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CAPÍTULO II – DIGNIDADE HUMANA E JUSTIFICAÇÃO RACIONAL

2.3 Dificuldades teóricas na justificação racional da dignidade humana

2.3.3 A concepção intuicionista

A concepção intuicionista da dignidade humana consiste naquela que a considera como um princípio evidente em si mesmo e, por conseguinte, como algo que não necessita ser justificado, mas apenas intuído e afirmado387. Como dito no tópico 2.1 do presente capítulo, a questão de como o princípio da dignidade humana deve ser justificado em termos teóricos é deixada em aberto nos documentos normativos internacionais e nas Constituições nacionais. De acordo com Roberto Andorno, essa lacuna é uma opção perfeitamente compreensível dos legisladores políticos por uma abordagem mais pragmática, a fim de facilitar um acordo sobre a matéria, de tal modo que preferem deixar o significado do princípio da dignidade humana “para o entendimento intuitivo, condicionado amplamente por fatores culturais”.

Essa atitude é razoável, visto que, como declara o antigo dito de Roma, omnis

definitio in jure periculosa est. Os legisladores presumem que a degradação de

pessoas humanas pode ser reconhecida em situações concretas, ainda que o termo abstrato dignidade não possa ser definido com precisão, ou não possa ser definido

386 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: que é o iluminismo? In: ______. A paz perpétua e outros

opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 11-19, p. 16-17. Cf. também: ibidem, p. 19; PECES-BARBA, Gregório,

op. cit., p. 18.

387 Roger Wertheimer – seguido por Dan Egonsson – sustenta que maioria das pessoas compartilha a intuição de que as razões para agir fornecidas por um ato com efeitos (benéficos ou nocivos) para um ser humano têm uma relevância moral superior se comparadas com as razões para agir fornecidas por um ato com os mesmos efeitos, mas para um não humano. A maioria das pessoas admite intuitivamente essa dignidade inerente ou esse prestígio moral que o ser humano possui pelo simples fato de ser um ser humano. O primeiro autor chama essa intuição acerca do status moral do ser humano de “Crença Padrão” (Standard Belief); o segundo, de “Atitude Padrão” (Standard Attitude). Cf. WERTHEIMER, Roger. Philosophy on humanity. In: PERKINS, R. L. (Ed.). Abortion: pro and con. Cambridge, Massachusetts: Schenkman, 1974, p. 107-128, p. 107-108; EGONSOSON, Dan.

porque expressa uma qualidade básica dos seres humanos. Assim sendo, usualmente o melhor que se pode fazer com essa difícil noção é tentar abordá-la com a ajuda de comparações, analogias e exemplos, a partir de uma perspectiva intuitiva388.

Sem embargo, após defender essa perspectiva intuitiva, o citado autor não explica o que ela significa propriamente e, o que ainda é mais importante, quais são as implicações do seu uso no contexto do discurso jurídico. Para esclarecer essas questões, é preciso, antes, fazer uma breve observação sobre os níveis de reflexão ética.

A abordagem dos níveis de reflexão ética exige um prévio esclarecimento sobre o sentido de “ética”. A despeito da imprecisão linguística desta palavra – pois ela, por exemplo, como substantivo, pode designar uma disciplina (a ética é um dos ramos da filosofia), mas, ao mesmo tempo, como adjetivo, pode aludir à qualidade própria do “ético” (não se trata de um homem ético) –, tal como ocorre com “direito”389, pode-se afirmar que, enquanto substantivo que dá nome a uma disciplina particular, a ética é a “tematização do ethos”390. Na linguagem filosófica em geral, emprega-se o termo “ethos” para indicar “um conjunto de atitudes, de convicções, de crenças morais e de formas de conduta, seja de uma pessoa individual ou de um grupo social ou étnico etc.”391 (tradução nossa). Nesse sentido, o ethos é um fenômeno cultural (o fenômeno da moralidade) que diz respeito a determinados sistemas de valores, a certos códigos de normas ou a certas concepções acerca do que é moral e o que não é392. Não obstante, a constatação dessa pluralidade de sistemas, de códigos ou de concepções morais extraída à luz da experiência – tanto pela observação metodológica quanto pela observação espontânea realizável por qualquer pessoa –, segundo Ricardo Maliandi, pode conduzir a dois caminhos: ao relativismo ético393 ou à reflexão ética racional, a qual nada mais é do que a

388 ANDORNO, Roberto. A noção paradoxal de dignidade humana. Tradução de Bruno Cunha Weyne. Revista

Bioética, Brasília, Conselho Federal de Medicina v. 17, n. 3, p. 435-449, 2009, p. 438-439.

