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As transformações que ocorreram no campo da saúde e das doenças influenciaram na ampliação do conceito de saúde evidenciando os aspectos psicossociais que, até então, tinham sido negligenciados pelo modelo biomédico. Aos poucos, o indivíduo está recuperando o status de sujeito e as práticas de cuidado estão se tornando mais humanizadas. Ainda não alcançamos o patamar de uma saúde integral, eficiente, universal e equitativa, mas os debates sinalizam para onde os ventos estão soprando. Espera-se também por mudanças mais robustas na assistência em saúde mental e o fortalecimento da Rede de Atenção à Saúde Mental.

Vimos que o resultado das lutas dos trabalhadores de saúde mental culminou no movimento de Reforma Psiquiátrica como resultado de construções no campo da saúde mental enquanto política pública. Assim, começaram a surgir os primeiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), serviços que iriam substituir os hospitais psiquiátricos, que deveriam ser fechados. Delgado (2011, p. 115) comenta que

Naquele cenário de mudança social e de paradigmas, e também de intensa pulsão legiferante, tornou-se clara a necessidade de uma lei nacional que sustentasse a nova concepção da psiquiatria pública, ancorada nos direitos humanos, na liberdade, nos métodos modernos de tratamento, na base territorial da organização dos serviços.

Assim, é criada a Lei nº 10.216/2001, que ficou conhecida como a lei da Reforma Psiquiátrica. A referida lei resgata a cidadania do doente mental e convoca a sociedade e a

família para participar do processo de reinserção social do paciente. Os direitos da pessoa com transtorno mental estão elencados no art. 2º5 da referida lei. Ao abandonar o paradigma hospitalocêntrico, a assistência em saúde mental, ou assistência psicossocial como é chamada atualmente, rompe com a psiquiatria clássica, coloca em evidencia o sofrimento psíquico da pessoa com transtorno mental e arquiteta a relação entre saúde mental e direitos humanos (BRASIL, 2001).

Quanto as concepções sobre saúde mental, a OMS considera que há divergências culturais na construção de um conceito único. No entanto, observa-se que tais concepções, mesmo divergindo entre si, todas englobam “o bem-estar subjectivo, a auto-eficácia percebida, a autonomia, a competência, a dependência intergeracional e a auto-realização do potencial intelectual e emocional da pessoa” (OMS, 2002, p. 31-32). Em face da dificuldade de uma completa definição, todos concordam que a saúde mental é mais abrangente que a ausência de perturbações mentais.

Para a OMS (2002, p. 53), as perturbações mentais e comportamentais resultam de “condições clinicamente significativas caracterizadas por alterações do modo de pensar e do humor (emoções) ou por comportamentos associados com a angústia pessoal e/ou deterioração do funcionamento”. Entretanto considera que não se caracteriza como anormal a incidência de uma perturbação por um curto período de tempo. A anormalidade se caracteriza quando as alterações comportamentais são recorrentes ou continuadas e comprometem o desempenho do indivíduo.

Neste sentido, o capítulo V (F) da ICD 106 (ou CID 10), é dedicado às perturbações mentais e comportamentais e contém critérios para diagnósticos, investigações e descrições

5 Art. 2o Nos atendimentos em saúde mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsáveis serão

formalmente cientificados dos direitos enumerados no parágrafo único deste artigo. Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração; IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento; VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental (BRASIL, 2001).

6 ICD 10 – International Statistical Classification of Diseases and Related Health Problems, em inglês, ou

clínicas de tais perturbações (OMS, 2002). Embora a Classificação Internacional de Doenças (CID 10) contenha uma lista com todas as perturbações mentais e comportamentais, não deve servir para rotular indivíduos que podem sofrer de uma ou mais perturbação durante a vida. (OMS, 2002).

Atualmente, é possível realizar um diagnóstico correto e preciso para as perturbações mentais, assim como ocorre com as doenças físicas, facilitando as condutas clínicas e intervenções, conforme aponta a OMS.

