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As primeiras corporações de ofícios com regras e regulamentos rígidos, definindo os limites e atribuições do trabalho artesanal, surgiram apenas a partir do século XVIII, algumas destas entidades com grande destaque. Porém, com o desenvolvimento industrial o artesanato entrou em decadência e em marginalização social e econômica, sobrevivendo como alternativa de consumo para as populações periféricas, ou de

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Entrevista compartilhada com o consultor do Iphan/Unesco Clair da Cunha Moura Júnior, em 03 de outubro de 2013.

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Acreditamos que a quantidade de pessoas seja grande, mas não alcance a soma de 500 pessoas, talvez umas 300, considerando-se uma média de 8 a 10 pessoas por fábrica (num total de 15 identificadas).

menor poder aquisitivo, impossibilitadas economicamente de acesso aos bens e serviços produzidos pelas indústrias.

Não conseguindo competir em eficiência com o produto industrial de larga escala, o artesanato adotou a estratégia de ofertar produtos com um melhor acabamento, exclusividade e singularidade, aspirando a uma faixa de consumidores mais exigentes e direcionados a produtos únicos e personalizados (BARROSO, 2001). Em seu livro Design + Artesanato: caminhos possíveis, Adélia Borges (2012) utiliza o conceito de artesanato adotado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), no Internacional Symposium on Crafts and Internacional Markets, em Manila, Filipinas, 1997:

Produtos artesanais são aqueles confeccionados por artesãos, seja totalmente a mão, com o uso de ferramentas ou até mesmo por meios mecânicos, desde que a contribuição direta manual do artesão permaneça como o componente mais substancial do produto acabado. Essas peças são produzidas sem restrição em termos de quantidade e com o uso de matérias-primas de recursos sustentáveis. A natureza especial dos produtos artesanais deriva de suas características distintas, que podem ser utilitárias, estéticas, artísticas, criativas, de caráter cultural e simbólicas e significativas do ponto de vista social. (BORGES, 2012, p. 21).

Esse conceito abarca o modo de fazer dos paneleiros de Guarapari e das paneleiras de Goiabeiras, cita a natureza utilitária dos mesmos e também a natureza cultural do artesanato de Goiabeiras.

Borges (2012) traz ainda uma comparação interessante com o significado de artesanato (craft) nos países “desenvolvidos”, como Holanda, Finlândia, Inglaterra e Austrália, cujas técnicas são aprendidas em cursos universitários “e são exercidas primordialmente por pessoas instruídas que veem na atividade uma forma de autoexpressão - o que as aproxima mais da arte do que do design” (BORGES, 2012, p. 25). Essas peças geralmente não são produzidas em série, ou o são em séries limitadas, com elevados preços, compatíveis com obras de arte, afirma Borges (2012). Entretanto, a realidade brasileira se aproxima da encontrada em outros países da América Latina, na qual as técnicas artesanais são geralmente transmitidas de geração em geração ou por habitantes mais velhos, ou ainda inventadas com o auxílio do design, sendo um artesanato “de objetos que são feitos em geral coletivamente (por grupos familiares e/ou vizinhança) e que são ou podem ser

reproduzidos em série”, e ainda podem ser “projetados a partir de premissas habitualmente atribuídas ao design, como o atendimento a determinada função de uso, a partir do emprego de determinadas matérias-primas e determinadas técnicas produtivas” (BORGES, 2012, p.25).

No Brasil é comum os artesãos e artesãs (em sua maioria mulheres), dividirem a atividade do artesanato com outras, como o trabalho doméstico, de serviços gerais, de pedreiro, por exemplo. Em Goiabeiras percebemos bem isso, já em Guarapari os artesãos se dedicam exclusivamente ao artesanato da panela de barro, uma vez que sua produção é grande, assim como sua demanda.

Contudo, o artesanato passou a ser aludido como uma atividade econômica voltada para a geração de emprego e renda por instituições governamentais, não- governamentais ou particulares, como o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), que desenvolveu um Termo de Referência do Programa Sebrae de Artesanato (2010), a partir dos relatórios dos encontros regionais do Programa Sebrae de Artesanato, após cinco anos de sua implantação (1999 - 2003), conforme afirma Luiz Antonio dos Santos Barros (2006).

Como este Termo apresenta definições e conceituações de categorias, tipologias e organizações de artesanato que também são utilizadas por outras instituições de fomento ao artesanato, também o utilizamos para compreender um pouco mais deste universo.

Em relação à definição da Unesco, o Sebrae acrescenta algumas características, como a habilidade, destreza, qualidade e criatividade na confecção dos objetos artesanais, caracterizada pela produção em pequenas séries com regularidade; produtos semelhantes, porém diferenciados entre si; compromisso com o mercado e fruto da necessidade (SEBRAE, 2004, p. 21).

Os recentes programas e projetos propostos e desenvolvidos por instituições públicas e privadas necessitam definir os contornos do artesanato, para desta forma, limitarem suas intervenções (BARROSO, 2001). Deste modo, o Termo de Referência do Programa Sebrae de Artesanato julga ter contribuído ao artesanato, auxiliando na delimitação dos termos que envolvem a atividade do setor, assim como definindo

diretrizes de melhorias no processo de produção e comercialização do artesanato. O artesanato é categorizado de acordo com suas funções. Conforme aponta Barroso (2001) pode ser de caráter utilitário, conceitual, decorativo, litúrgico e lúdico. O caráter utilitário geralmente constitui em ferramentas e utensílios desenvolvidos para suprir carências e necessidades das populações de menor poder aquisitivo, substituindo produtos industriais de valor mais elevado.

