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5 DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS AFIRMATIVAS

5.1 Concepção contemporânea de direitos humanos

Os direitos humanos são um constructo social fruto de reivindicações morais em um dado lugar e tempo (PIOVESAN, 2005, p. 44). Com base na definição descrita, é possível determiná-los como invenção humana em constante processo de construção, na qual um universo de demandas pessoais e coletivas são reclamadas. Ou seja, um construído axiológico fundamentado em um espaço simbólico de luta e ação social, reflexo da plataforma emancipatória política de cada momento histórico.

No tocante a sua dimensão histórica, é possível perceber que de fato os direitos humanos nunca foram interpretados da mesma forma que atualmente. Em meados do final do século XVIII os documentos que reverberaram as revoluções daquela época, muito embora ecoassem a universalidade da igualdade, não despontavam nenhuma interpretação capaz de uma ação concreta em relação à imensa exclusão latente de determinados indivíduos na sociedade. Mulheres, escravos e demais pessoas foram simplesmente negligenciados do processo político em curso e, por este motivo, alguns estudiosos criticam o significado emancipatório cunhado por tais revoluções38.

Tanto a Declaração de Independência dos EUA quanto a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na França atestavam em seu texto a expressão genérica de que todos os homens nascem e são iguais em direitos e deveres. Comparando os dois documentos é possível notar, inclusive, que essa afirmação não estava restrita ao ambiente interno daqueles países, pois que seus ideais achavam-se baseados no pressuposto comum de que os direitos são autoevidêntes, isto é, tão naturais que sua inerência é notável de maneira clara e óbvia diante da natureza humana (HUNT, 2009, p. 17).

Entretanto, foi tomando como referência a escrita de documentos tão importantes que categorias sociais de distinção prática foram se tornando cada vez mais evidentes. Pessoas de vida secular comum começaram a compreender o verdadeiro significado que traziam os novos tempos, sobretudo quanto à sua relação de dessemelhança com os demais. Os princípios de liberdade e igualdade passaram a ser invocados exatamente por aqueles que não se sentiam beneficiados, revelando que a expressão “todos os homens nascem livres e iguais” não deveria

38 Alguns autores mais críticos destacaram o caráter limitado da Revolução Americana. Para eles, apesar das

grandes novidades do texto, a Declaração de Independência apresenta o Estado de forma “idealista” e vê o homem de maneira abstrata (PINSKY, 2010, p. 143).

ter seu caráter revolucionário desprezado, porque foi em busca de seu aspecto concreto que os movimentos de ampliação da cidadania passaram a ocorrer (PINSKY, 2010, p. 145).

Nesse contexto, diversas questões mal resolvidas passaram a ser exigidas. Pessoas de categoria social semelhante, identificadas por fatores interpessoais de identidade coletiva, surgiram demandando direitos postergados. Nesse momento as reclamações se faziam basicamente no ideário de tratamento igual a todos. O Estado deveria abster-se de preferências em razão de condições sociais e econômicas, colocando-se em posição de neutralidade, a lei e os julgamentos deveriam ser aplicados de maneira uniforme e equânime, sem distinções (HUNT, 2009, p. 14).

Entretanto, com a Revolução Industrial e o processo de acumulação de riqueza ocasionado pelos ideais de liberdade econômica, tornou-se cada vez mais evidente a desigualdade entre as classes que compunham a sociedade, sobretudo na diferença marcante existente entre burgueses e operários. Esse processo revolucionário propiciou uma acentuada multiplicação da riqueza e consequentemente do poderio econômico da burguesia, que detinha e concentrava o direito de propriedade dos meios de produção, fundamentado sob o timbre das liberdades fundamentais adjacentes. Em decorrência disso, houve uma desestruturação nos modos tradicionais de vida, deixando o restante da população em situação de pobreza e servidão em relação ao trabalho (TRINDADE, 2012, p. 78).

Nesse ponto um segundo aspecto pode ser enfatizado, qual seja, a necessidade de contextualização dos direitos humanos para sua fruição efetiva. Era necessário então reinterpretar aquele documento no sentido de entender um novo sentido para a palavra igualdade. Exigiam uma postura positiva do Estado para tomar parte nas relações pessoais e garantir aos menos afortunados prestação de serviços fundamentais, sem os quais a concretização da igualdade restava prejudicada (PINSKY, 2010, p. 218).

No limiar do século XIX surgem as primeiras reivindicações exigindo atitude positiva do Estado frente à efetivação de direitos outrora reconhecidos (PAIVA, 2015, p. 132). Essa ressignificação da igualdade lhe dá um tom mais material em contraponto ao critério formal que era adotado, e passa a ver a concretude da realidade social como meio para sua efetivação. Com esse aspecto, são exigidas não apenas garantias fundamentais de liberdade econômica, mas agora são necessárias intervenções incisivas para a prestação isonômica do usufruto das oportunidades de vida.

