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Conceito Padrão de Produção Fonográfica do

4. FATORES DO PROCESSO FONOGRÁFICO QUE EXERCEM INFLUÊNCIA NOS

4.1. Fatores conceituais

4.1.1. Conceito Padrão de Produção Fonográfica do

Ao analisarmos as palavras de Helen Myers, já podemos perceber um desenvolvimento de dois direcionamentos conceituais sobre processos fonográficos, aqueles mercadológicos e os etnográficos, possibilitando deduzirmos que antes mesmo desta publicação em 1992, esta distinção já se fazia presente.

Para o presente estudo, porém, é inadequado considerar tais classificações como únicos direcionamentos possíveis. Existem também outros formatos de projetos que, quando relacionados a estas duas opções, se mostram intermediárias. Assim, longe de uma possível associação de valores a cada uma destas classificações, devemos entendê-las, neste caso, apenas como representativas de pontos de partida conceituais e teóricos para análises que as consideram como extremos dentro de um contínuo de possibilidades. Mesmo porque, apesar da clara problemática inerente a tais classificações, não se pode negar a possibilidade de existência de projetos essencialmente comerciais ou fundamentalmente etnográficos. Como complementação deste quadro composto por diferentes conceitos de produção, Tiago de Oliveira Pinto (2001) nos lembra que seria pertinente incluirmos um outro direcionamento conceitual, os processos fonográficos de pesquisa científica. Nestes, técnicas e conceitos de gravação apropriadas para modelos mercadológicos ou etnográficos, nem sempre se mostrariam apropriadas.

É perfeitamente possível encontrarmos produções que objetivem, unicamente, a comercializacão da música e seus consecutivos ganhos financeiros. Por outro lado, existem produções ou registros que visam apenas viabilizar estudos ou mesmo a difusão da música, via distribuição do material, por exemplo. Além disso, eventualmente, gravações com formatos mais

próximos de padrões mercadológicos podem abordar estilos musicais considerados étnicos, ao passo que registros fonográficos com intuitos etnográficos podem, normalmente, ser comercializados ou tratarem, como tema de análise, um estilo de música extremamente comercial.

Cientes destes parâmetros, portanto, consideremos, no presente trabalho, os significados das expresões “mercadológica”, “comercial”, “etnográfica”, etc., quando relacionadas aos processos fonográficos, apenas como forma de diferenciação entre aqueles mais voltados para um mercado fonográfico (discos, filmes, propagandas, etc.) ou mais próximos de intuitos etnográficos, tanto em sua forma de elaboração quanto e, principalmente com objetivos de possibilitar análises ou estudos.

Com o desenvolvimento das tecnologias de gravação na primeira metade do século XX, vimos o surgimento da fita magnética possibilitando uma evolução no sentido de se realizar processos de edição nos materiais gravados, como menciona Sérgio Freire Garcia, ou seja:

A construção (ao invés da documentação) de um evento supostamente original é prática comum no cinema desde seus primórdios; a gravação de música passa a realizar esse tipo de construção bem mais tarde ao explorar não apenas o corte e a montagem de gravações em fita, mas principalmente as possibilidades abertas pela gravação em múltiplos canais (GARCIA, 2004. p. 47-48).

Tais desenvolvimentos resultaram em inúmeras possibilidades de utilização e comercialização de sons de instrumentos ou vozes não naturais, mas elaborados segundo processos de edição musical33, conceitos estéticos variados e, em grande parte, interesses econômicos, favorecendo o surgimento de padrões estéticos para o mercado da música em contraposição aos registros etnográficos de performances musicais que, com o emprego de captações stereo, tendiam a salientar a estética musical do objeto tratado além de características da performance.

Sobre o conceito característico do mercado da música, vale destacar que os resultados do processo fonográfico, na maioria dos casos, exprimem o ponto de vista do produtor, além de poderem, em alguns casos, exprimir a ótica dos demais integrantes do processo, como músicos, técnicos, etc., embora possamos considerar também as influências da acústica do local de gravação, dos equipamentos, dos procedimentos, etc.