389 Cf. FERRAZ JÚNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 37-38.

390 MALIANDI, Ricardo. Ética: conceptos y problemas. 4. ed. Buenos Aires: Biblos, 2009, p. 17.

391 MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 20. No original: “un conjunto de actitudes, convicciones, creencias morales

y formas de conducta, sea de una persona individual o de un grupo social, o étnico, etc.”.

392 MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 22-23.

393 Conforme Rachels, a constatação de que culturas diferentes possuem códigos morais diferentes levou muitos pensadores a considerá-la como a chave para o entendimento da moral. Para eles, a idéia de verdades universais na ética é um mito. Nessa perspectiva relativista, os costumes de diferentes sociedades são tudo o que existe. Portanto, não é possível dizer desses costumes que eles são ou não são corretos, “pois isso implica que temos um critério independente de correção e incorreção com o qual podem ser julgados. Mas não existe tal critério independente; cada critério está ligado a uma cultura393” (tradução nossa). RACHELS, James. Introducción a la

filosofía moral. Traducción de Gustavo Ortiz Millán. México: Fondo de Cultura Económica, 2007, p. 41. No

original: “pues esto implica que nosotros tenemos un criterio independiente de corrección o incorrección con el

que pueden ser juzgadas. Pero no hay tal criterio independiente; cada criterio está ligado a una cultura. A

respeito do relativismo ético e do ceticismo ético – uma posição ainda mais radical do que a primeira –, cf. ibidem, p. 38-61, cap. II; MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 105 et seq., NINO, Carlos Santiago. Ética y derechos

aplicação da razão à apreciação de problemas normativos, isto é, a tematização do ethos. Esta tematização, que é propriamente a ética filosófica – ou a filosofia moral –, é um modo de reflexão que aponta para dois níveis cuja tarefa é fundamentar e esclarecer o ethos394.

É possível falar, consoante o autor citado, de um ethos pré-reflexivo e de um ethos reflexivo. O primeiro consiste na normatividade pura, onde a conduta simplesmente se ajusta a determinadas normas morais, não havendo ainda questionamentos ou julgamentos sobre tais normas. Esse ethos pré-reflexivo, é claro, só corresponde a uma parcela mínima do complexo conglomerado do ethos, visto que sempre podem surgir dúvidas ou a necessidade de reforçar os próprios juízos morais395. Por isso, parece inevitável a passagem de um nível pré-reflexivo para um primeiro nível reflexivo, que já começa a julgar o valor moral das ações particulares.

Convém perceber que, para um indivíduo agir moralmente, ele não necessita de conhecimentos de ética filosófica, pois a moral não se reserva aos especialistas que realizam a sua tematização. Logo, qualquer ser humano pode agir conforme determinadas normas morais e, num nível reflexivo elementar e espontâneo, julgar as suas ações ou as de outrem de acordo o seu ajustamento com essas normas. Esse primeiro nível de um ethos reflexivo consiste no fenômeno moral básico do qual todo ser racional participa, necessariamente, e é o ponto de partida para qualquer reflexão sobre questões morais. Trata-se de um saber reflexivo, mas pré- filosófico – logo, não tematizado –, que pode chamar-se de reflexão moral396. Aqui, busca-se responder a perguntas do tipo “devo fazer X?” 397.

394 Cf. MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 23-25. Tematização ou converter algo no “tema” sobre o qual versa a ética, para tal autor, pode fazer-se mediante (1) explicitações – é a tarefa de elaboração sistemática de um saber pré-teórico sobre o ethos –, (2) problematizações – equivale a assumir as dificuldades de compreensão dos elementos do ethos e das relações entre eles –; (3) investigações – consiste numa maneira de entrar em diálogo com os demais pensadores, que, por sua vez, elaboram os seus pensamentos através de investigações –; (4)

teorizações – trata-se da elaboração de respostas teóricas (apoiadas na investigação) aos problemas descobertos

