade e uma profundidade; ela é uma espécie de ente em mutação incessante de intensidade que se cria na profundidade, no espaço e no tempo.

[...] tudo é igual e o tudo retorna só podem ser ditos onde a extrema ponta da diferença é atingida. Uma mesma voz para todo o múltiplo de mil vias, um mesmo oceano para todas as gotas, um só clamor do ser para todos os entes. Mas à condição de ter atingido, para cada ente, para cada gota e em cada via, o estado de excesso, isto é, a diferença que os desloca e os disfarça, e os faz retornar, girando sobre sua ponta móvel (DELEUZE, 2006, p.284). O conceito é composto pela abertura dos entes a um mundo de capturas que remete às forças e aos afetos em um campo de exterioridade ou de heterogeneidade que, por sua condição imanente, é renovado inexoravelmente por relações inéditas.

Porém, é a propósito do tempo e de sua implicação que Deleuze chega a tal conceito, pois mostra que a diferença, levada ao absoluto, devém uma autêntica

conexão de modo que o tema da exterioridade das relações encontra sua completude na articulação da diferença e da repetição. A lógica das forças desvaloriza a conexão de sucessão. O tempo é heterogêneo, sua forma Chronos é o modo pelo qual ele é representado. Uma meditação sobre o tempo permite ver que a forma sucessiva, cronológica e linear não dá conta de si mesma. Passado, presente e futuro são três modos temporais e são também maneiras de viver o tempo. O tempo presente é aquele que tem o poder de voltar ao mesmo ponto, ele é contração de instante, denominado hábito por Deleuze (2006), contraído novamente, é sempre o mesmo ciclo que retoma. É uma duração perfurada, mas que não passa. É o meio.

O conceito de meio pode parecer impreciso, mas é justamente nele que agimos. O meio implica uma teoria da subjetividade. “Todos somos contemplação, logo hábitos. Eu é um hábito” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.101). Desta forma, somos um hábito contemplativo, fixado em contrair elementos materiais ou sensoriais que compõem um meio no qual podemos viver e agir. Assim, tenho a consistência de meus hábitos. “[...] minhas ações e reações supõem a prévia contração de um meio, que portanto sou. No sentido próprio, isso se chama habitar, e o cogito deleuzeano é um ‘Eu habito’, ou ‘Eu pretendo’ o que contraio” (ZOURABICHVILI, 2016, p.101). Em colaboração com o comentador eu diria que o cogito é: ‘Eu habito o que contraio’.

Habitar o modo temporal presente não esgota toda a experiência, pois sou forçada a pensar relações temporais laterais, não sucessivas de outros tempos. Por outro lado, passo de um meio a outro por um acontecimento, um devir, a ruptura de um encontro: cresço, parto, amo... Assim, meu presente é plural e a sucessão devém pensável e perceptível. Como eu, cada um vive simultaneamente em várias linhas de tempo (DELEUZE, 2006a). A composição do presente muda, não dando conta de sua própria passagem e ficamos obstinados a perguntar sobre o que passou. O que surge de uma diferença entre duas dimensões inconciliáveis do tempo que nos torna outro diz respeito àquilo que nos acontece: o acontecimento. O acontecimento é aquele que denuncia e existência entre-dois-meios.

No entanto, Deleuze (2006) não se satisfaz com os modos temporais e passa a afirmar o devir como destino de todo presente. Tudo o que existe está em devir, nada é dado. “Retornar é o ser, mas somente o ser do devir” (p.49). Deste jeito, fica impossível encontrar o lugar da representação nessa afirmação do futuro, do por vir. Afirmar o devir implica a finalidade do proveito de correspondências não causais entre acontecimentos. A imagem tradicional do tempo sucessivo é substituída pela ideia de

um tempo que prossegue em intensidades. Para Zourabichvili (2016), cada presente

atualiza uma dimensão temporal cuja consistência é puramente intensiva – nível, grau,

ou plano, ponto de vista. A intensidade é dita dos corpos, o tempo é a sua intensidade. O corpo inaugura o presente. Deleuze invoca uma diferença de intensidade que só é inteligível pela diferença do passado e do presente. “O próprio conceito de acontecimento requer essa concepção intensiva do tempo. Inversamente, ao surpreender alguém, um encontro arrebata para uma nova dimensão temporal que rompe com a antiga. O tempo é pura mudança.” (p.107).

Os modos Chronos e Aiôn são dois tempos concomitantes em que o acontecimento é desdobrado, “Em suma: os dois tempos, dos quais um não se compõe senão de presentes encaixados e o outro não faz mais do que se decompor em passado e futuro alongados”. Deleuze (2015) reabilita a distinção Estóica desses tempos para pensar a extratemporalidade do acontecimento –ou, caso se prefira, sua temporalidade paradoxal. Em Aiôn coincidem o futuro e o passado essencialmente ilimitados que recolhem à superfície os acontecimentos incorporais enquanto efeito. Em Chronos é o presente sempre limitado que mede a ação dos corpos como causa e o estado de suas misturas em profundidade (DELEUZE, 2015). Aiôn opõe-se a

Chronos que designa o tempo cronológico ou sucessivo em que o antes se ordena ao

depois sob a condição de um presente englobante no qual, como se diz, tudo acontece.

O resultado do tempo como pura mudança é a passagem de uma dimensão a outra (devir); ele é a diferença, o conectar imediato dos heterogêneos.

Deleuze (2006) ressalta que a causalidade não pode dar conta da heterogeneidade que sucede uma vez que dois termos heterogêneos têm apenas conexão exterior, pela sua diferença.