Uma vez que o diagnóstico correcto é um requisito essencial para uma intervenção adequada, a nível individual, bem como para a epidemiologia e a monitorização rigorosas, a nível da comunidade, os avanços nos métodos de diagnóstico vieram facilitar consideravelmente a aplicação de princípios clínicos e de saúde pública no campo da saúde mental (OMS, 2002, p. 54).

A mudança de paradigmas no campo da saúde mental contribui para intervenções que são, atualmente, consideradas mais adequadas para tratar as pessoas com perturbações mentais, sinalizando uma evolução na produção de cuidados. O desenvolvimento de novos psicofármacos, a luta pela proteção de direitos humanos, a expansão mundial da democracia e, finalmente, a incorporação de aspectos psicossociais na definição de saúde, contribuíram para mudanças significativas no campo da saúde mental, além de incluir a comunidade na produção de cuidados.

A ideia de cuidados em saúde mental baseada na comunidade constitui mais uma abordagem global do que uma solução organizacional. Os cuidados baseados na comunidade dão a entender que a grande maioria dos doentes que necessitam de cuidados em saúde mental deve ter a possibilidade de ser tratada a nível comunitário (OMS, 2002, p. 103).

A ideia é a reinserção social do indivíduo com perturbação mental como estratégia eficiente para a recuperação e reintegração. Entretanto a comunidade pode não aderir ao processo. Neste caso, o doente mental pode ser alvo de estigma e discriminação (OMS, 2011).

A Lei nº 10.216/2001 representa um avanço na política de saúde mental. Entretanto Amarante (2007) apresenta uma crítica quanto a expressão “portador de transtorno mental”, utilizada na lei, por considerar que tal expressão denota a ideia de uma pessoa que carrega um fardo, um peso. “Por outro lado, uma pessoa com transtorno mental é uma pessoa transtornada, que é o mesmo que possessa!” (AMARANTE, 2007, p. 68). Dessa forma, o autor indica que, no campo da saúde mental e atenção psicossocial, é mais apropriado “falar de sujeitos ‘em’

sofrimento psíquico ou mental, pois a idéia de sofrimento nos remete a pensar em um sujeito que sofre, em uma experiência vivida de um sujeito” (AMARANTE, 2007, p. 68).

Como a violência doméstica provoca muito sofrimento, acreditamos que tratar a vítima como portadora de transtorno mental irá corroborar para aumentar o sofrimento. Assim, seguindo a orientação da atenção psicossocial, vamos considerar a mulher vítima de violência como uma pessoa em sofrimento mental. Dessa forma, fica evidente que não estamos lidando com uma pessoa transtornada, mas uma mulher que encontra-se fragilizada em face dos danos provocado pelo trauma e que necessita acessar recursos para recuperar o seu bem-estar.

Para Lucena (2014, p. 165), “As violências contra as mulheres são, além de importantes indicadores de submissão ao mundo masculino, fatores de adoecimento e morte”. As dores alertam para o sofrimento infringido ao corpo/alma e revelam prejuízo na qualidade de vida, doença e morte. Muitas mulheres utilizam estratégias autodestrutivas para lidar com as situações de violência. Geralmente as mulheres são menos violentas do que os homens. Entretanto, há uma tendência para direcionarem a agressividade contra si mesmas, enquanto os homens direcionam para os outros. Neste sentido, observa-se “condutas destrutivas como anorexia, bulimia, depressão, suicídio e prostituição” (LUCENA, 2014, p. 167). Dentre estas, a OMS tem registrado um aumento mundial nos casos de depressão, que caracteriza-se por:

tristeza, perda de interesse nas actividades e diminuição da energia. Outros sintomas são a perda de confiança e auto-estima, o sentimento injustificado de culpa, ideias de morte e suicídio, diminuição da concentração e perturbações do sono e do apetite. Podem estar presentes também diversos sintomas somáticos (OMS, 2002, p. 68).

