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CAPÍTULO III SOBRE O TEMPO: TEMPO DE VIDA, DO

3.1 CONCEPÇÃO MÍTICA SOBRE O TEMPO

Entendemos que cada cultura tem as suas próprias impressões digitais sobre o tempo e conhecer um povo é conhecer os valores do tempo pelos quais rege sua vida e, por isso, consideramos importante relatar e analisar as concepções míticas da noção de tempo na Antiguidade para possibilitar conexões esclarecedoras sobre o(s) tempo(s) que as pessoas vivem na atual conjuntura. Recuperar a percepção do tempo e das divindades da mitologia grega pode contribuir para a reflexão sobre ‘os tempos’ e sua relação com as TIC no processo de doutorado dos discentes do PPGE/UFSC.

Os gregos constataram inicialmente que o tempo passava. Surge, deste modo, Chronos. A passagem do tempo era perceptível a qualquer observador que atentasse para os ciclos da natureza, entre eles o dia sucedendo à noite. No entanto, além da passagem sequencial, cronológica, outra dimensão do tempo, relacionada à sua qualidade precisou ser nominada: sua intensidade. Daí a segunda divindade, Kairós, próxima, porém distinta. Com Chronos e Kairós ocupando-se da cronologia e da intensificação temporal, a construção arquetípica daquilo que viria a ser um dos grandes dilemas da humanidade teria sido, para os gregos, completada: a relação com o tempo (BRANDÃO,1991; NEGRI, 2003).

Baseando-se em trabalho de Deleuze, Zarifian (2002) contrapõe Chronos a uma terceira divindade, Aiôn, assim diferenciando-os:

Chronos é o presente que existe e que faz do passado e do futuro suas duas dimensões sempre dirigidas, tais que se vai do passado ao futuro, mas à medida que os presentes se sucedem nos mundos ou nos sistemas parciais. Aiôn é o passado-futuro em uma subdivisão infinita do momento abstrato, que não cessa de decompor-se nos dois sentidos de uma só vez, esquivando para sempre todo presente (DELEUZE apud ZARIFIAN, 2002, p. 2).

Vemos assim que os gregos utilizavam pelo menos três palavras para designar tempo: Aiôn, Kairós e Chronos. Sinteticamente: Aiôn indicava o tempo de longo prazo, na verdade, de longuíssimo prazo, tempo vindouro. Kairós indicava um bloco de tempo, uma ocasião adequada ou uma oportunidade e Chronos é o tempo medido pelo calendário, cronológico: anos, meses, dias etc. e pelo relógio: segundos, minutos e horas. É finito, metódico, controlado, igual para todos.

Conforme Aiôn, unicamente o passado e o futuro insistem ou subinsistem no tempo. No lugar de um presente que reabsorve o passado e o futuro, um futuro e um passado que dividem o presente em cada instante, que os subdividem até o infinito em passado e futuro, nos dois sentidos em uma só vez (DELEUZE, 1974). O tempo em Aiôn reclama a entrega e rendição, a admissão da finitude humana, no qual a duração das vidas é comparada a um vapor. Aiôn exige humildade: agradecer a oportunidade de entrar na existência e encarar a aventura de viver um privilégio. Em Aiôn, alcança-se a dimensão do eterno, da finalidade da expansão, da justa medida imprecisa entre a imanência e a transcendência. Este é o ‘não tempo’. E ‘não tempo’ também é tempo. Imensurável. Tempo do para sempre.

Kairós exige atenção e prontidão, pois tal é a oportunidade como um cometa que passa em velocidade atroz. Não há espaço para protelação e displicência. Kairós exige sabedoria e recomenda aproveitar a oportunidade (GRAVES, 1967).

Segundo Chronos só existe o presente no tempo. Dito de outra maneira, o passado, o presente e o futuro não são dimensões do tempo. O passado e o futuro são duas dimensões relativas do tempo, isso quer dizer que o que é futuro ou passado corresponde a um certo presente (DELEUZE, 1974).

Chronos é o mais cruel. Na mitologia grega, estimulado pela mãe Gaia (a Terra), castrou o pai Urano (o Céu) e se tornou o primeiro rei dos deuses. Teve um reinado próspero, porém viveu amedrontado pela

profecia de que seria vencido por um dos seus filhos e, por esse motivo, devorava os filhos assim que nasciam. Porém, a mãe de Zeus, Réia, salvou o seu filho. Zeus destronou o seu pai, o expulsou do Olimpo e libertou todos os irmãos. Talvez, por esse motivo, Chronos seja visto como o tempo devorador, cruel, que corre sem parar nos empurrando para perto e cada vez mais perto da morte. Chronos é tempo com medida e exige resposabilidade. O que não é inesgotável reclama cuidado; recursos finitos implicam boa administração. É importante saber contar os dias, praticar o bom uso da medida de Kairós: usar bem, não desperdiçar e, especialmente, desfrutar.

Conforme a mitologia grega o dia-a-dia das pessoas é marcado por esses três tempos: enquanto Chronos quantifica, Kairós qualifica e Aiôn ‘atemporiza’. Isso significa que se pode viver o tempo burocrático, medido por cronogramas, horas, prazos determinados, com qualidade, valorizando e qualificando o instante, o momento vivido, e ainda profundamente conectados com as múltiplas dimensões que envolvem as pessoas por todos os lados. O desafio está em fazer esses três tempos caminharem juntos. Rotinas, organização, cronogramas a serem cumpridos, horários determinados, reuniões são algumas das atividades que são vivenciadas na sociabilidade capitalista. Porém se faz necessário que as pessoas sintam a vida mesmo nas tensões provocadas por tantos afazeres.

O tempo está em nossa linguagem, em nossa imaginação. É onipresente em nossa cultura. Para o homem, as medidas dia e noite se corresponderam com a sucessão natural dos astros. Ao contrário de nós, as antigas civilizações expressaram suas ideias do tempo no desenho de calendários baseados na natureza. Nós recorremos à técnica para expressar o tempo em fragmentos menores: horas, minutos, segundos, décimo de segundos, nanosegundos. Acontece que a partir da fragmentação desenfreada do tempo Chronos, esse tempo medido, nossa sociedade se constitui a partir de um paradigma que se desenvolve por meio do progresso científico e o desenvolvimento técnico e não mais com ênfase na observação da natureza.