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CAPÍTULO III – O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA EM KANT

3.1 Introdução à ética kantiana

No tópico 2.2 do capítulo anterior, demonstrou-se que a pura forma das intuições sensíveis e as categorias do entendimento são condições a priori da possibilidade de todo o conhecimento dos objetos da experiência, de tal modo que, para além desses objetos – ou seja, relativamente à coisa em si ou ao incondicionado –, nada se pode conhecer pela razão teórica. Esta, não obstante, como foi visto no tópico 2.3.1 do capítulo anterior, consegue salvaguardar o incondicionado, isto é, a possibilidade e, inclusive, a necessidade de pensá-lo e de isentar de

418 STF, ADI 3.510. Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 29-05-2008, Tribunal Pleno, DJe de 28-05-2010. 419 Isso não significa, como se verá abaixo, que a concepção kantiana está isenta de críticas. Rebatê-las, contudo, é uma tarefa com a qual o presente trabalho, considerando os seus limites, não se preocupará diretamente. 420 Convém aqui sublinhar que, para a compreensão das obras morais de Kant – que serão estudadas nesta e nas seguintes partes do presente trabalho –, são importantes os pressupostos delineados na Crítica da Razão Pura, entre os quais se destacam as distinções entre a priori (puro) e a posteriori (empírico), entre analítico e sintético, entre fenômenos e coisas em si e entre causalidade segundo as leis da natureza e causalidade pela liberdade, isso sem falar que é na primeira crítica onde Kant abre caminho para sua ética. Cf. tópicos 2.2 e 2.3.1, do capítulo II.

todas as objeções, por exemplo, a suposição de que o conceito de liberdade, em seu sentido transcendental, é compatível com os princípios e com os limites da razão pura teórica, mesmo que esta nada possa conhecer sobre objetos desse tipo.

Nesse horizonte, é preciso lembrar que a Crítica da Razão Pura não só demonstra que o uso teórico da razão pura não pode ultrapassar os limites da sensibilidade, mas também anula um obstáculo ao uso prático absolutamente necessário da razão, no qual esta se estende para além daqueles limites para estabelecer os fundamentos do agir, não carecendo da ajuda da razão pura teórica para tanto. Aliás, com relação a isso, Kant deixa claro “que a finalidade precípua da razão é a ordem moral, razão por que toda a esfera do conhecer nada mais é do que preparação para a esfera prática”421. Desse modo, como explica Salgado, a razão tem dois momentos que determinam caminhos diversos na filosofia kantiana: a razão teórica, que diz respeito ao que a tradição filosófica denominou de intelecto, “tem por finalidade conhecer e seu objeto é a lei da natureza expressa em relações necessárias de causa e efeito”422; e a razão

prática, também denominada de vontade, “como razão que age, e que doa finalidade a si e às

coisas”423, determina a priori e absolutamente o agir ou, em outras palavras, determina o que deve acontecer, expressando-se numa relação de obrigatoriedade, e tem como objeto a lei da liberdade (a lei moral).

Pois bem, é no âmbito da razão prática em que a razão pura, quanto ao conceito de liberdade, deixa de desempenhar uma atividade apenas reguladora do mundo sensível (mundo da natureza) e passa a exercer uma atividade constitutiva de conteúdo de um mundo inteligível (mundo da liberdade). Isso porque, enquanto na razão teórica o conceito de liberdade só pode ser concebido problematicamente como um princípio regulador e, pois, meramente negativo, na medida em que ele não constitui nenhum objeto de um conhecimento teórico possível para o ser humano – logo, na medida em que a sua realidade objetiva não pode ser provada –, o uso prático da razão, como se verá, consegue provar a realidade objetiva desse conceito mediante princípios práticos a priori que, “como leis, demonstram uma causalidade da razão pura para determinar o arbítrio com independência de todos os condicionamentos empíricos (do sensível em geral) e que comprovam em nós uma vontade pura na qual os conceitos e leis morais têm

421 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995, p. 156. Nesse sentido, cf. também: KANT, Immanuel. Crítica da razão

pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste

Gulbenkian, 2001, p. 25, 312, 318, 641, 647 e passim; OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993, p. 131, nota de rodapé nº 5; DEKENS, Olivier, Compreender Kant. Tradução de Paula Silva. São Paulo: Loyola, 2008, p. 20-23; HERRERO, Francisco Javier. Religião e história em Kant. Tradução de José A. Ceschia. São Paulo: Loyola, 1991, p. 9.

