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O fato de ser irrelevante a existência extralinguística de sensações e de cores não implica, para Wittgenstein, que elas não façam parte da gramática dos jogos, ou que caiam fora de consideração. Se não podemos identificar objetos fora da linguagem, através de propriedades caracterís- ticas que lhes fossem imanentes, isso implica, simplesmente, que nada podemos dizer a seu respeito e descrevê-los, a não ser no interior da linguagem através de conceitos: vivemos no mundo das sensações, mas falamos através de conceitos (MORENO,1995, pg. 63).

As sensações de dor e de cor são apresentadas como modelos de aplicação de palavras, como dor ou verde, durante o ensino ostensivo mesmo sem que tais sensações correspondam exatamente àquilo que quem ensina sente e chama por tais nomes. Assim, pode-se dizer a uma criança que chora e contorce seu corpo que está com dores sem, no entanto, possuir critérios de verificação para a existência dessa dor que transcendam a constatação de que ela se comporta como alguém que sente dores. Ou seja, a criança considerará sua sensação privada como um modelo, um fragmento empírico, daquilo que podemos chamar dor.

2.3

Concepção de filosofia no segundo Wittgenstein

Para o segundo Wittgenstein, o papel da filosofia não é o de propor novas teorias explicativas ou descritivas do mundo, pois seus problemas decorrem do uso incorreto da linguagem e isso não demandaria soluções mas sim dissoluções. A filosofia seria, então, uma atividade, um método, no qual seriam reunidas lembranças daquilo que já conhecemos com a finalidade de que, uma vez que tenhamos lembrado, as confusões se dissipariam (MONK,1995). Em citação direta feita porMonk (1995):

O que descobrimos em filosofia é banal; não nos ensina fatos novos, somente a ciência faz isso. Mas um compêndio adequado dessas banali- dades é tremendamente difícil, e de imensa importância. A filosofia é, na realidade, o compêndio das banalidades (MONK,1995, pg. 272).

A diferença entre filosofia e ciência, apontada por Wittgenstein, reside no fato de que o objetivo da ciência era o progresso e, portanto, esta se apresentava como construtiva e, assim sendo, seu apreço pela clareza era devido a possibilidade de construção a partir da compreensão clara. Enquanto isso, sua proposta de filosofia consistia em valorizar a clareza em si mesma e, assim, evitar as confusões. Seu interesse era, em suas palavras, “ter uma visão perspícua dos alicerces de possíveis edifícios” enquanto o interesse dos cientistas era o de “construir um edifício.” (MONK, 1995). Essa visão perspícua da gramática dos usos das palavras somente se poderia mostrar e não descrever. Segundo Monk (1995):

As “relações internas” estabelecidas pela gramática não são suscetíveis de ulterior exame ou justificação; só podemos dar exemplos de onde as regras são usadas corretamente e onde não são, e dizer: “Olhe - você não vê a

regra?”. Por exemplo, a relação entre a partitura e a execução musical não pode ser aprendida causalmente (como se, misteriosamente, determinada partitura fosse a causa de interpretarmos a peça de certa maneira) nem as regras que unem as duas podem ser descritas de modo exaustivo - pois, dada certa interpretação, é possível fazer com que qualquer execução concorde com a partitura. No final, temos simplesmente que “ver a regra nas relações entre execução e partitura”. Se não conseguimos ver, nenhuma espécie de explicação a tornará compreensível; e se conseguimos, teremos chegado a um ponto em que as explicações são supérfluas - não precisaremos de nenhum tipo de explicação “fundamental” (MONK,1995, pg. 275).