ou enfrentados –; (5) sistematizações – é um momento instrumental, que envolve problemas de cunho lógico e metodológico, e significa operar de forma ordenada ou sistemática em cada um dos passos da tematização –; (6)

meditações – aqui se produzem as novas ideias, ou seja, há um peculiar afastamento de tudo o que foi lido, uma

tentativa de isolar o pensar propriamente dito de outros trabalhos que costumam vincular-se ao pensar (a leitura, o estudo, a investigação etc.) –; (7) discussões – é onde a tematização do ethos alcança suas formas culminantes, uma vez que é através da discussão mediante argumentos (“diálogo” ou “discurso”) que o conhecimento avança, mediante a contraposição de uma afirmação e a sua crítica, que obriga uma nova afirmação etc. Ibidem, p. 25-28. 395 MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 47.

396 A distinção entre os níveis de reflexão ética foi elaborada no século XX, particularmente pela ética analítica, embora esta não tenha percebido a diferença entre a mera “reflexão moral” e a “ética normativa”. Os analíticos contemporâneos costumam referir-se só a três níveis, neles incluindo a ética descritiva e excluindo a reflexão moral. Isso é grave porque os analíticos atribuem à metaética a função fundamentadora de normas, retirando todo o caráter filosófico da ética normativa. Isso resulta de um preconceito positivista (herdado pelos analíticos), segundo o qual só as “ciências positivas” possuem um caráter rigoroso e científico e que todo o “normativo” é uma questão subjetiva. Todavia, Ricardo Maliandi sustenta – com o que se concorda – que a ética normativa não é subjetiva, mas sim uma ciência, em sentido amplo, já que, operando sistematicamente e com uma metodologia adequada, pode conduzir a um conhecimento autêntico. Cf. MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 50 et seq.

397 Cf. MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 47-53. A atitude de pedir ou de dar conselhos é um exemplo desse primeiro nível de reflexão, já que não se sabe como ou qual norma aplicar a determinada situação concreta.

Um segundo nível de um ethos reflexivo constitui-se quando alguém, não mais se satisfazendo em saber apenas o que deve fazer, levanta a pergunta “por que devo fazer X?” e busca respondê-la. Nessa ocasião, constata-se que a mera reflexão moral é insuficiente por si só, ou seja, “toma-se consciência de que a reflexão não só é ineludível, mas também de que se deve desenvolvê-la racional e sistematicamente”398 (tradução nossa). Tal desenvolvimento já equivale a uma tematização do ethos e compõe um dos dois domínios da ética filosófica. Esse nível, chamado de ética normativa, lida, de maneira deliberada e consciente, com a questão da validade dos princípios morais, ou, dito de outra maneira, com o problema da fundamentação

e da crítica das normas e das valorações morais. Ele consiste numa tarefa de cunho filosófico

que reivindica respostas universalmente válidas399. É justamente esse nível em que a presente investigação se situa, haja vista que pretende tratar da justificação racional do princípio ético- jurídico da dignidade humana a partir da filosofia kantiana.

Um terceiro nível de reflexão ética é a metaética, a qual consiste numa análise do significado e do uso dos termos morais. Tal reflexão acerca da “semiose” do ethos não pode expressar-se numa linguagem normativa e valorativa – como ocorre na ética normativa –, mas apenas numa “metalinguagem” referente à linguagem normativa e valorativa. A pergunta que se levanta aqui é a seguinte: “está bem formulada a pergunta sobre por que devo fazer X?” ou ainda “quais características têm ou quais funções cumprem as expressões normativas do tipo ‘devo fazer X’ ou do tipo (moralmente) ‘bom’ e ‘justo’?”. Assim, enquanto a ética normativa dedica-se à fundamentação das normas morais ou a questionar fundamentações, estabelecendo critérios para julgar a moralidade das ações, a metaética ocupa-se da elucidação do sentido e do uso dos termos próprios da linguagem moral, estabelecendo critérios para julgar a validade dos enunciados ético-normativos400. Nesse sentido, a metaética também é uma tematização do

ethos e compõe o outro domínio da ética filosófica.