Nesse momento percebo que eu não compreendo bem como manter a unidade daquilo que não para de mudar de natureza, de devir outro, a não ser verbalmente, porque nada é conservado de sua identidade. Zourabichvili (2016) aponta que é justamente quando objeto algum é visado, na medida em que o que muda não tem identidade alguma, que reside a diferença. Mas, como o múltiplo pode ser chamado multiplicidade? A diferença possui seu correlato: a repetição. “A diferença repete diferenciando-se e, no entanto, nunca se repete como idêntica. [...] Diferença e repetição é a lógica da multiplicidade intensiva como conceito do tempo” (ZOURABICHVILI, 2016, p.110).

“As diferenças não se compõem de diferenças de mesma ordem, mas implicam séries de termos heterogêneos [...] Uma quantidade intensiva se divide, mas não se divide sem mudar de natureza” (DELEUZE, 2006, p.306). A pura diferença é intensiva e entre duas intensidades somente existe heterogeneidade. A única implicação está em relação ao campo da exterioridade o que define a Filosofia da diferença como a Filosofia do fora, da implicação, da imanência, do intensivo, da multiplicidade, da heterogeneidade, do encontro, do devir e do acontecimento.

A revelação da hora avança para além de desvendar um conteúdo sobre o sujeito pensante. Ela põe em crise o modelo tradicional da verdade fundado sobre a identidade e a recognição. “A verdade segundo Deleuze é o afeto(sensação/sentido) uma vez que coloca em perspectiva possibilidades heterogêneas de existência. Ela é o surgimento da distância na existência, na divergência, no mundo” (ZOURABICHVILI, 2016, p.137).

De todo o exposto é possível dizer que nenhum fundamento é imutável e tem sua validade e ou estabilidade garantida perante a qualquer sistema de pensamento e acerca das condições de possibilidade e de impossibilidade dos significados. Fish (1989) caracteriza como uma perspectiva antifundacional, ou seja, aquela que nega a possibilidade de basear o conhecimento em um único fundamento.

O antifundacionalismo ensina que questões de fato, verdade, correção, validade e clareza não podem ser nem colocadas, nem respondidas em referência a alguma realidade, ou regra, ou lei ou valor extra-contextual, a- histórico, não situacional; antes, o antifundacionalismo afirma, todas estas questões são inteligíveis e discutíveis apenas nos arredores dos contextos ou situações ou paradigmas ou comunidades que lhes conferem sua forma local e mutável (FISH, 1989, p.344).

Sarup (1989) aponta que é possível sintetizar as críticas resultantes ao indivíduo racional e cartesiano, à história como um processo linear segundo padrões de progresso e finalidade, à noção tradicional do significado agora regido por um sistema diferencial, à Filosofia por meio de uma prática e, enfim, as críticas à metafísica e aos conceitos de causalidade, identidade, sujeito e verdade. Um novo movimento implica uma mudança, isto é, um desvio perpétuo no caminho para uma verdade que perdeu qualquer status ou finalidade.

A diferença está em habitar aquilo que foi contraído como mudança acontecimento que nos torna outro, renovados inevitavelmente por relações inéditas (novo) que marcam cada instante da nossa trajetória. Contrair e habitar o conceito da diferença em Deleuze é escape, é linha de fuga do campo da representação, da

recognição, da identidade e de tudo aquilo que se conserva uma vez que cada afeto possui sua verdade tornando heterogêneas as perspectivas da existência. Essa contração fala dos encontros com aquilo que ainda não se sabe. Ela fala ao caminho do criador que realiza um corte no caos.

[...] o difícil para toda coisa é atingir seu próprio simulacro, seu estado de signo na coerência do eterno retorno. Platão opunha o eterno retorno ao caos, como se o caos fosse um estado contraditório que devesse receber de fora uma ordem ou uma lei, tal como a operação do Demiurgo em vias de vergar uma matéria rebelde. Platão remetia o sofista à contradição, a este suposto estado de caos, isto é, à mais baixa potência, ao último grau de participação. Mas, na verdade, a enésima potência não passa por dois, três, quatro; ela se afirma imediatamente para constituir o mais elevado: ela se afirma do próprio caos, e, como diz Nietzsche, o caos e o eterno retorno não são duas coisas diferentes (DELEUZE, 2006, p.73).

Em suma, o conceito da diferença em Deleuze (2006) não se exime de experimentar a reversão do platonismo enquanto recusa o primado de um original sobre a cópia ou de um modelo sobre a imagem que encontra. Seria o mesmo que faço ao renunciar algo do ensino explicador, buscando potencializar aquilo que arruína algo dos modelos de ensino que privilegiam a recognição em detrimento da criação.

3.4 A CRIAÇÃO DE CONCEITOS

Da Filosofia vista pelos óculos de Deleuze a imagem é pura intensidade. Lentamente, observo a desconstrução, a quebra axiológica: de Deus, do eu – fendidos ambos após a morte de Deus; do sujeito do conhecimento – o epicentro é inexistente, cria o rizoma que é a-centrado; da razão – torna-se um filósofo sem raízes fixas; da generalidade – a singularidade diz da existência do ser; da ortodoxia da psicanálise – a condenação ao reducionismo freudiano; dos mecanismos estatais e da sociedade de controle capitalista – o controle toma o lugar da disciplina tornando as estratégias sutis e imateriais. Vivem em Deleuze conceitos que se entrecruzam e arrancam do conforto do conhecido aquele que o experimenta. E comigo não foi diferente.

A defesa de que a sociedade é definida por suas linhas de fuga é o tema central na discussão sobre micropolítica DELEUZE; GUATTARI (2011a). Os autores fazem defesas explícitas do rizomático, do molecular, do micropolítico sobre o arbóreo, o