Contudo, muito embora a universalidade daqueles direitos estivesse prevista de maneira taxativa aos olhos de qualquer um, as revoluções da época se restringiam aos contextos

locais de suas realizações. Em demais países ao redor do mundo, o eco de tais documentos ainda não estava presente, e os ideais dos filósofos iluministas eram apenas livros a serem estudados por eruditos. Dessa forma, o tom abrangente da sua dimensão se fazia abreviado e excluía boa parte da população mundial.

Somente com o término da Segunda Guerra Mundial a expressão universalidade ganhou uma significação mais real. Diante do balanço aterrorizante e dos desastres ocasionados, em 26 de junho de 1945 as nações vencedoras firmaram um acordo no intuito de substituir a extinta Liga das Nações como entidade máxima para discussão de conflitos internacionais, criando a Organização das Nações Unidas (ONU). A partir daí se fez à comunidade internacional o restabelecimento da noção de direitos humanos com base na crença de que são direitos universais e indivisíveis (TRINDADE, 2012, p. 174).

A Carta de São Francisco, documento que corroborou o acordo para criação da ONU, estabeleceu preceitos segundo os quais as nações do mundo desenvolveriam relações baseadas no respeito à igualdade e na autodeterminação dos povos. Previu também a adoção de medidas para o fortalecimento da paz, da cooperação internacional, e para estimular e promover o respeito às liberdades fundamentais. Tiveram início, assim, os trabalhos que desembocaram na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela resolução número 217 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 (TRINDADE, 2012, p. 175). A história da elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos revela a emergência de uma Nova Ordem Econômica e Política Mundial e, nesse contexto, o documento é uma das expressões não só daquilo que foi denominado como Guerra Fria, mas também da própria luta de classes.

A Declaração de 1948, segundo alguns autores, inovou ao definir uma nova concepção à gramática dos direitos humanos, marcada por duas características principais: a universalização e a indivisibilidade (PIOVESAN, 2005, p. 44). A primeira almeja sua extensão a todos os povos que compõem a humanidade, reconhecendo a condição de pessoa como requisito único para a titularidade dos direitos humanos. A segunda consiste em conjugar os direitos políticos e sociais num único catálogo, direitos políticos, sociais, econômicos e culturais; possibilitando seu reconhecimento num primado de ações que envolvem as três conotações, aliando os valores de liberdade e igualdade.

Nesse sentido, os direitos humanos passam a ser reconhecidos internacionalmente mediante a consignação de vários países e adoção de instrumentos para sua proteção. Desloca- se do contexto local norte-americano e europeu para o restante do mundo, conferindo-lhe

caráter universal a partir do reconhecimento do requisito único de ser pessoa para a titularidade de uma lista predefinida de direitos considerados essenciais ao valor da dignidade humana. Portanto, firma-se uma diretriz geral para os direitos humanos, a qual vai sendo mais detalhada à medida que vão sendo instituídos os tratados internacionais. Passa a existir um sistema de proteção internacional, integrado por acordos que refletem a consciência ética da contemporaneidade partilhada entre os Estados, que invocam o consenso acerca de temas centrais a respeito de valores fundamentais para a vida humana, fixando parâmetros protetivos mínimos. A Declaração de 1948 confere, deste modo, lastro axiológico aos direitos humanos.

O grau de consenso internacional pode ser percebido à proporção que os Estados vão aderindo cada vez mais aos tratados e acordos instituídos39. Cabe destacar também que, com a constituição do sistema global, sistemas regionais também surgem, notadamente na Europa, América e África. Assim, o sistema de proteção global da ONU simultaneamente convive com os sistemas regionais, procurando garantir ampla e integral efetividade aos direitos humanos através de instrumentos específicos de proteção.

Destarte, os sistemas regionais e global são complementares e não dicotômicos. Os valores e princípios da Declaração Universal os inspiram como referência, no sentido de compor aspecto instrumental aos direitos humanos no plano universal. Os diversos sistemas interagem entre si, buscando o benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar a primazia da pessoa humana esses sistemas complementam-se, somando-se ao sistema global a fim de proporcionar maior efetividade na tutela dos direitos humanos, que, quando internalizados em âmbito nacional, passam a ser chamados de direitos fundamentais.

Essa é a lógica que rege a tutela dos direitos humanos. Percebe-se que ela é estruturada à medida que reivindicações morais de cada época vão sendo efetivadas. Sendo assim, os direitos humanos não são um dado específico, mas um construído em constante evolução histórica, que se realiza através do exercício do direito à cidadania a partir de espaços de convivência coletiva, que confere ao indivíduo o direito de pertencer a uma comunidade política em igual condições de dignidade (LAFER, 1997, p. 58).

39 Até 2003 o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 149 Estados-partes; o Pacto

Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 146 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 132 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial contava com 167 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher contava com 170 Estados-partes; e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes (PIOVESAN, 2005, p. 45).