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Processos de cortes, colagem, repetição, etc. de partes gravadas surgidos, mais especificamente, após a popularização da fita magnética.

Esse processo é compreensível devido aos objetivos de uma produção musical padrão (mercadológica) que, em última análise, busca uma comercialização da música gravada. Portanto, embora este seja composto de pequenas contribuições artísticas de vários atores (compositores, artistas, técnicos, etc.), representa, mais precisamente, a obra ou o resultado do trabalho do produtor enquanto figura que detém o poder de decisão sobre as características do produto final.

Evidentemente, existem inúmeras exceções para esta afirmação, a exemplo de possíveis consensos entre os participantes do processo fonográfico sobre decisões acerca das características desse fonograma. Contudo, apesar das exceções, fonogramas com características estéticas decorrentes de decisões, principalmente, do produtor, parecem representar a maior parte dos casos de produções com intuitos mercadológicos.

Louise Meintjes, tratando sobre a música mbaquanga em seu livro Sound of Africa, nos explica indiretamente a idéia exposta no parágrafo anterior, ou seja:

Mbaqanga também vem a ser o que é através do discurso metacultural e metamusical que

articula e define a substância de mbaqanga dentro do contexto de formas específicas de expressão. No estúdio, artistas, produtores e engenheiros estão empenhados no processo de contar uma história para um outro sobre o que eles acham que mbaqanga é […]34 (Tradução minha) (MEINTJES, 2003. p. 69.)

Como afirma Meintjes, os atores citados encontram-se envolvidos em um processo de mostrar o que “eles acham” que a música tratada é, independente do que esta represente para seus criadores ou para a sociedade da qual derivou. Portanto, o processo de produção fonográfica comercial ou mercadológico, não necessariamente, objetiva informar aspectos musicais desta arte segundo a estética daqueles que a criaram, podendo ocultar, modificar ou acrescentar outras características ao fonograma.

Caso este fonograma apresente características estéticas diversas das que constituem a cultura da qual a música se originou, a difusão desta “nova” música pode proporcionar diferentes significados para quem a escuta sem conhecer suas formas e significados culturais peculiares, favorecendo uma lenta modificação do estilo musical que, em parte, decorre da veiculação da

34 Mbaqanga also comes to be what it is through the metacultural and metamusical discourse that articulates and defines mbaqanga’s substance within the context of specific forms of utterance. In the studio artists, producers, and engineers are engaged in a process of telling a story to one another about what they think mbaqanga is […]

forma gravada nos mecanismos de difusão musical. Esta “modificação” de estilo pode, em alguns casos, vir a influenciar a sociedade em aspectos variados.

Quando a música de tradição oral de um determinado grupo étnico oriundo de uma localidade pouco conhecida é, inicialmente, gravada e distribuída pelos mecanismos de difusão musical para a sociedade maior, passa a ser conhecida na sociedade envolvente pelas características do material gravado, e não pelas características próprias da música como é escutada em seu contexto de criação. Se este material difundido diverge em conceitos estéticos, acústicos ou outros quaisquer da música original, configura-se então uma difusão de características diversas desta manifestação e, sobretudo, em um mecanismo difusor com possibilidades infinitamente superiores às pequenas festas e situações características em que esta música é levada ao público em seus mecanismos tradicionais de exposição musical, ou seja, terreiros, festas regionais de santos, cortejos, etc.

Não entendamos, porém, o emprego do adjetivo comercial neste estudo como capaz de prenunciar um caráter pejorativo de um tipo de música qualquer, ou seja, em comunhão com as palavras de Merriam, consideremos que a música é, sobretudo, uma forma de interação social (MERRIAM, 1964, p. 27) que pode ser expressa de formas variadas.