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Após análise dos julgados do TJ/RS que, em sua maioria, envolvem aspectos relacionados à dignidade da pessoa humana, propõe-se neste item apresentar o conceito e a dimensão da dignidade da pessoa humana sem, no entanto, esgotá-lo, a fim de que possa servir de referência para corroborar a fundamentalidade do direito social à saúde. Em outras palavras, não se pretende aprofundar as contribuições e influências do pensamento filosófico ocidental, mas sim desenvolver aspectos a partir do texto constitucional vigente.

A dignidade da pessoa humana constitui fundamento da República e do Estado Democrático de Direito por ela constituído, e só pode ser corretamente apreendida quando for observado que ela está intensamente impregnada de um valor historicamente construído (SARLET, 2012).

No Brasil, a dignidade da pessoa humana foi reconhecida como princípio fundamental no texto constitucional de 1988, de modo que deva ser assegurada pelo Estado. Para Mariana Filchtiner Figueiredo (2007, p. 52) “[...] pode-se compreender que a dignidade, como qualidade intrínseca de todo o ser humano, é irrenunciável e inalienável, qualificando-o como tal e dele não podendo ser destacada.”

Segundo palavras de Sarlet (2012, p. 44),

[...] há de ser compreendida como um conceito inclusivo, no sentido de que sua aceitação não significa privilegiar a espécie humana acima de outras espécies, mas sim, aceitar que do reconhecimento da dignidade da pessoa humana resultam obrigações para com outros seres e correspondentes deveres mínimos e análogos de proteção.

O autor vai além, afirmando que o homem, em virtude tão somente de sua condição humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado (SARLET, 2012).

A dignidade independe das circunstâncias concretas, pois é inerente a toda e qualquer pessoa humana, uma vez que todos, mesmo o maior dos criminosos, são iguais em dignidade, não podendo nunca ser objeto de desconsideração (SARLET, 2012).

Nesse sentido também é o disposto no art. 1° da Declaração Universal da ONU, de 1948: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade.”

Günter Dürig (apud SARLET, 2012, p. 55), considerado um dos principais comentadores da Lei Fundamental da Alemanha da segunda metade do século XX, considera que a dignidade da pessoa humana consiste no fato de que cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão, “tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda.”

Gerson Marcos Morgado (2015) ressalta nesse sentido que:

No mundo contemporâneo, o conceito e a positivação da dignidade é um traço marcante, sobretudo, das Constituições de nações democráticas, principalmente após a edição da Declaração Internacional dos Direitos do Homem, em 1948, que instilou nos espíritos e na comunidade internacional a consciência universal da necessidade de reconhecimento da dignidade humana como valor absoluto e como pressuposto, inclusive, do Estado e da vida em sociedade.

O princípio da dignidade da pessoa humana assumiu relevância e se consolidou a partir da Segunda Guerra Mundial e, nesse cenário, surgiu um novo modelo ético-jurídico com a finalidade de tornar a sociedade mais justa e igualitária, respeitando a liberdade individual e o respeito à pessoa humana (BARROSO, 2010, p. 57).

No entendimento do jurista, a inserção da dignidade da pessoa humana no plano jurídico

[...] se dá graças a dois movimentos. Primeiramente, pelo surgimento de uma cultura positivista, que reaproximou o direito da filosofia moral e da filosofia política, e em outro plano, pela inclusão da pessoa humana em diferentes documentos internacionais e constituições de Estados democráticos. (BARROSO, 2010, p. 4).

O direito assume papel importante na tutela e na promoção da dignidade da pessoa humana, instituído pela Carta Magna em seu art. 1º, inc. III, que estabelece que a dignidade da pessoa humana é um princípio nuclear de observância obrigatória e seu conteúdo jurídico é fundamental para a concretização dos direitos fundamentais, portanto, irrenunciável (BRASIL, 1988).

É possível observar que o princípio da dignidade da pessoa humana foi sofrendo alterações juntamente com a evolução da sociedade, que passou a viver em comunidades e a ter que respeitar seu semelhante para, assim, manter uma convivência pacífica.

Nesse diapasão, Sarlet (2009, p. 16) assevera que:

[...] o reconhecimento e a proteção da dignidade da pessoa humana pelo Direito resulta justamente de toda uma evolução do pensamento humano a respeito do que significa este ser humano e de que é a compreensão do que é ser pessoa e de quais os valores que lhe são inerentes que acaba por influenciar ou mesmo determinar o modo pelo qual o Direito reconhece e protege esta dignidade.

Referente a esta temática, Geraldo da Silva Dantas (2013, p. 13) assinala que “o constitucionalismo contemporâneo se comprometeu com a ideia de que a pessoa humana, em razão da sua exclusiva condição humana é titular de direitos que devem ser reconhecidos e protegidos pelo Estado e por terceiros.”