Para mostrar as regras de uso das palavras, Wittgenstein enfatizou a capacidade de ver correlações entre os diferentes usos das palavras apresentados como exemplos. Seu método, muito provavelmente, foi inspirado em O declínio do Ocidente de Spengler e em A metamorfose das plantas de Goethe (MONK, 1995). Spengler tentou compreender a história buscando analogias entre diferentes épocas culturais e não por meio de uma série de leis assim como Goethe tentou compreender as plantas sem recorrer a um mecanismos causal como era o caso da Evolução de Darwin. Wittgenstein, por sua vez, tinha a intenção de apresentar a morfologia do uso de uma expressão. Em citação direta deMonk (1995):

Temos o hábito, sempre que percebemos semelhanças, de buscar uma origem comum para elas. O impulso de ir ao encalço desses fenômenos até sua origem no passado expressa em si mesmo certo estilo de pensar que, por assim dizer, reconhece apenas um único esquema para tais similaridades - a saber, a disposição de uma série no tempo. (E isso presumivelmente vinculado a uma singularidade dos esquemas causais.) Mas Goethe mostra que esta não é a única forma possível de concepção. Sua concepção de planta inicial não implica hipótese alguma referente ao desenvolvimento temporal do reino vegetal como a de Darwin. [...] É precisamente isso que estamos fazendo aqui. Estamos confrontando uma forma de linguagem com seu ambiente, ou transformando-a na imaginação a fim de obter uma visão panorâmica do espaço em que a estrutura da nossa linguagem se coloca (MONK, 1995, pg. 276).

O interesse de Wittgenstein pelo método morfológico reside no fato de que este não possui ânsia de generalidade, ou seja, não procura encontrar uma lei, um único esquema, segundo o qual se poderia explicar uma diversidade a partir de uma origem comum e determinados mecanismos de evolução mas, antes, apresenta de maneira panorâmica as diversas formas e suas correlações permitindo, inclusive, conjecturar sobre formas intermediárias àquelas que já se conhece.

Wittgenstein resumiu seu método filosófico dizendo que consiste no exato oposto do método de Sócrates. Segundo ele, Sócrates procurava a essência das coisas, como por exemplo do conhecimento, algo comum a todas as coisas subsumidas sob um termo genérico. No lugar de essência, Wittgenstein utilizava a ideia, mais flexível, de Semelhanças de família (MONK, 1995, 305). Nas palavras de Wittgenstein:

2.3. Concepção de filosofia no segundo Wittgenstein 41

Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogos”. Refiro-me a jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos etc. O que é comum a todos eles? Não diga: “Algo deve ser comum a eles, senão não chamariam ’jogos”’, - mas veja se algo é comum a eles todos. - Pois, se você os contempla, não verá na verdade algo que fosse comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles. Como disse: não pense, mas veja! - Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com seus múltiplos parentescos. Agora passe para os jogos de cartas: aqui você encontra muitas correspondências com aqueles da primeira classe, mas muitos traços comuns desaparecem e outros surgem. Se passarmos agora aos jogos de bola, muita coisa comum se conserva, mas muitas se perdem (WITTGENSTEIN,2000, § 66).

Para Wittgenstein, o conceito de jogos se refere a um conjunto de processos, ou práticas, simultaneamente aparentados entre si e diversos em algum grau. Seu esforço consiste em apresentar as características próprias deste conjunto sem tentar reduzi-lo a uma definição ou critério de classificação. No lugar, pretende ressaltar as semelhanças e diferenças entre o que normalmente denominamos “jogos” descrevendo, assim, a multiplicidade de nossa linguagem em vez de fazer uma teoria sobre ela. Segundo Wittgenstein:

Sentimo-nos por exemplo inclinados a pensar que deve existir algo de comum a todos os jogos, e que esta propriedade comum é a justificação para a aplicação do termo geral “jogo” aos diversos jogos; ao passo que os jogos formam uma família cujos membros tem semelhanças. Alguns tem o mesmo nariz, outros as mesmas sobrancelhas e outros ainda a mesma maneira de andar; e estas semelhanças sobrepõem-se (MONK,

1995, pg. 305).

