CAPÍTULO III: ASPECTOS HISTÓRICOS
1. Razões para o alargamento das pretensões tuteladas pela execução
1.1 Conceito romano de jurisdição
No Direito Romano havia, dentre outras de menor importância,208 duas espécies de instrumentos para a proteção e defesa dos
direitos que poderiam ser invocados perante os magistrados, quais sejam: os interdicta (interditos) e a actio.209
Os interdicta surgiram em decorrência: (a) da inexistência de actio para compor litígios possessórios; 210 (b) da falta de efetividade da
actio para a tutela de situações de urgência – tais como as de repressão ao
esbulho211 – e constituíam o meio adequado para manter as coisas no estado
em que se achavam, tutelando, assim, a ordem pública e a paz social.
208 Alexandre Correia e Gaetano Sciascia. Manual de direito romano e textos em corres-
pondência com os artigos do Código Civil Brasileiro. vol. I, 3.ª ed. (revista e ampliada).
São Paulo: Saraiva, 1957, p. 87-113.
209 Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2 ed. rev. São Paulo: RT, 1997, p. 25.
210 Luiz Carlos de Azevedo e José Rogério Cruz e Tucci. Lições de História do Processo
Civil Romano. São Paulo: RT, 1996, p. 112.
211 Humberto Theodoro Júnior. “O procedimento interdital como delineador dos novos rumos do direito processual civil brasileiro”, RePro 97/232.
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Os interdicta, ao contrário do que ocorria com a actio, desenvolviam-se inteiramente perante o pretor (magistrado) e resultavam num interdictum – comando ou ordem – por meio do qual o magistrado, a pedido de um particular e fazendo uso do seu poder de imperium, impunha a outra pessoa, com base em cognição sumária,212 comportamento (de fazer ou
de não fazer) ou autorizava a realização de atos executórios.
De acordo com Alexandre Correia e Gaetano Sciascia,213 a
diferença essencial entre a actio e os interdicta consistia no fato de que “o processo interdital em princípio não permite o exame da existência ou
inexistência de um direito entre as partes, mas procura manter o estado atual
das coisas”.
Após a pronúncia, se a parte obedecesse à ordem, o interdictum cumpriria sua função; caso contrário, tinha início uma actio ex
interdicto, baseada em obrigação de pagar quantia em dinheiro por parte de
quem tinha violado a ordem interdital.214
212 Fábio Cardoso Machado (Jurisdição, condenação e tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 27) questiona se os interdicta eram, realmente, fundado em apreciação sumária dos fatos.
213 Manual de direito romano e textos em correspondência com os artigos do Código Civil
Brasileiro. vol. I, 3.ª ed. (revista e ampliada). São Paulo: Saraiva, 1957, p. 106.
214 Fábio Cardoso Machado. Jurisdição, condenação e tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 28.
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Já a actio era caracterizada, principalmente, por ser bifásica. A primeira fase se desenvolvia perante o magistrado (pretor215) e a
segunda perante o juiz (iudex). As atividades de iurisdictio (ius dicere) e de iudicatio (iudicare) eram conferidas a pessoas distintas. Apenas a iurisdictio –
organização e fixação dos termos da controvérsia – constituía função estatal e era outorgada ao magistrado. A iudicatio – atividade de analisar as provas e julgar por sentença nos limites impostos pelo magistrado – era exercida por alguém escolhido pelas partes e autorizado pelo magistrado.216
Na actio, a atividade do magistrado estava limitada à iurisdictio. Ao magistrado competia tão-somente determinar o direito de
acordo com o qual poderia ser concedida uma ação, enquanto ao juiz cabia pronunciar-se sobre os fatos e alegações das partes, aplicando a fórmula para condenar ou absolver.217
O Direito Romano, portanto, diferenciava claramente a função declaratória (julgar) da ordem que o magistrado impunha por meio dos
215 Para ser pretor era necessário ser cidadão romano, do sexo masculino, ter servido dez anos no exército e não ser alvo de infâmia.
216 Em sentido contrário, destaca-se posição de Humberto Theodoro Júnior (“Execuções das medidas cautelares e antecipatórias”, Processo de Execução. Coordenação de Sérgio Shimura e Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 466) “No significado histórico e semântico, a idéia de jurisdição (juris dictio) se
identificava com a atividade do judex, árbitro a quem, no direito romano primitivo, atribuía-se a missão de realizar, diante de um conflito jurídico, a definição do direito concreto para solucionar a controvérsia; o judex, em sua serventia, definia a regra do direito a observar, quase sempre se valendo das normas abstratas da lei regedora da hipótese”.
217 Fábio Cardoso Machado. Jurisdição, condenação e tutela jurisdicional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p. 32.
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interdicta e entendia que a atividade jurisdicional estava limitada a declarar o
direito, ou seja, ao ato intelectual por meio do qual o magistrado mostrava ou indicava o direito,218 não sendo dado a ele proclamar diretamente a existência
de direito.
Para os romanos, os interdicta não caracterizavam atividade jurisdicional, seja porque neles o magistrado não se limitava a indicar o direito, mas ordenava à parte, impondo um fazer ou abster, seja porque proferidos com base em cognição sumária dos fatos, seja, ainda, porque sujeitos a serem revistos sempre que a contraparte impugnasse sua legitimidade.
