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Inicialmente cumpre assinalar o que se entende por perigo. Este pode ser definido como “[...] a aptidão, a idoneidade, ou a potencialidade de um fenômeno de ser causa de dano, ou seja, é a modificação de um estado verificado no mundo exterior com a potencialidade de produzir a perda ou diminuição de um bem, o sacrifício ou a restrição de um interesse”103 Ressalte-se, por oportuno que a mera possibilidade de dano não é suficiente para a configuração de perigo, que requer a probabilidade, sem que tal exigência redunde na necessidade de comprovação matemática ou estatística.

O tipo de perigo abstrato, contrapondo-se ao crime de dano em uma classificação que leva em conta a relevância da afetação do bem jurídico, é a técnica utilizada pelo legislador para atribuir a qualidade de crime a determinadas condutas independente da produção do resultado externo. Trata-se da prescrição normativa cuja completude restringe-se à ação, ao comportamento descrito no tipo, sem nenhuma referência aos efeitos exteriores do ato, ao contrário do que ocorre com os delitos de lesão ou de perigo concreto. Não se deve confundir crime material com crime de dano, nem crime formal e de mera conduta com crime de perigo, visto que tais categorias se reportam a classificações baseadas em critérios distintos. Enquanto a oposição entre crime de dano e de perigo pauta-se, como já mencionado, no critério da relevância da afetação do bem jurídico tutelado, a diferenciação entre crime material, formal e de mera conduta obedece a critério vinculado ao resultado naturalístico. Ou seja, enquanto o crime material reclama um resultado naturalístico para sua consumação, v.g. o homicídio, o crime formal o descreve no tipo, mas dele prescinde para o seu aperfeiçoamento, v.g. a ameaça. Já o crime de mera conduta não prevê nem exige tal resultado para a sua consumação como por exemplo a violação de domicílio.)

Na seara dos crimes de perigo, distinguem-se, tradicionalmente, as estruturas delitivas de perigo concreto das de perigo abstrato ou presumido. É certo que a classificação dos crimes de perigo104 revela-se bem mais complexa, podendo-se mencionar, em acréscimo, os crimes de perigo abstrato com presunção juris tantum, nos quais se admite prova em contrário quanto à ausência de vulneração do bem jurídico no caso concreto, e os crimes de perigo

103 REALE JÚNIOR, Miguel. Dos estados de necessidade. São Paulo: Bushatsky, 1971, p. 56. 104 Cf. SILVA, Ângelo Roberto Ilha da. Ibidem., pp. 68-82.

abstrato-concreto105, cuja tipicidade objetiva somente se configura diante da realização da conduta proibida e da produção de um ambiente de periculosidade geral, ou seja, é necessário que o comportamento vedado crie ao menos condições para a afetação do objeto de tutela. Trata-se de uma situação intermediária entre a mera realização da conduta e a exposição do bem jurídico a uma ameaça concreta. Embora se reconheça a existência de diversas modalidades de delitos de perigo, esta análise limitar-se-á às duas categorias anteriormente mencionadas, o que se afigura suficiente diante do caráter instrumental de tais noções nos limites deste trabalho.

Desta forma, consideram-se crimes de perigo concreto os delitos em que o perigo constitui elemento do tipo, de tal forma que somente se aperfeiçoam com a verificação efetiva da situação perigosa, em um evidente juízo ex post. É o caso do crime de incêndio, previsto no art. 250, do Código Penal Brasileiro, que descreve a conduta de “causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem”.

De outra banda, os crimes de perigo abstrato ou presumido, em uma clássica definição, caracterizam-se pela presunção absoluta de perigo par ao bem jurídico tutelado. Nesse caso, o perigo não corresponde a elemento do tipo penal, mas tão somente a sua motivação. Vale dizer, a partir de regras de experiência, o legislador identifica condutas as quais, em seu entendimento, o perigo é inerente, tornando-as puníveis. Como exemplo, temos o crime contra a ordem econômica delineado no inciso I do art. 1°, da Lei 8.176/1991, o qual se refere à conduta de “adquirir, distribuir e revender derivados de petróleo, gás natural e suas frações recuperáveis, álcool etílico hidratado carburante e demais combustíveis líquidos carburantes, em desacordo com as normas estabelecidas na forma da lei”. A partir da análise desta norma incriminadora, pode-se verificar que o juízo de desvalor reporta-se unicamente à ação, não abarcando o resultado.