O quarto e último nível de reflexão ética consiste em observar o fenômeno moral a partir da posição mais distante possível, a fim de descrever o fenômeno do ethos em toda a sua complexidade, isto é, a “facticidade normativa”; importa descrever a sua estrutura, o seu funcionamento, as suas causas enquanto fenômeno geral e as causas da sua individuação ou do seu desmembramento numa diversidade de códigos morais. Essa ética descritica é o nível de reflexão ética tipicamente “exógena”, uma vez que nela não nos vemos olhar: “Ainda que isso que vejamos seja algo do qual, de alguma maneira, participamos, não participamos nisso

398 MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 47. No original: “se toma consciencia de que la reflexión no sólo es

ineludible, sino también de que hay que desarrollarla racional y sistemáticamente”.

399 Cf. MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 54-57. 400 Cf. MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 57-59

mediante esse ato de observação. É como se contemplássemos uma fotografia ou víssemos um filme do cinema. [...] Simplesmente observamos e descrevemos o que vemos”401 (tradução nossa). Valendo-se desses métodos – que se podem chamar de ethoscopia e de ethografia –, a reflexão ético-descritiva não é filosófica, mas sim científica; ela é comum na antropologia, na sociologia e na psicologia. Aliás, por se interessar pela análise da moral positiva (vigente), ela não se trata de uma tematização do ethos nem compõe a ética filosófica.

Apesar de se ter apresentado tais níveis separadamente, eles não raro se encontram e se comunicam, visto que as suas fronteiras são bastante difusas. Isso fica mais evidente com relação à ética normativa e à metaética, porquanto ambas abordam, cada uma ao seu modo, o mesmo problema: a validade de proposições normativas. Daí que, mesmo neste trabalho cujo enfoque é eminentemente ético-normativo, pode ser útil fazer uma incursão por alguma teoria metaética que possa interessar à justificação do princípio da dignidade humana, como é o caso do intuicionismo. Este, por sua vez, enquadra-se na perspectiva metaética “cognoscivista” ou “descritivista”, segundo a qual os termos morais expressam algum tipo de conhecimento ou constituem enunciados descritivos de algum tipo de fato.

A ética intuicionista – ou intuicionismo ético – tem uma longa tradição histórica e, embora seja hoje uma teoria desacreditada, desfrutou de certo prestígio nas primeiras décadas do século XX, quando foi defendida por filósofos como William David Ross, Harold Arthur Prichard e George Edward Moore402. O intuicionismo surge como uma forma de crítica a uma abordagem da ética denominada, por Moore, de naturalismo. Para ele, o naturalismo consiste na substituição de expressões normativas ou valorativas, como, por exemplo, “bom” e “justo”, por expressões descritivas ou empíricas – isto é, por alguma propriedade de um objeto natural ou de uma coleção de objetos naturais403. Assim, cada enunciado normativo equivaleria a um enunciado descritivo, o que poderia ser demonstrado por métodos das ciências naturais ou das ciências sociais de caráter empírico. A tarefa da ética seria, simplesmente, a de encontrar a expressão descritiva equivalente à expressão normativa em questão.

Contra o naturalismo, Moore sustenta que os termos éticos são indefiníveis, visto que não é possível representar o seu significado mediante termos não éticos. Toda tentativa de definir termos éticos está fadada a cair naquilo que ele denominou de “falácia naturalística”.

401 MALIANDI, Ricardo, op. cit., p. 60. No original: “Aunque eso que vemos sea algo de lo cual, de alguna

manera, participamos, no participamos en ello mediante ese acto de observación. Es más bien como si contempláramos una fotografía o viéramos una película de cine. […] Simplemente, observamos, y describimos lo que vemos”. Cf. ibidem, p. 59-61. Uma análise pormenorizada do que foi dito acima se encontra nessa mesma

obra, especialmente nos capítulos I e III.

402 Acerca do intuicionismo ético, cf. FARRELL, Martín Diego. Métodos de la ética. Buenos Aires: Abeledo- Perrot, 1994, p. 87-179.