422 SALGADO, Joaquim Carlos, op. cit., p. 169. 423 SALGADO, Joaquim Carlos, op. cit., p. 169.

a sua origem”424. É também nesse âmbito da razão prática onde Kant desenvolverá a sua ética, podendo-se dizer que, diante da constatação da pluralidade do ethos – o fenômeno cultural da moralidade – em vez de trilhar o caminho do relativismo, tal autor opta pela via da reflexão ética racional, tendo como preocupação principal a fundamentação e a crítica do ethos, a fim de alcançar um grau plausível de racionalidade ou de “cientificidade” na ética, ou seja, “uma objetividade traduzida na necessidade e na universalidade dos seus princípios”425.

Antes de abordar as características da ética kantiana, porém, importa esclarecer os dois sentidos que Kant atribui ao termo “ética” e a distinção entre Direito e moral. Em sentido amplo, a ética, por influência da filosofia antiga, é a ciência da lei da liberdade (doutrina da liberdade) ou doutrina dos costumes – ou, ainda, doutrina dos deveres. Aqui, a ética, quanto aos seus objetos e às leis a que estão submetidos, distingue-se propriamente da física, que é a ciência da lei da natureza ou doutrina da natureza. Mais tarde, na Alemanha, a ética passa a ser empregada num sentido estrito, referindo-se “só a uma parte da doutrina dos costumes, a saber, à doutrina dos deveres que não estão submetidos às leis externas”426, isto é, à doutrina da virtude. Portanto, a ética (em sentido amplo), a partir de então, “divide-se no sistema da doutrina do Direito (ius), que trata de leis externas, e no sistema da doutrina da virtude (ethica [em sentido estrito]), que não diz respeito a tais leis”427. De todo modo, Kant utiliza a palavra “ética” nos dois sentidos, daí ser importante compreendê-los adequadamente desde já.

A distinção entre Direito e moral ou ética (em sentido estrito), por sua vez, é feita a partir de dois critérios que remetem à forma da obrigação e ao caráter interno ou externo

da liberdade428. Em relação ao primeiro, o que verdadeiramente interessa é o móbil – ou seja, o incentivo ou o estímulo – determinante da ação, de tal maneira que “a legislação que faz de

424 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 30.

425 SALGADO, Joaquim Carlos, op. cit., p. 152. Convém ressaltar que, no campo das denominadas ciências da natureza, essa racionalidade – ou “cientificidade” – apresenta-se sob a forma da verdade das suas proposições; já no âmbito prático, no qual se situam a moral e o Direito, ela é demonstrada pela validade das suas proposições. 426 KANT, Immanuel, op. cit., p. 281.

427 KANT, Immanuel, op. cit., p. 282.

428 Além desses critérios, Norberto Bobbio sustenta que é possível vislumbrar outros dois, porém implícitos – no sentido de que Kant forneceu as suas premissas sem as desenvolver –, que concernem ao caráter autônomo ou

heterônomo da vontade e ao caráter categórico ou hipotético dos seus imperativos. Sobre o primeiro, ele afirma

que, enquanto a “vontade moral” é autônoma – visto que é lei para si mesma –, a “vontade jurídica” heterônoma, uma vez que não é lei para si mesma, podendo determinar-se por impulsos diversos do respeito à lei. Quanto ao segundo, ele o esclarece a partir do critério anterior: “Se uma vontade é determinada por um objeto externo e, portanto é heterônoma, é sinal que o imperativo não prescreveu uma ação boa por si mesma, mas uma ação cujo cumprimento depende da vontade de alcançar o objetivo externo do próprio desejo” e, portanto, só pode ser hipotético. “Se a vontade é autônoma, isso é sinal de que o imperativo é categórico, ou seja prescreveu uma ação boa por si mesma”. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant. Tradução de Alfredo Fait. 3. ed. Brasília: UnB, 1995, p. 62-66.