Assim, quando o magistrado exercia seu império, não se podia falar em jurisdição ou processo.219
218 “Modernamente, jurisdição se conceitua como o poder do juiz de declarar a vontade da
lei, com força vinculante para as partes, nos casos concretos que lhe são submetidos. No direito romano, o conceito de iurisdictio é muito controvertido, e constitui um problema até hoje não resolvido satisfatoriamente. A questão assim se resume. A palavra iurisdictio deriva de ius dicere, que significa dizer o direito, isto é, declarar, com relação a um caso concreto e com efeito vinculante para as partes, a vontade jurídica. Ocorre, no entanto, que esse significado somente se ajusta ao processo extraordinário (cognitio extraordinária), em que o magistrado – como ocorre atualmente – não apenas conhece do litígio, como também o decide na sentença, onde declara a vontade da lei. O mesmo não sucede, porém, com referência aos sistemas das ações da lei e formulário, porquanto, neles, em virtude da divisão de instâncias nas fases in iure e apud iudicem, o magistrado, que tem a iurisdictio, não prolata a sentença, mas sim o iudex que não dispõe desse poder. Donde a conclusão evidente: a iurisdictio, nesses dois sistemas de processo civil, não dizia respeito à declaração da vontade da lei num caso concreto. Qual, então, o seu conceito? Os autores divergem. A opinião mais comum é a de que a iurisdictio é o poder de declarar o direito aplicável (mas, não em princípio, o de julgar) e de organizar o processo civil”. (José Carlos Moreira Alves. Direito Romano. vol. I, 4.ª ed. rev. e acrescentada. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 224).
219 “As razões pelas quais se excluem os interditos do conceito de jurisdição, portanto, são
estas: (a) o “comando” imposto pelo pretor era condicionado, quer dizer, o magistrado ordenava com base num direito non ancora accertato, o que significa afirmar que não
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Enfim, na concepção romana, somente a actio tinha natureza jurisdicional. Os interdicta, segundo Ovídio A. Baptista da Silva,220
não obstante serem uma das mais nobres funções desenvolvidas pelo magistrado, não tinham tal natureza, cuidando-se apenas de atividade administrativa.
A incorporação do conceito de jurisdição vigente no Direito Romano221 ao Direito atual limita o conceito de jurisdição à declaração e,
conseqüentemente, separa a atividade de julgamento da atividade de ordem.222 Ao segregar a atividade de julgamento da atividade de ordem e
limitar o conceito de jurisdição apenas à primeira, sem que a ordem integre seu conteúdo, o pensamento moderno reduz o fenômeno jurisdicional ao mundo normativo, sem a interferência na realidade empírica ou no mundo sensível,223 ou seja, restringe o fenômeno jurisdicional a três categorias de
teria havido, ainda, “composição” definitiva do conflito; (b) o interdito estabelecia um vínculo di natura pubblicistica, ao passo que o ordenamento jurídico privado somente poderia reproduzir um reconhecimento (declaração) de direitos, nunca uma ordem, declaração esta sempre relativa a uma relação de direito privado”. (Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2 ed. rev. São Paulo: RT, 1997, p. 27).
220 Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2 ed. rev. São Paulo: RT, 1997, p. 9.
221 “O conceito de jurisdição que nos foi levado pelo direito romano tardio pressupunha a
distinção clara e radical entre a função declaratória do direito, enquanto ius dicere, e o facere com que o magistrado haveria de socorrer o litigante, impondo uma ordem, a ser cumprida pelo demandado, quer dizer, se o direito não fosse “da se sufficiente” para realizar-se através de uma atividade própria e exclusiva do titular. Se, todavia, o direito se mostrasse “plenus et sufficiens”, então bastava declará-lo exercendo, neste caso, o magistrado atividade jurisdicional, enquanto ius dicere, confiando em que o demandado, ante a exortação (rectius, condenação), cumprisse a sentença”. (Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2 ed. rev. São Paulo: RT, 1997, p. 32).
222 Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2 ed. rev. São Paulo: RT, 1997, p. 33.
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sentenças: declaratórias, constitutivas e condenatórias, todas elas (a) sem nenhum conteúdo de ordem que o magistrado possa dirigir ao demandado (b) incapazes de repercutir na realidade empírica, tornando necessária a propositura de novo processo, agora de execução.
A concepção de que a jurisdição não produz ordens, mas simples declarações,224 acaba por universalizar a sentença condenatória para
todas as pretensões que não sejam declaratórias ou constitutivas e por transformá-la em simples exortação para que o demandado cumpra a prestação e pague aquilo que deve.225
Essa definição de jurisdição foi determinante para o fenômeno da universalização da sentença condenatória e da execução para a tutela de todas as pretensões que não sejam declaratórias ou constitutivas, sejam elas fundadas em direito real ou pessoal.
224 Ovídio A. Baptista da Silva. Jurisdição e execução na tradição romano-canônica. 2 ed. rev. São Paulo: RT, 1997, p. 28.
225 “A despeito das inesgotáveis polêmicas acerca da natureza da sentença condenatória,
identificamos nela, claramente, duas características capazes de dar-lhe individualidade: a sentença condenatória visa à execução, mas não inaugura, desde já, o momento em que se praticarão os atos executivos; exorta o condenado ao cumprimento de uma prestação, mas nada ordena, de modo imperativo, exigindo obediência sob pena de inflição de mal”. (Fábio Cardoso Machado. Jurisdição, condenação e tutela jurisdicional.
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