Wittgenstein pretendia, com esta morfologia do uso de uma expressão, mostrar a diversidade de formas em que empregamos a linguagem, isso com a finalidade de abandonar a maneira confusa de examinar as coisas que, segundo ele, era resultado da “dieta pobre de exemplos” dos filósofos (MONK, 1995). Essa tal “dieta pobre de exemplos” seria praticada pelos filósofos que, influenciados pelo método científico e na ânsia por generalizações, permitiam-se considerar um pequeno conjunto de exemplos a partir do qual tiravam conclusões gerais, essências. Em citação direta de Monk (1995):

Os filósofos tem sempre presente o método da ciência e são irresistivel- mente tentados a levantar questões e a responderem-nas do mesmo modo que a ciência. Esta tendência é a verdadeira fonte de metafísica, e leva o filósofo a toda obscuridade (MONK,1995, pg. 306).

Diante de tudo o que dissemos até aqui, cabe uma breve consideração sobre o principal alvo do método do segundo Wittgenstein. Wittgenstein, em sua segunda fase, procurava realizar a terapia filosófica de sua concepção de linguagem anterior, a saber, a concepção referencial da linguagem expressa no Tractatus, a imagem agostiniana. Para dar conta de realizar a terapia filosófica desta concepção, o filósofo analisou as diferentes formas através das quais relacionamos a linguagem e os objetos do mundo, bem como as

diferentes formas que empregamos nossa linguagem. Os jogos de linguagem serviram bem a este propósito:

O estudo das aplicações “primitivas” da linguagem permite, como diz Wittgenstein, “dissipar a bruma” que envolve o conceito de significação ao mesmo tempo que “os claros e simples” jogos de linguagem - que são propostos enquanto “objetos de comparação” - permitem “lançar luz sobre as relações de nossa linguagem” [...] onde “pode-se ter uma visão de conjunto clara da finalidade e do funcionamento das palavras” (MORENO,1995, pg. 22).

O objetivo da terapia filosófica não está em aperfeiçoar nosso uso da linguagem para que melhor descreva o mundo, nem em falar sobre o mundo empírico e, tampouco, sobre princípios do conhecimento. Seu tema principal é a existência de certas imagens que, apresentando caráter de necessidade, nos impedem de conceber algo de maneira diferente e apresentam dificuldades ao pensamento. SegundoMoreno (1995):

Temos, então, duas características das imagens: correspondem, por um lado, às más interpretações de nossas expressões habituais conduzindo, assim, a dificuldades insolúveis; por outro lado, possuem a força da necessidade (MORENO,1995, pg. 37).

As más interpretações de nossas expressões habituais decorre, por exemplo, quando somos levados a definir um sentido inequívoco ao uso de nossas palavras, como é o caso da imagem agostiniana da linguagem que ao afirmar que para cada palavra há uma referência no mundo. Esta imagem da linguagem nos leva a problemas sem solução como, mencionado anteriormente, o de nos perguntarmos à que corresponde a palavra “amor”. Eis, segundo

Moreno(1995), o objeto da terapia filosófica:

A descrição gramatical não tematiza objetos do mundo, ou fatos, nem princípios do conhecimento; seu tema é a necessidade contida nas imagens: “não podemos pensar de outra maneira, pois deve ser assim”, é uma

situação conceitualmente típica em que as imagens mostram sua força (MORENO,1995, pg. 48).

Esta nova concepção de atividade filosófica apresenta algumas características cuja síntese podem ajudar a compreender o espírito da obra do segundo Wittgenstein assim como o espírito em que este trabalho foi desenvolvido. Em primeiro lugar, os diferentes exemplos de uso das palavras apresentados servem como objetos de comparação com a finalidade de salientar analogias e diferenças internas entre aplicações de palavras e conceitos. Em segundo lugar, a descrição gramatical visa ampliar o domínio da significação de determinadas palavras no lugar de restringi-lo através de regras prescritivas. Por último, revisita determinados usos da linguagem com a finalidade de esclarecer confusões mediante a tomada de consciência das nuances presentes nas regras de usos efetivos de nossa linguagem e desfazer os efeitos de visões dogmáticas dos conceitos (MORENO, 2005).