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Síntese do capítulo e consequências para este trabalho

Na medida em que tentamos sintetizar o conteúdo deste capítulo apresentamos, a seguir, alguns resultados apresentados por Wittgenstein, Moreno, Ryle e Passmore - em itálico - e, em seguida, um conjunto de consequências para o desenvolvimento deste trabalho.

I) A ligação entre linguagem e mundo não é direta, imediata, mas mediada por técnicas convencionais de ligação entre objetos do mundo e palavras (MORENO,1995): O sentido dos conceitos científicos no contexto escolar, como é o caso do conceito de energia, é estabelecido mediante as técnicas empregadas em seu ensino. Assim, sua gramática é constituída na medida em que outras palavras, objetos empíricos, fenômenos, etc forem associados à palavra energia.

II) O uso da linguagem em contextos diversos, por exemplo para descrever um fenômeno observado, só é possível a partir do estabelecimento de um conjunto de regras de aplicação das palavras constituído na etapa preparatória da linguagem (MORENO,

1995): A gramática do conceito de energia, resultado da atividade de ensino, é condição de possibilidade para seu uso em diferentes contextos e com diferentes finalidades. Por exemplo, a associação da palavra energia com objetos à certa altura na superfície terrestre e com corpos em movimento, juntamente com outras lições, possibilitará que os alunos compreendam e avaliem o funcionamento de uma usina hidroelétrica.

III) O sentido das palavras é seu uso efetivo no interior dos jogos de linguagem e, portanto, as palavras estão fortemente relacionadas com as práticas que, habitualmente, as acompanham (MORENO, 1995): O conceito de energia e o princípio de conservação da energia estão historicamente relacionados com os problemas enfrentados pela comunidade de

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engenheiros e cientistas interessados no aprimoramento de motores a vapor5 e, atualmente, com problemas enfrentados por cientistas e engenheiros nos mais diversos contextos.

IV) Os conceitos orientam a ação e possibilitam as experiências mas, também, têm suas gramáticas afetadas pelo uso e pela experiência (MORENO, 1995): Na medida em que se aplica a conservação da energia mecânica na resolução de problemas passa-se a ver o conceito de energia como uma quantidade que se conserva enquanto os fenômenos ocorrem. Além disso, se em uma atividade de laboratório nossas expectativas acerca de um fenômeno são confrontadas, pode ser que passemos a considerar novos aspectos do conceito de energia como, por exemplo, quando não verificamos a conservação da energia mecânica em experimentos onde ela é esperada, podemos investigar possíveis “perdas” de energia por atrito.

V) Podem surgir imagens relacionadas a conceitos na medida em que se faz uso da linguagem. As imagens são interpretações estranhas que fazemos de nossas expressões habituais. Os problemas filosóficos que surgem com as imagens devem-se, principalmente, à confusão entre proposições gramaticais e proposições empíricas (MORENO, 1995): Na medida em que repetidamente se afirma, por exemplo, que um corpo com velocidade “possui” energia, poderíamos levar os estudantes a pensarem que a energia fica armazenada de alguma maneira dentro dos corpos, ou seja, que a energia corresponda a um ente que se localiza em alguma parte de um corpo.

VI) A força sugestiva das imagens pode nos conduzir a concepções dogmáticas na medida em que adotamos, consciente ou inconscientemente, as interpretações à elas associadas como as verdadeiras interpretações recusando, assim, as demais interpretações e aplicações dos conceitos (MORENO, 1995): Em consequência do que foi dito no item anterior, caso fizéssemos um uso exclusivista de uma imagem do conceito de energia, expressa pela proposição apenas os corpos possuem energia seríamos incapazes de conceber que entes sem corpos (como por exemplo o fóton que tem massa nula), sem um onde para a energia ficar, possam estar associados ao conceito de energia. Essa imagem do conceito é fruto da aplicação da imagem agostiniana da linguagem onde para cada palavra deve haver um ente correspondente. No caso da energia, este ente estaria presente no interior dos corpos materiais.