Sarlet (2012, p. 73) propõe a análise da dignidade humana a partir de um conceito multidimensional, aberto e inclusivo, ou seja, sustenta que o seu conceito apresenta múltiplas dimensões, afirmando que:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.

Frente ao exposto, pode-se afirmar que não é fácil conceituar a dignidade da pessoa humana, uma vez que são inúmeros os aspectos envolvidos, tornando esse princípio amplo e complexo. Pode-se afirmar, contudo, que a dignidade da pessoa humana é um direito reconhecido constitucionalmente e, sendo assim, tanto a comunidade como o Estado devem assegurar condições mínimas para o desenvolvimento da cidadania.

Destaca-se, ainda, que ao determinar o bloqueio de valores nas contas do Estado do Rio Grande do Sul, os magistrados utilizam em suas decisões três aspectos relevantes. O primeiro aspecto diz respeito à responsabilidade do Estado no atendimento à saúde da pessoa humana, em especial quanto ao fornecimento de medicamentos; o segundo refere-se à garantia constitucional da efetivação do direito fundamental à saúde; e, por último, o princípio da dignidade humana, que é o sustentáculo da saúde.

Nesse sentido, citando Jorge Reis Novais, Figueiredo (2007, p. 61) afirma que

[...] a dignidade da pessoa humana pode impor o fornecimento de prestações materiais pelo Estado, que permitam uma existência autodeterminada, “sem o que a pessoa, obrigada a viver em condições de penúria extrema, se veria involuntariamente transformada em ‘mero objecto do acontecer’ estatal e, logo, com igual violação do princípio [...].

Constata-se, assim, que o bloqueio de valores, na maioria das vezes, encontra guarida no Judiciário, porque a saúde é indispensável para uma vida mais saudável e encontra na dignidade humana uma ligação muito próxima.

Dessa forma, realizar uma análise dos valores bloqueados nas contas do Estado do Rio Grande do Sul é imprescindível para a assegurar o direito à saúde.

3 ANÁLISE DOS VALORES BLOQUEADOS NAS CONTAS DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL EM RAZÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS PARA ASSEGURAR O DIREITO À SAÚDE NOS ANOS DE 2014 A 2016

O conteúdo desenvolvido nos capítulos anteriores revela um flagrante desrespeito e uma facciosa não aplicação do art. 196 da CF/88, que apresenta o direito à saúde como dever do Estado e direito de todos.

Por motivos vários, os recursos destinados à saúde são insuficientes para atender à demanda da população. Os governos optam pelo ajuste das contas públicas em detrimento dos gastos sociais. Se fosse cumprido o determinado no art. 196 da CF/88, que impõe ao Estado o dever de garantir a saúde de todos, e se tal incumbência fosse realizada mediante políticas sociais e econômicas suficientes para efetivar a saúde sistêmica, “desnecessárias seriam outras atividades/organismos com função reparadora da atuação/inércia do Estado.” (SCHWARTZ, 2001, p. 147).

Devido à não efetivação dos direitos constitucionais, neste caso o direito à saúde, pelos Poderes constituídos, de modo a atenderem os reais interesses do povo, necessário se faz a provocação do Poder Judiciário para corrigir a omissão ou comissão da prestação positivada aos entes federados.

Assim, faz-se necessário o levantamento dos valores destinados à saúde pelo Estado do Rio Grande do Sul nos anos de 2011 a 2016, a fim de analisar se esses valores atingem o mínimo estabelecido constitucionalmente para a saúde, conforme determina o art. 77, § 4º, da ADCT5 da CF/88.

5 Art. 77. Até o exercício financeiro de 2004, os recursos mínimos aplicados nas ações e serviços públicos de saúde

serão equivalentes: I - no caso da União:

a) no ano 2000, o montante empenhado em ações e serviços públicos de saúde no exercício financeiro de 1999 acrescido de, no mínimo, cinco por cento;

b) do ano 2001 ao ano 2004, o valor apurado no ano anterior, corrigido pela variação nominal do Produto Interno Bruto - PIB;

II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, doze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; e

III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, quinze por cento do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.

§ 1º Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que apliquem percentuais inferiores aos fixados nos incisos II e III deverão elevá-los gradualmente, até o exercício financeiro de 2004, reduzida a diferença à razão de, pelo menos, um quinto por ano, sendo que, a partir de 2000, a aplicação será de pelo menos sete por cento.