uma ação um dever e simultaneamente desse dever um móbil é ética [em sentido estrito]”429 e equivale à moralidade, ao passo que a legislação “que admite um móbil diferente da ideia do próprio dever é jurídica”430 e equivale à legalidade. Em outras palavras, se a determinação da vontade acontece de acordo com a lei moral, mas também unicamente pelo puro respeito pela

lei, a ação conterá moralidade; no entanto, se a vontade determina-se de acordo com essa lei,

mas unicamente mediante um sentimento distinto do puro respeito pela lei – portanto, distinto da ideia de dever –, a ação só conterá a legalidade431. Para esclarecer a distinção entre as duas formas de obrigação, Kant usa constantemente os atributos interno e externo, ora referidos à

ação, ora ao dever, ora à legislação. Bobbio interpreta esses atributos no seguinte sentido.

A ação legal é externa pelo fato de que a legislação jurídica, dita portanto legislação externa, deseja unicamente uma adesão exterior às suas próprias leis, ou seja uma adesão que vale independentemente da pureza da intenção com a qual a ação é cumprida, enquanto a legislação moral, que é dita, portanto, interna, deseja uma adesão íntima às suas próprias leis, uma adesão dada com intenção pura, ou seja com a convicção da bondade daquela lei. Disso se segue que o dever jurídico pode ser dito externo, porque legalmente eu sou obrigado somente a conformar a ação, e não também a intenção com a qual cumpro a ação, segundo a lei; enquanto o dever moral é dito interno porque moralmente eu sou obrigado não somente a conformar a ação, mas também a agir com pureza de intenção. [...] A legislação jurídica não pede ao cidadão que mantenha as promessas por respeito ao dever; pede-lhe manter as promessas, e nada mais, e o ato é aceito como juridicamente perfeito ainda que o motivo pelo qual foi cumprido tenha sido meramente utilitário, como o interesse de não ser, por sua vez, decepcionado, nas próprias expectativas, por uma promessa descumprida, ou pelo medo da sanção, etc432.

Quanto ao segundo critério, Bobbio adverte que, embora Kant também empregue os atributos interno e externo, desta vez eles não se reportam à ação, ao dever ou à legislação, mas sim à palavra liberdade, o que constitui outro critério de distinção entre Direito e moral: “Por ‘liberdade moral’ deve ser entendida [...] a faculdade de adequação às leis que a nossa razão dá a nós mesmos; por ‘liberdade jurídica’, a faculdade de agir no mundo externo, não sendo impedidos pela liberdade igual dos demais seres humanos, livres como eu, interna e externamente”433. Isso significa dizer que a liberdade do âmbito da moralidade é a liberação dos impedimento que provêm da vontade de cada indivíduo – apetites e inclinações –, quer

429 KANT, Immanuel, op. cit., p. 27. 430 KANT, Immanuel, op. cit., p. 27.

431 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2001, p. 87. No que tange à legalidade – cuja ação se dá conforme a lei, mas não pelo puro respeito a ela – “vemos facilmente que estes móbiles, distintos da ideia do dever, têm que extrair-se dos fundamentos patológicos da determinação do arbítrio, das inclinações e das aversões, e, de entre estas, das últimas, porque tem que ser uma legislação que seja compulsiva e não um engodo convidativo”. Idem. A metafísica dos costumes. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 27.

432 BOBBIO, Norberto, op. cit., p. 56-57. 433 BOBBIO, Norberto, op. cit., p. 58.

dizer, é o esforço de adequação à lei com a eliminação desses obstáculos interiores (liberdade interna); já a liberdade do âmbito da legalidade é a liberação dos impedimentos que provêm dos outros, quer dizer, trata-se do esforço para alcançar uma esfera de liberdade na qual seja possível para cada indivíduo agir segundo o seu arbítrio sem ser perturbado pela ação dos outros (liberdade externa)434. Diferentemente da moral, na qual apenas uma vontade particular é legisladora, o Direito importa-se com a relação entre os arbítrios, isto é, com “uma vontade comum de dois sob uma lei universal ou vontade da comunidade, que legisla”435. Ao abordar a questão “O que é o Direito?”, Kant sustenta que este diz respeito apenas a uma relação que, em primeiro lugar, é externa e prática de uma pessoa com outra; que, em segundo lugar, é pura e simplesmente entre arbítrios; e na qual, em terceiro lugar, não se atende à matéria dos arbítrios, mas apenas à forma436. A partir desses elementos, Kant conceitua o Direito como “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de cada um pode conciliar-se com o arbítrio de outrem segundo uma lei universal da liberdade”437. Essa lei ou princípio, por sua vez, ordena: “age exteriormente de tal modo que o uso livre do teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal”438.

