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Conceitos à flor da pele: diáspora e multiculturalismo

No documento odetedesouzameireles (páginas 50-53)

CAPÍTULO II ACERCA DA TEORIA: PROBLEMATIZANDO CONCEITOS

2.4. Conceitos à flor da pele: diáspora e multiculturalismo

Privilegiamos trazer a fala dos moradores mais velhos desta comunidade que traz em seu seio uma homogeneidade em boa medida construída através de vínculos com seus antepassados. Passado que foi construído sob as reminiscências de quem veio lá de longe, lá da África!

Pretendemos discutir alguns autores que sinalizaram a partida para uma nova e promissora reflexão de uma realidade a eles presente, mas buscando explicá-la sob o foco de movimentos diaspóricos marcados na pele por terem sido conseqüência de um passado, dir- se-ia aqui, manchado pelos processos de colonização impostos pelo mundo ocidental.

Quando se quer a transparência de uma realidade tendencialmente ofuscada por uma determinação da cor branca, o foco dos holofotes deve partir de onde faltou luz para explicar este grande black-out na história latinoamericana.

Diz Hall:

As culturas, é claro, tem seus „locais‟. Porém, não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam. O que podemos mapear é mais semelhante a um processo de repetição- com-diferença ou de reciprocidade sem começo. Nessa perspectiva, as identidades negras britânicas não são apenas um reflexo pálido de uma origem „verdadeiramente‟ caribenha, destinada a ser progressivamente enfraquecida. São o resultado de sua formação relativamente autônoma. Entretanto, a lógica que as governa envolve os mesmos processos de transplante, sincretização e diasporização que antes produziram as identidades caribenhas(HALL, 2009: 36).

Hall propõe uma leitura da realidade diaspórica dos caribenhos na Grã-Bretanha que, indiscutivelmente, tem uma grande conexão com a realidade das comunidades negras rurais no Brasil. Aqui, também, a sua cultura continua marcada pelos “processos de transplante, sincretização e diasporização” que produziram a cultura dos seus antepassados. Elas

continuam vivendo à margem do processo político-econômico e cultural brasileiro, elas são vítimas, ainda na atualidade, do movimento diaspórico, embora com nuances diferenciadas. Assim como os caribenhos que na Grã-Bretanha demarcaram o que Hall chamou de segundo movimento diaspórico e que neste país vivem perifericamente, as comunidades negras rurais no Brasil vivem aqui também de forma periférica, como, inclusive, o próprio Estado parece reconhecer. Concentrando a atenção no que diz a senhora Salete Paulina da Silva, uma das entrevistadas, é perceptível que a diáspora é uma velha conhecida da comunidade: “Os irmãos do meu pai mudaram tudo para Alfredo Vasconcelos, Barbacena, arrumou emprego, hoje tem casa sua e tá tudo colocado, graças a Deus”.

Obviamente que somos sabedores de que esse exemplo supra citado não se constitui, por si só uma diáspora. Ainda assim temos que ele demonstra uma realidade de dispersão comum aos negros. Tanto é que hoje são poucos os negros que podem dizer “graças a Deus” por terem conseguido melhor sorte em localidades diferentes, isto é, urbanas, como demonstram as estatísticas oficiais.

Em entrevista concedida a Kuan-Hsing Chen, diz brilhantemente Hall:

Conheço intimamente os dois lugares (Caribe e Grã-Bretanha), mas não pertenço completamente a nenhum deles. E esta é exatamente a experiência diaspórica; longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma „chegada‟ sempre adiada. (HALL, 2009: 393).

E é nesse sentido que foi possível vislumbrar através das falas dos moradores da Comunidade de Santo Antônio do Morro Grande, uma noção de pertencimento, dir-se-ia, marcada pelo indefinido, já que não há país de origem. Em seu lugar, o que parece existir é uma tradição cuja origem remonta aos seus antepassados e perpetuada por aqueles que a trazem em sua memória e insistem em vivenciá-la na prática, mas dentro de um condicionamento imposto e interposto também pela outra face da realidade, que é de parecer estar apenas locacionalmente no Brasil e, por isso, dele não pertencer de fato e muito menos de direito.

Este enfoque complementa-se também com as considerações de Bhabha. De fato, compartilha-se com ele neste aspecto:

Nenhuma cultura é jamais unitária em si mesma, nem simplesmente dualista na relação do Eu (pesquisador, intelectual) com o Outro (objeto de pesquisa). Não é devido a alguma panacéia humanista que, acima das culturas individuais, todos pertencemos à cultura da humanidade; tampouco é devido a um relativismo ético que sugere que, em nossa capacidade intelectual de falar sobre os outros e de julgá- los, nós necessariamente nos colocamos na posição deles (Bhabha, 1998:65).

Dentro do pressuposto de que “a representação da diferença não deve ser lida apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição” (BHABHA, 1998:20).

Ao privilegiar a história de vida, não pretendemos fazer uma leitura do passado da comunidade ora em foco. Mas, entender como esse passado da comunidade se inscreve no agora, no tempo presente. E, em alguma medida, indagar, também, como esse agora, esse tempo presente, regido pela avalanche da globalização, convive com tradições de outro tempo.

Não estamos, pois, diante de uma realidade consubstanciada por determinações binárias advindas das categorias passado x presente, tradição x modernidade, modernidade x pós-modernidade, como se através delas fosse possível partir para a soberania intransponível das conclusões, das pretensas conclusões. Se há que se falar de uma intransponibilidade binária essa tem de ser remetida à cor da pele porque há que se reconhecer que, no Brasil, ao negro cumpre sujeitar-se ao papel que lhe é devido: O de ser diaspórico dentro de seu próprio país.

Outro fato que não podemos esquecer é que estamos vivendo uma realidade na qual todas as ordens tendem a ser ditadas pela globalização. Como, pois, desfocar a comunidade de Santo Antônio do Morro Grande desse contexto maior?! Nesse sentido, consideramos urgente trazer uma outra discussão: o multiculturalismo globalizado.Segundo Paul Gilroy:

(...) as culturas dos nativos, não apenas o seu trabalho, podem agora ser compradas e vendidas como mercadorias. As suas realizações exóticas são veneradas e exibidas (embora nem sempre como arte autêntica) e os frutos da alteridade alcançaram um valor imediato (...) Vimos que elementos selecionados da sua cultura penetram intensamente nas vidas do grupo dominante por meio das indústrias culturais, as quais conseguem grandes lucros com essas atividades (GILROY, 2007: 295-296).

Obviamente que Gilroy está se referindo a um dualismo branco/negro urbano, cosmopolita, globalizado. Ou seja, de uma incorporação da cultura negra pela cultura branca em que pesa, a favor do branco, os lucros advindos da mercantilização da cultura negra e, inclusive, da beleza plástica da raça negra.

Trazer à luz a noção de multiculturalismo é importante porque observamos certas contradições experimentadas pela comunidade negra rural, que vive com tessituras que a envolvem no passado, mas, também com as tessituras de um tempo globalizado. Também não se pode imaginá-la alienada e sem capacidade para analisar as tendências de imposição de um multiculturalismo cuja intenção não é outra senão trazer para o mercado o que o negro possui de singular (beleza, ritmo musical, dança, etc.). Nesse sentido, os três autores, acima citados, apresentam contribuições para entendermos certos vínculos analíticos entre as noções de multiculturalismo e alteridade dentro da comunidade de Santo Antônio do Morro Grande.

No documento odetedesouzameireles (páginas 50-53)

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