Da mesma forma, analisa-se o instituído pelo art. 198, § 3º6, da CF/88, que igualmente garante valores mínimos a serem destinados à manutenção da saúde da população do Estado. Denota-se que os legisladores constitucionais tiveram uma pequena demonstração de sensibilidade e introduziram a possibilidade de reavaliação, pelo menos em cinco anos, dos percentuais dos recursos mínimos para a saúde.

Em setembro de 2000 foi aprovada a Emenda Constitucional n° 29, que assegurou recursos mínimos destinados ao financiamento das ações e serviços públicos de saúde, vinculando receitas da União, Estados, Distrito Federal e Municípios para o SUS, definindo porcentagens mínimas de recursos que esses entes devem investir nesta área, alterando assim, os arts. 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da CF/88. Caso não houver aplicação desses recursos mínimos pode ocorrer a intervenção da União nos Estados-Membros, Distrito Federal e municípios, e dos Estados em seus municípios. Essa Emenda determina, ainda, que no caso dos Estados o limite mínimo a ser destinado à saúde é de 12% das receitas próprias, sendo que a vinculação incide sobre o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, incs. I e II, da CF/88, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos municípios (BRASIL, 2000).

Já em janeiro de 2012, com o intuito de sanar a confusão deixada pela Emenda Constitucional n° 29, foi sancionada a Lei Complementar nº 141, de 2012, visando definir o que deve ser considerado gasto em saúde, e fixando os percentuais mínimos de investimento na área pela União, Estados e Município. Nos termos dessa lei, a União continuará destinando à saúde praticamente os mesmos recursos que já eram aplicados e os Estados e Municípios continuam obrigados a aplicar 12% e 15%, respectivamente (BRASIL, 2012).

§ 2º. Dos recursos da União apurados nos termos deste artigo, quinze por cento, no mínimo, serão aplicados nos Municípios, segundo o critério populacional, em ações e serviços básicos de saúde, na forma da lei.

§ 3º. Os recursos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios destinados às ações e serviços públicos de saúde e os transferidos pela União para a mesma finalidade serão aplicados por meio de Fundo de Saúde que será acompanhado e fiscalizado por Conselho de Saúde, sem prejuízo do disposto no art. 74 da Constituição Federal. § 4º. Na ausência da lei complementar a que se refere o art. 198, § 3º, a partir do exercício financeiro de 2005, aplicar-se-á à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o disposto neste artigo.

6 Art. 198, § 3º: Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá: (AC)

I – os percentuais de que trata o § 2º; (AC)

II – os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; (AC)

III – as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; (AC)

Oportuno mencionar, que a Emenda Constitucional n° 95, de 15 de dezembro de 2016, no Governo de Michel Temer, no entanto, aprovou a instituição do novo regime fiscal que passa a vigorar por vinte exercícios financeiros, trazendo muitos prejuízos à saúde (BRASIL, 2016).

Antes de adentrar no assunto relativo aos valores destinados à saúde no orçamento do Rio Grande do Sul, nos anos de 2014 a 2016, é imprescindível referir que no dia 24 de maio do corrente ano, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu sobre a suspensão nacional dos processos que discutem o fornecimento, pelo Poder Público, de medicamentos não incluídos na lista do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso, porém, “[...] não impede os juízes de apreciar demandas consideradas urgentes, a exemplo de pedidos de liminar. A suspensão dos processos foi determinada em razão da afetação de recurso especial para julgamento como repetitivo.” (STJ, 2017).

Neste sentido, é interessante constar a decisão do colegiado do STJ, no Recurso Especial nº 1657156/RJ, que decidiu pela “Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS.” Caberá ao juízo de primeiro grau decidir sobre as medidas de urgência. Assim:

Acordão: Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em questão de ordem suscitada pelo Senhor Ministro Relator, por maioria, vencido o Sr. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, decidiu ajustar

o tema do recurso repetitivo, nos seguintes termos: ‘Obrigatoriedade do poder público de fornecer medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS’. Deliberou, ainda, à unanimidade, que caberá ao juízo de origem apreciar as medidas de urgência. Participaram do

julgamento a Sra. Ministra Assusete Magalhães e os Srs. Ministros Sérgio Kukina, Regina Helena Costa, Gurgel de Faria, Francisco Falcão, Napoleão Nunes Maia Filho, Og Fernandes e Mauro Campbell Marques. (STJ, Recurso Especial n° 1657156/RJ) (grifo nosso).

Com esta informação, percebe-se que um novo paradigma relativo ao fornecimento de medicamentos está sendo implantado, uma vez que muitas demandas não são de obrigatoriedade do Município ou do Estado, mas são realizados bloqueios de valores para não deixar o paciente-cidadão desassistido.

3.1 Valores destinados à saúde no orçamento do Estado do Rio Grande do Sul nos anos

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