Feitas essas observações, pode-se compreender que somente ao Direito pode estar associada uma faculdade de coerção externa (daquele que lhe causa prejuízo), que funciona como um meio para garantir o seu cumprimento, ou seja, como impedimento a um obstáculo à coexistência das liberdades externas e à compatibilização dos arbítrios; e também que, embora o Direito se fundamente na consciência da obrigação de cada um segundo a lei universal da liberdade (externa), não é lícito nem se pode exigir que tal consciência seja, ao mesmo tempo, o móbil determinante da vontade, “porque cada um pode ser livre [externamente] ainda que a sua liberdade me resulte totalmente indiferente ou deseje de bom grado no coração prejudicá- la, contanto que a não prejudique com a minha ação exterior”439. É suficiente, para o Direito, apoiar-se no princípio da possibilidade de uma coerção exterior que pode coexistir com a liberdade de cada um segundo aquela lei. Nesse sentido, como interpreta Habermas, o Direito remove a “sobrecarga motivacional” da moral, na medida em que a conduta por ele exigida independe da intenção que determina a vontade do agente, satisfazendo-se perfeitamente com

434 BOBBIO, Norberto, op. cit., p. 59.

435 SALGADO, Joaquim Carlos. A ideia de justiça em Kant: seu fundamento na liberdade e na igualdade. 2. ed. Belo Horizonte: UFMG, 1995, p. 259.

436 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 42-43.

437 KANT, Immanuel, op. cit., p. 43. 438 KANT, Immanuel, op. cit., p. 44. 439 KANT, Immanuel, op. cit., p. 44-45.

a obediência à norma jurídica, mesmo que pelo simples medo da sanção; já a conduta exigida pela moral só encontra o seu valor na medida em que é praticada puramente por dever:

A moral da razão não sobrecarrega o indivíduo apenas com o problema da decisão de conflitos de ação, mas também com expectativas em relação à sua força de vontade. Com relação ao primeiro problema, ele deve estar preparado para, em situações de conflito, procurar uma solução consensual, isto é, entrar em discursos ou repeti-los de modo advocatício. Com relação às expectativas, ele deve conseguir forças para agir segundo intuições morais, inclusive contra seus próprios interesses, a fim de harmonizar o dever e a obrigação. Enquanto autor, o ator deve concordar consigo mesmo, por ser destinatário de mandamentos. [...] Na medida em que não está ancorada suficientemente nos motivos e enfoques de seus destinatários, uma moral da razão depende de um direito que impõe um agir conforme a normas, deixando livre os motivos e enfoques. O direito coercitivo cobre de tal modo as expectativas normativas com ameaças de sanção, que os destinatários podem limitar-se a considerações orientadas pelas conseqüências440.

Importa ressaltar, não obstante, que essa diferença existente entre Direito e moral está no momento da sua aplicação, e não da sua justificação, visto que ambos são deduzidos pela razão e, portanto, “se encontram nos princípios a priori que lhe são comuns”441. No plano da justificação, Direito e moral são partes da mesma doutrina dos costumes, por isso, além de compartilharem conceitos – como, por exemplo, os de obrigação, de dever, de ato, de pessoa, de coisa, de correto (ato conforme o dever) e de incorreto (ato contrário ao dever)442 –, ambos se fundam na liberdade, “que aparece como a própria lei moral, considerada como o resultado de uma máxima que busca a sua validade não externamente, mas na própria razão e aparece, assim, sob a forma do imperativo categórico”443. Este, conforme será estudado mais adiante, é o “o superior critério de validade do ético em geral, direito e moral”444. E, conquanto a divisão da doutrina dos costumes em doutrina da virtude e em doutrina do Direito fundamente-se na divisão entre deveres da liberdade exterior e deveres da liberdade interior – dos quais somente os últimos são deveres éticos (em sentido estrito) –, o próprio Kant admite que o conceito de liberdade é comum a ambas as doutrinas445; e, visto que a liberdade, no seu sentido positivo outra coisa não é senão autonomia – “a propriedade da vontade de ser lei para si mesma”446 –,

440 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, v. I, p. 151-152.