Para fundamentar esta acusação, tal autor se vale, principalmente, do “argumento da questão em aberto” (open question argument), segundo o qual toda vez que se define “bom” mediante uma propriedade empírica, como, por exemplo, quando se diz que “bom é aquilo que produz prazer”, pode-se ainda perguntar: “X produz prazer, mas X também é bom?”. Esta questão permanece em aberto, porque sempre será plausível perguntar se aquilo que produz prazer é, realmente, bom. Se a teoria naturalista estivesse correta e “bom” fosse idêntico a “aquilo que produz prazer”, também seria lícito perguntar: “X produz prazer, mas X produz prazer?”. Mas não é esse o caso, já que só a primeira questão tem sentido. Dessa maneira, conclui-se que o significado de “bom” sempre pode não ser “aquilo que produz prazer”, o mesmo ocorrendo com qualquer outra propriedade empírica, pelo que a tese naturalista não pode ser considerada válida: “qualquer que seja a definição oferecida, sempre se pode perguntar, com cabimento, sobre o complexo assim definido se ele próprio é bom”404 (tradução nossa),

Para Moore, os termos éticos, assim como o termo “amarelo”, expressam noções simples, que não podem ser decompostas em outras, de tal modo que não se pode explicar o que é amarelo e o que é bom a não ser para quem já conhece o significado de amarelo e de bom. Para um termo ser definível, ele deve representar algo complexo, isto é, algo que possa ser decomposto em outras propriedades mais simples405. Mas além de serem noções simples, os termos éticos são noções não naturais. Isso significa dizer que tais termos, ao contrário de outras noções simples como “amarelo”, não podem ser apreendidos mediante as impressões dos sentidos, mas somente mediante meras intuições intelectuais406. Conforme Moore, é um fato inegável que as pessoas formulam juízos imediatos segundo os quais determinadas ações são obrigatórias ou erradas, de tal modo que, com frequência, as pessoas estão intuitivamente certas do seu dever moral num sentido psicológico407. Mas esses juízos não são autoevidentes e, portanto, não podem ser adotados como premissas éticas, visto que podem ser confirmados ou refutados mediante um exame das suas causas e dos seus efeitos:

É, de fato, possível que algumas das nossas intuições imediatas sejam verdadeiras; porém, uma vez que aquilo que intuímos, aquilo que a consciência nos diz, é que certas ações sempre produzirão o maior bem possível diante das circunstâncias, é

404 MOORE, George Edward, op. cit., p. 67. No original: “whatever definition may be offered, it may always, be

asked, with significance, of the complex so defined, whether it is itself good”.

405 MOORE, George Edward, op. cit., p. 59.

406 Como se pode notar, essas intuições têm um sentido bem diferente das intuições na filosofia de Kant, pois não são um produto da sensibilidade nem podem informar nada acerca do modo de conhecer do sujeito. Elas apenas permitem a formulação de juízos imediatos que informam se uma ação é correta ou incorreta.

evidente que podem ser dadas razões para mostrar se os veredictos da consciência são verdadeiros ou falsos408 (tradução nossa).

Embora Moore aceite apenas o aspecto psicológico do intuicionismo, rejeitando o seu aspecto ético, importa perceber que ele promove a tese básica de toda a ética intuicionista, segundo a qual as expressões normativas não podem ser definidas por expressões descritivas, porque aquelas expressam propriedades ou relações não empíricas; desse modo, uma vez que os princípios morais não são entidades empíricas – portanto, não são cognoscíveis através dos cinco sentidos –, eles poderiam ser conhecidos apenas por meio de uma faculdade intelectual, semelhante a um “sexto sentido” ou a uma capacidade de conhecimento a priori de verdades evidentes. Essa faculdade intelectual é a intuição. Nessa perspectiva, Prichard e Ross, os dois teóricos contemporâneos mais importantes do intuicionismo ético, sustentam que as verdades morais são captadas através da intuição, de forma imediata, por apreensão direta, de um modo muito parecido com o que operam as intuições matemáticas, não havendo nenhum lugar para a argumentação – ou para a justificação – nesse processo409.

Segundo Martin Farrell, as intuições caracterizam-se, em primeiro lugar, pelo seu

imediatismo, visto que não há inferências, reflexões ou pensamentos que estejam envolvidos

na intuição das verdades morais, as quais são percebidas de modo instantâneo, espontâneo e automático. Em segundo lugar, elas são rotineiras, uma vez que não são revelações súbitas ou descobertas impactantes, mas sim apreensões simples e comuns de que uma ação é correta ou não. Em terceiro lugar, elas são imperativas, porque constituem premissas de um raciocínio prático, conduzindo a ação. Em quarto lugar, são presumíveis – pelo menos na teoria de Ross