• Nenhum resultado encontrado

A concepção de Habermas: o conceito de Direito e suas relações com a Moral e a Democracia.

A fim de delimitar o debate proposto, há que se referir, inicialmente, à teoria discursiva do direito de HABERMAS, a qual passa, necessariamente, pela relação existente entre Direito, Moral e Democracia no contexto da ética do discurso.

Conforme já exposto ao longo desta dissertação, para HABERMAS, é fundamental lembrar que, nas sociedades tradicionais, a Moral e a Ética formam a base do consenso integrador da sociedade, pelo que as questões éticas e morais vinculam-se a determinadas “concepções de vida boa”, havendo, para o autor, uma certa prevalência do bem em relação ao justo, conforme uma moral teleológica.

Já nas sociedades complexas, pode-se afirmar que há um vazio de uma normatividade substancial ética que ofereça um modelo de ação, pois não existe um consenso substantivo de valores384 a reger a conduta social. Ao contrário, há uma multiplicidade de possíveis condutas dos sujeitos na sociedade, havendo uma certa carência de normatividade. Coube justamente ao Direito a função de preencher esse vazio, conservando, contudo, um momento de indisponibilidade, assegurado, em um primeiro momento, na figura do Direito Natural Racional.

Segundo HABERMAS, o Direito Natural Racional assume as características de uma moral pós-convencional e passa a ser regido por uma racionalidade procedimental. Ocorre que, com o aumento da complexidade das sociedades modernas, que se tornaram cada vez mais plurais e multifacetadas, o Direito Natural Racional deixou de fornecer as bases normativas necessárias para a compreensão das relações sociais. Paralelamente a esse fenômeno de incremento da complexidade e da contingência das sociedades modernas, surge a idéia de Estado de Direito, em que a lei funciona como uma instância política soberana sem conteúdo moral.

Com isso, de acordo com a reconstrução histórica empreendida por HABERMAS, já não se torna mais possível creditar o aspecto da moralidade do Direito a

384 Cf. ARAÚJO, L. B. L. “Moral, direito e política: sobre a teoria do discurso de Habermas” In OLIVEIRA, Manfredo Araújo de.; AGUIAR, Odílio Alves; ANDRADE e SILVA SAHD, Luiz Felipe Netto. (org) Filosofia política contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 214-235.

uma instância normativa substantiva. HABERMAS, ao incorporar a idéia de Estado de Direito, pretende demonstrar que é mais adequado se referir a um outro tipo de instância normativa, em que a racionalidade procedimental assegura ao Direito positivo um momento de indisponibilidade para o sujeito. Para HABERMAS, é justamente esse critério de certa indisponibilidade o que diferencia o Direito da Política e da Moral, a despeito de ser inegável a complementaridade entre tais institutos de controle da vida social.

Posteriormente, com o crescente fenômeno da democratização, HABERMAS supõe que nenhuma visão única e totalizadora da realidade seja imposta de modo dogmático, partindo-se, então, do pressuposto do consenso e da convivência entre as diversas visões de mundo na sociedade, o que se reflete também no âmbito da normatividade do Direito.

Assim, da leitura da teoria discursiva de HABERMAS, sustenta-se que, para o referido autor, Direito, Moral e Democracia são concebidos como intimamente vinculados, sendo todos fundamentados, em última análise na razão. Entende-se, ademais, que a racionalidade e o consenso são apontados justamente como os pontos de apoio da convivência social, na medida em que, em uma sociedade pluralista, a configuração da vida individual e coletiva deve ser fundamentada de modo racional, a fim de possibilitar a própria coexistência entre as mais diversas pessoas.

O problema da convivência dos diferentes e da capacidade dos mecanismos de controle social há muito tem sido objeto de reflexão por parte dos mais diversos autores. MANFREDO ARAÚJO DE OLIVEIRA385, ao empreender sua reflexão sob o prisma da

385 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. “Moral, Direito e Democracia: o debate Apel versus Habermas no contexto de uma concepção procedimental da filosofia prática” In MOREIRA, Luiz (org.). Com Habermas, contra Habermas: direito, discurso e democracia. Trad. dos ensaios de Karl-Otto Apel de Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, pp. 145-176.

ética discursiva e da filosofia prática, aponta as seguintes perguntas essenciais: como fundamentar princípios normativos que configurem a vida comum em sociedades plurais e complexas de tal forma que sejam respeitadas as diferentes concepções de mundo nela existentes? Como refletir, em um mundo globalizado, sobre o Estado de Direito nacional que pressupõe uma forma de identidade capaz de legitimar a solidariedade entre os cidadãos num mundo multicultural? E como legitimar direitos humanos e implementá-los no âmbito mundial?386

Retoma-se, assim, o problema típico387 das sociedades modernas, apresentado por HABERMAS nos seguintes termos: “como estabilizar, na perspectiva dos próprios atores, a validade de uma ordem social, na qual as ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente distintas de interações estratégicas?”

HABERMAS aponta o Direito como reposta a essa indagação. Nesse contexto, na segunda fase de sua teoria discursiva, entende que a sociedade tem de ser integrada, em última instância, pelo agir comunicativo388, sendo o Direito o mediador da tensão entre facticidade e validade, a qual permeia a linguagem e a sociedade. Para o autor, no contexto de uma ética discursiva, os conflitos sociais devem ser resolvidos mediante argumentos consensuais no discurso, os quais se reproduzem no Direito.