É certo que no âmbito da tutela de bens jurídicos supraindividuais, como no caso do exemplo acima mencionado, a atividade legislativa revela-se pródiga na utilização da técnica do perigo abstrato, cuja legitimidade há de ser analisada à luz de princípios constitucionais como a lesividade e a intervenção mínima. Diversas são as justificativas apresentadas para a adoção dessa técnica que acaba por configurar uma criminalização em âmbito prévio ou antecipação da tutela penal.

105 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato e princípio da precaução na sociedade de risco. São Paulo: Ed. RT, 2007, p p. 115-117.

Em um primeiro plano, destaque-se os resultados catastróficos decorrentes de um dano efetivo ao bem jurídico tutelado, bem como a sua irreversibilidade ao estado anterior, de tal sorte que, nesses contextos, o mais importante é evitar ou controlar as condutas, antecipando- se à própria ocorrência da lesão, e não reprimir os resultados. Ademais, deve-se ter em mente que, em muitos delitos contra a ordem econômica, se lida com atos perigosos por acumulação, ou seja, tem-se “[…] ações que, isoladamente, não representam uma ameaça, em potencial para bens jurídicos tutelados, mas sua reiteração ou multiplicação acaba por consolidar um ambiente de riscos efetivos para estes interesses protegidos”.106 Ressalte-se, ainda, a inviabilidade de se estabelecer um nexo causal entre múltiplas ações e um determinado dano à ordem econômica nos moldes rigorosos do processo penal, bem como a dificuldade de constituição da prova, diante da impossibilidade de se mensurar o quantum de turbação foi imposto ao bem jurídico, a partir de condutas individualmente consideradas.

Enquanto os bens jurídicos individuais se satisfazem com uma proteção mediante crimes essencialmente de dano, tendo o perigo como recurso excepcional do legislador, os bens difusos guardam peculiaridades, “quer pelo fato de não se identificar uma vítima definida, quer por não se ter, em uma dada e concreta conduta, um perigo concreto à inteireza do bem protegido [...]”.107Assim, subtrair do direito penal esse caráter preventivo, repelindo as construções abstratas sem maiores reflexões, significa afastar-se da realidade e desatender as necessidades de nosso tempo. Schünemann qualifica de reacionário o posicionamento da Escola de Frankfurt favorável à recondução do direito penal aos delitos de dano. Segundo seu entendimento, essa postura refratária à técnica dos crimes perigo abstrato depõe contra a modernização do direito penal, comprometendo sua função de proteção de bens jurídicos fundamentais.108

Apesar de constituir uma estrutura adequada para fazer face às demandas da sociedade de risco contemporânea, no que diz respeito à tutela eficaz de determinados bens jurídicos difusos ou supraindividuais como, no caso do presente estudo, a ordem econômica, isso não implica na defesa intransigente de todo e qualquer delito de perigo abstrato destinado à proteção da ordem econômica, tão somente em virtude da natureza difusa do bem jurídico tutelado. Afinal, as particularidades destes bens supraindividuais não podem servir de pretexto

106 Idem, p. 124

107 SILVEIRA. Renato de Mello Jorge. A construção do bem jurídico espiritualizado e suas críticas

fundamentais. Bol. IBCCrim 122/14-15. São Paulo: IBCCrim, jan. 2003b.

108 SCHÜNEMANN. Bernd. Consideraciones críticas sobre la situación espiritual de la ciencia jurídico-penal

alemana. Trad. Manuel Cancio Meliá. Revista Peruana de Ciencias Penales 5/251-256. Lima: Idemsa, jan-

para criminalizações desmedidas. Há que se atentar não somente para a natureza do bem jurídico, mas também para a conduta descrita na norma incriminadora, verificando se traz ínsito o perigo ao objeto que se pretende resguardar.