VII) O objetivo da filosofia wittgensteiniana é livrar o pensamento das confusões causadas por imagens dogmaticamente aplicadas pelos filósofos através da exploração dos diversos usos de um conceito e permitindo, assim, que se vislumbre novas possibilidades de sentido e obtendo como resultado a relativização do sentido sugerido pelas imagens (MORENO,1995): No escopo deste trabalho, nos preocupamos com as visões dogmáticas

5 Certamente há registros de contribuições notáveis de cientistas de diferentes contextos como, por

exemplo, Julius Robert Mayer (1814-1878), que enunciou o princípio de conservação da energia a partir da observação das diferenças de tonalidade apresentadas pelo sangue de seus pacientes que habitavam regiões com diferentes características climáticas.

oriundas das imagens associadas ao conceito de energia na medida em que estas constituam obstáculos para a compreensão, avaliação e resolução de problemas e situações que os estudantes devem ser capazes de compreender, avaliar e resolver. A dissolução destas imagens dogmáticas do conceito de energia passa por mostrar que os diversos usos do conceito possuem semelhanças de família entre si, negando, assim, a possibilidade de se extrair uma definição essencial capaz de fazer justiça a todos os usos do conceito.

VIII) Ensinar uma disciplina aos estudantes inclui proporcionar condições para que os mesmos dominem um conjunto mínimo de regras de aplicação da linguagem em contextos específicos. O domínio da gramática dos conceitos ocorre na medida em que os estudantes são introduzidos nos jogos de linguagem próprios da disciplina em questão e,

portanto, na medida em que agem dentro de uma comunidade (RYLE,2010): Ensinar física aos estudantes inclui treinar os alunos no uso dos principais termos, equações, conceitos, princípios, procedimentos e critérios de avaliação da física. Este treinamento ocorrerá em um determinado contexto, dentro de uma determinada temática geral, com a finalidade de atingir determinados objetivos. Assim, um determinado conceito, como o de energia, terá sua gramática constituída através de diversas situações escolares da disciplina de física, de outras disciplinas escolares e também da maneira como empregamos o conceito de energia no cotidiano.

IX) O ensino pressupõe que os estudantes sejam capazes de, a partir da gramática dos conceitos aprendida, aplicarem conceitos e técnicas à situações diversas, situações semelhantes, mas nunca apresentadas antes pelo professor (RYLE,2010): Um critério para decidir se um estudante aprendeu o conceito de energia na educação básica poderia, por exemplo, ser a capacidade do estudante em fazer uso do conceito para a análise, avaliação e solução de situações e problemas suficientemente diversos entre si. Espera-se que, em alguma medida, o estudante avance para além das lições propostas pelo professor e obtenha sucesso na resolução de problemas físicos que envolvam diferentes arranjos de corpos e interações de diferentes naturezas.

X) A capacidade de pensamento crítico somente pode ser exercida por indivíduos iniciados em diversas tradições humanas, por indivíduos que dominem uma diversidade suficiente de gramáticas para que, a partir de diferentes pontos de partida, se possa avaliar a conveniência das diferentes convenções que, socialmente, aceitamos e seguimos (PASSMORE, 2010): Para que um estudante seja capaz de avaliar criticamente, por exemplo, as matrizes energéticas de cada uma das nações, a eficiência das diferentes máquinas comercializadas ou a conveniência de uma instalação doméstica de placas foto- voltaicas, os estudantes precisam dominar as gramáticas de diversas disciplinas como, para citar algumas delas, da física, da ecologia, da matemática, da economia e da política.

Uma das características do conceito de energia que argumenta em favor da im- portância de seu ensino é que se trata de um conceito capaz de articular os diferentes

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ramos da física entre si, os diferentes ramos das ciências e, ainda, os ramos das ciências com os setores econômicos, sociais e tecnológicos. Por isso, acreditamos que o conceito de energia seja fundamental para a avaliação e o pensamento crítico de questões emergentes na sociedade contemporânea como a crise energética, as disputas políticas pelo controle de combustíveis fósseis, a produção de máquinas mais eficientes e menos poluentes, etc.

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3 Reflexões sobre ciência, método e o con-

ceito de energia

Em face das consequências extraídas das concepções de linguagem e filosofia do segundo Wittgenstein, acreditamos que seja pertinente para este trabalho apresentar algumas características da ciência por ser, a ciência, uma tradição humana cujas práticas conferem sentido ao conceito de energia1.

Para isso, optamos por apresentar uma certa visão hegemônica de ciência em contraponto com algumas críticas formuladas, principalmente, por Kuhn e Feyerabend. Por fim, apresentamos um critério de demarcação da atividade científica proposto por Popper.

Ainda neste capítulo, apresentamos algumas características do conceito de energia na ciência e no ensino de ciências. Na ciência, exploramos a relação do conceito com a busca por processos de conversão de “poderes” de determinadas naturezas em outras e com a comunidade de engenheiros interessados por máquinas térmicas. No ensino de ciências, exploramos os problemas e insuficiências mais relatadas pelas pesquisas publicadas ao longo das últimas décadas.