JÜRGEN HABERMAS defende que, em sociedades pós-metafísicas, o Direito só pode ser expressão da liberdade se cumprir as exigências não metafísicas de legitimação, o que só é possível através da incorporação de um caráter pós-tradicional de

386 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. “Moral, Direito e Democracia: o debate Apel versus Habermas no contexto de uma concepção procedimental da filosofia prática” In MOREIRA, Luiz (org.). Com Habermas, contra Habermas: direito, discurso e democracia. Trad. dos ensaios de Karl-Otto Apel de Cláudio Molz. São Paulo: Landy, 2004, pp. 145-176, p. 147.

387 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 45.

388

justificação. A fim de alcançar tal forma de justificação, o autor alemão recorre ao princípio do discurso, o qual acreditar expressar as mencionadas exigências pós-convencionais de fundamentação tanto de normas jurídicas quanto morais.

Referido princípio, para HABERMAS, apresenta-se como um fundamento geral para as normas e ações sociais, pelo que se especifica tanto no âmbito moral quanto no jurídico, sendo neutro em face da Moral e do Direito, na medida em que se distingue de uma instância normativa substantiva, centrada em especificidades e valores particulares de cada sujeito.

No âmbito moral, o princípio do discurso se especifica no princípio da universalização, segundo o qual são válidas somente as normas que podem ser aceitas sem coação por todos os afetados, de modo universal. Assim, de acordo com a teoria discursiva habermasiana, a relação entre Direito e Moral é complexa, sendo caracterizada, em sua origem, por uma relação co-originalidade e, em seu procedimento, por uma relação de complementaridade recíproca. Esse duplo aspecto da relação entre normas morais e jurídicas (simultaneidade na origem e complementaridade procedimental), além de preservar a independência de cada uma dessas esferas, garante uma apontada “neutralidade normativa” imediata para o Direito, decorrente, para o autor, do próprio caráter de neutralidade do princípio do discurso.

Já na esfera jurídica, o princípio do discurso se manifesta no princípio democrático, assim enunciado por HABERMAS389:

“Somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros

389 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 145.

do direito, num processo jurídico de normatização

discursiva” (grifos nossos)

Da leitura do enunciado acima transcrito, resta evidente que HABERMAS entende que a validade e a legitimidade do Direito pressupõem a existência de consenso entre todos os sujeitos alcançados pelas normas jurídicas. Para o autor, tal consenso se manifesta e se materializa no processo de elaboração de normas no contexto democrático, a saber: no processo legislativo.

Observe-se que o processo legislativo deve refletir a interação do público e do privado, ou seja: da esfera política pública e da sociedade civil. Na sociedade civil, a percepção e as opiniões sociais projetam-se sobre a esfera pública e nela se condensam como opiniões que influenciam a formação da vontade política mediante procedimentos democráticos. Nesse contexto, HABERMAS entende o Estado de Direito como um processo de interpretação e realização do sistema de direitos de forma dinâmica, sempre sujeito à revisão390.

Assim, para o autor, o procedimento democrático deve fundamentar a legitimidade do Direito391, o qual, por sua vez, o Direito é definido como o intermediador da tensão entre faticidade e validade, sendo pautado pela racionalidade discursiva, na qual se assegure a todos os sujeitos da comunidade de comunicação posição de simetria e de igualdade de condições na formulação de normas que regulamentem a convivência social.

Dessa forma, de acordo com a teoria habermasiana, será possível garantir, pelo Direito – especificamente pela submissão dos sujeitos à vontade social que se expressa na lei formulada a partir do consenso - a convivência dos diferentes em sociedade, bem

390 GARCIA AMADO, Juan Antônio. La filosofia del derecho de Habermas y Luhmann. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 1997, p. 68.

391 HABERMAS Jürgen. Direito e Democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p.191.

como se evitar que os demais sistemas funcionais, particularmente a economia e o poder administrativo, apropriem-se dos mecanismos de direção política da comunidade, impondo prioritariamente um padrão de ação estratégica.

Nesse sentido, pode-se afirmar que o princípio do discurso jurídico guarda uma certa identidade com o princípio da democracia, fato esse que atesta a tese da vinculação intrínseca entre Direito e Democracia na obra de HABERMAS.

Em face do exposto, evidencia-se que a concepção discursiva de Direito de HABERMAS é marcada por duas afirmativas centrais expressas na sua obra “Direito e Democracia: entre facticidade e validade”: a) o Direito desempenha a função de resolução dos conflitos sociais mediante argumentos consensuais no discurso, sendo informado por um princípio discursivo moralmente neutro; b) o Direito vincula-se intimamente com a Democracia, tendo em vista a ligação entre o procedimento democrático e a realização do sistema de direitos, sendo certo que o princípio do discurso especifica-se no âmbito jurídico como o princípio democrático.

Essas duas afirmações são objeto de crítica de APEL, para quem essa postura de HABERMAS, por ele identificada como arquitetônica habermasiana de diferenciação do discurso, consistiria na própria dissolução da ética do discurso.

4.3. Duas considerações críticas formuladas por Karl Otto-Apel acerca