441 SALGADO, Joaquim Carlos, op. cit., p. 154. “Em ambos, aparece o imperativo categórico como critério de validade das máximas: por exemplo, nem no direito nem na moral é concebível alguém que descumpra o seu contrato (pacta sunt servanda)”. Ibidem, p. 154.

442 Cf. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Tradução de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 30 et seq.

443 SALGADO, Joaquim Carlos, op. cit., p. 154. 444 SALGADO, Joaquim Carlos, op. cit., p. 154-155. 445 Cf. KANT, Immanuel, op. cit., p. 325.

446 Cf. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. Porto: Porto Editora, 1995, p. 83-84.

esta é uma noção fundadora tanto do Direito quanto da moral, apesar das suas peculiaridades: na moral, “a autonomia diz-se da vontade individual pura que legisla para si mesma (liberdade interna)”447; no Direito, a autonomia

é a mesma vontade legisladora, não mais enquanto legisla apenas para si mesma, mas enquanto participa da elaboração (pela possibilidade da sua aprovação) de uma legislação universal limitadora dos arbítrios individuais. Essa é a liberdade jurídica no sentido próprio ou liberdade externa, que em essência é sempre a mesma autonomia, pois que é a “faculdade de não obedecer a outra lei externa a não ser aquela a que eu possa ter dado a minha aprovação”448.

Dito isso, pode-se dar início ao exame das características da ética de Kant, a qual se destaca não apenas porque inaugura um novo modelo de fazer ética na história da filosofia, mas também porque está presente em todos os debates atuais sobre ética449.

Um dos aspectos que certamente distingue a ética kantiana das demais éticas é o seu caráter formal. Este diz respeito ao fato de que, para constituir uma ética de princípios a

priori, válidos universalmente, Kant sustenta que ela não pode fundamentar-se em nenhum

objeto (matéria) da vontade, mas apenas na própria forma da lei moral. O próprio conceito do bem não deve ser determinado antes da lei moral, “mas apenas segundo ela e por ela”, de tal modo que “não é o conceito do bem, como um objeto (Gegenstand), que determina e torna possível a lei moral, mas inversamente, é a lei moral que determina e torna possível acima de tudo o conceito de bem”450. Nesse sentido, Kant rechaça todas as chamadas éticas materiais, sejam elas fundadas num hedonismo do sentimento físico (Epicuro) ou do sentimento moral (Hutcheson e Hume), segundo o qual, em vez da razão, um certo sentido moral particular determinaria a lei moral, de maneira que “a consciência da virtude religar-se-ia imediatamente ao contentamento e ao prazer, e tudo se reduziria ao desejo da própria felicidade”451; num

447 SALGADO, Joaquim Carlos, op. cit., p. 260. 448 SALGADO, Joaquim Carlos, op. cit., p. 260.

449 HERRERO, Francisco Javier. A ética de Kant. In: ______. Estudos de ética e filosofia da religião. São Paulo: Loyola, 2006, p. 203-230, cap. IX, p. 203. Nessa perspectiva, Viriato Soromenho-Marques afirma que as consequências políticas da filosofia kantiana são enormes, de tal maneira que as diversas interpretações das suas obras apenas conseguem dar “uma pálida imagem do poder e da vitalidade inspiradora do pensamento de Kant, e em particular das teses éticas apresentadas na Fundamentação, seja no plano institucional, como foi o caso da fundação da Sociedade das Nações Unidas, respectivamente após cada um dos dois conflitos mundiais deste século, seja na renovação do debate político contemporâneo – como poderemos confirmar através das obras de J. Rawls, K-O-Apel, J. Habermas, ou, numa outra direção de pensamento, Hans Jonas – Kant está sempre presente