Quanto ao conceitual, são objetos com a finalidade principal de externar uma reflexão, discurso ou conceito próprio de quem o produz, seja este um indivíduo ou comunidade. O caráter decorativo designa artefatos cuja principal motivação é a busca da beleza, com a finalidade de harmonizar os espaços de convívio.

Produtos de finalidade ritualística destinados a práticas religiosas ou místicas reforçando os sentimentos de fé e de elevação espiritual envolvem o caráter litúrgico. Já os produtos destinados ao entretenimento de adultos e crianças, relacionados com as práticas folclóricas e tradicionais, incluindo-se nesta categoria todo tipo de brinquedos populares e instrumentos musicais, compõem o caráter lúdico.

Barroso (2001) ainda classifica o artesanato em tipos: o artesanato indígena, cujos objetos são produzidos em comunidades indígenas; o artesanato tradicional, em que os objetos são produzidos com representação cultural e tradicional, de origem familiar ou regional, transmitidos de geração em geração, como no caso do artesanato das paneleiras de Goiabeiras; e o artesanato de referência cultural, que tem seus objetos com características e incorporação de elementos culturais da região onde são produzidos, normalmente são frutos do trabalho desenvolvido por artistas e designers em parceria com os artesãos.

Estas classificações foram determinadas com o objetivo de auxiliar a organização do artesanato em segmentos, facilitando assim seu desenvolvimento e comercialização, como por exemplo, a definição de estandes em feiras por seus segmentos. Entretanto, o conceito do artesanato utilitário parece um pouco ultrapassado. Atualmente não são apenas as pessoas de baixo poder aquisitivo que adquirem objetos artesanais. Esse direcionamento de classe consumidora aconteceu no início da industrialização, como vimos anteriormente.

Conforme Emanuelle K. R. da Silva (2009, p.167), “a busca pela identificação pessoal e pelo status na sociedade vem difundindo a utilização do artesanato das mais variadas formas, este passa a ser associado a um sentimento de identificação e de valorização cultural”.

As panelas de barro não são consumidas para substituir as panelas industriais, mas sim para manter a tradição capixaba de comer moqueca em panela de barro; para lembrar da visita ao estado, pelos turistas; para presentear pessoas queridas; para compor um ambiente rústico de restaurantes, principalmente os especializados em frutos do mar ou comida mineira.

O artesanato entra neste contexto de diferenciação como o elemento de distinção de alguns grupos e de indivíduos, atuando de formas distintas através de suas significações simbólicas. (SILVA, 2009, p.167).

Deste modo, podemos perceber que um objeto utilitário se mantém atrativo tanto por suas características utilitárias (panela que mantém a comida quente por mais tempo e a deixa mais saborosa), quanto por suas características simbólicas (cultural - tradição da moqueca na panela de barro, e mercadológica – souvenir para o turista). O artesanato dos paneleiros de Guarapari não se enquadra no artesanato tradicional, mesmo que vindos da tradição de Pernambuco no trabalho com a cerâmica, mas poderia se enquadrar no artesanato de referência cultural, caso houvesse intervenção de instituições de fomento ao artesanato nessa comunidade, conforme discutiremos mais adiante, no próximo capítulo.

Contudo, as fronteiras dessas definições, incluindo o que é artesanato, o que é arte popular ou trabalho manual60, acabam sendo diluídas pela contemporaneidade, conforme coloca Borges (2012):

Se a contemporaneidade diluiu as fronteiras entre áreas do conhecimento e atividades em geral, o fez mais ainda naquelas que, por natureza, têm múltiplas facetas, como o artesanato e o próprio design. Nelas, as tipologias se interpenetram e variam muito de um caso para outro, escapando ao olhar cartesiano que, aqui, seria uma forma de aprisionamento. (BORGES, 2012, p. 26).

Para Vera de Vives (1983, p. 133), o artesão tradicional é “aquele que emprega e transmite, em seu trabalho, valores, técnicas e signos amadurecidos e aceitos no

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sistema cultural a que ele mesmo pertence”. Deste modo, quanto mais o cliente, principalmente o turista, entender essa ligação do artesão com sua cultura, mais dará valor ao trabalho deste.

No contexto globalizado em que vivemos hoje, o artesanato também enfrenta competitividade e exigência de qualidade, conforme coloca Barroso (2001):

Um artesanato de qualidade deve ter uma clara identificação com sua origem, uma certidão de nascimento indelével, impressa nas cores, nas texturas, nas marcas deixadas pelas mãos dos artesãos em cada peça. Essa identidade é algo que se consegue com o tempo, fruto de muito esforço, constância e dedicação. Não se consegue com decretos e nem utilizando de modo forçado as caricaturas de nosso entorno. (BARROSO, 2001, p. 10).

Essa questão da identidade cultural do artesanato é proeminente porque “quem compra artesanato está comprando também um pouco de história” (BARROSO, 2001, p. 10). Deste modo, se faz importante a contextualização da feitura do artesanato junto ao produto, como informação de quem fez, como fez, quanto tempo levou, para que o cliente possa compreender melhor o valor do artesanato.