Lucena (2014) comenta sobre uma variação em graus nos sintomas da depressão podendo alcançar o estágio mais avançado que corresponde a depressão profunda. Neste sentido, o sentimento de desesperança é tão acentuado que, muitas vezes, o suicídio aparece como uma possível “solução” para o problema. De acordo com a autora, na depressão a pessoa constrói uma percepção distorcida do mundo, com tendência para o negativismo e baixa autoestima, e aponta como sintomas físico-psicológicos da depressão:

a perda de interesse pela vida, a ansiedade, a dificuldade de concentração e memorização, alheamento emocional, delírios, alucinações e impulsos autodestrutivos. Tais esforços articulam-se à ocorrência de distúrbios do sono, de apetite, de variação de peso corporal, de lentidão física e mental, de desinteresse pela sexualidade, problemas no aparelho intestinal e no ciclo de menstruação (feminino), bem como cansaço extremo (LUCENA, 2014, p. 110).

Observa-se que a pessoa depressiva apresenta comportamentos que denotam falta de vontade, indecisão e falta de iniciativa. Dentre os sintomas fisiológicos, os tipicamente presentes são a insônia ou a hipersonia, distúrbios do apetite (podendo ocasionar aumento ou diminuição de peso), queda na libido e dores ou outros sintomas físicos que não estão relacionados com outras doenças. É importante destacar ainda que os sintomas da depressão também prejudicam capacidades cognitivas. Ocorre uma lentidão no pensamento que afeta capacidades como raciocínio, organização, planejamento, concentração e memorização. Comumente, as pessoas depressivas tendem a avaliar as situações de forma pessimista e, neste sentido, há uma valorização de fatos e experiências negativas. Estudos indicam que a depressão compromete o prognóstico de outras doenças (MORENO et al., 2003).

Outro problema de saúde pública, na atualidade, é o suicídio. Ocorre que a violência perpetrada pelo parceiro íntimo contra a mulher representa um dos fatores de risco para o suicídio entre as mulheres. De acordo com a OMS (2002, p. 80), “O suicídio resulta de um acto deliberado, iniciado e levado a cabo por uma pessoa com pleno conhecimento ou expectativa de um resultado fatal”. Como a violência perpetrada contra a mulher, por parceiro íntimo, deixa marcas no corpo e na alma, as consequências podem ser danosas para as vítimas que podem desenvolver uma conduta autodestrutiva. Daí a importância de cuidarmos da saúde da mulher vítima de violência que encontra-se em situação de muito sofrimento e desesperança, antes que ela leve a cabo um plano autodestrutivo e fatal.

Como a saúde mental, na atualidade, é concebida como um processo biopsicossocial, e por natureza complexo, o adoecimento corresponde a uma resposta ineficiente do sujeito à demandas, tanto internas como externas, e provoca muito sofrimento. Para restabelecer o equilíbrio que foi rompido, o sujeito precisa acessar recursos disponíveis em outros aspectos da sua vida. Para tanto, ele precisa da ajuda de profissionais e da comunidade de um modo geral para transformar uma condição adversa, que vem prejudicando o movimento da vida, em potência e possibilidades.

Como protagonista do processo, o sujeito em sofrimento mental, acompanhado por um sistema de saúde eficiente, poderá, além de recuperar o bem-estar, resgatar direitos que foram usurpados e viver com mais dignidade. Neste sentido, os cuidados visam também a emancipação dos sujeitos, por isso, devem ser amplos e se estender também para a comunidade e não ficarem restritos ao ambiente da saúde. Neste sentido, devem ser assumidos por todos: profissionais de saúde, familiares e comunidade, como destaca a OMS:

Os cuidados em saúde mental devem ser não só locais e acessíveis, como também devem estar em condições de atender às múltiplas necessidades dos indivíduos. Em última análise, eles devem visar a emancipação e usar técnicas de tratamento eficientes, que permitam às pessoas com perturbações mentais aumentar as suas aptidões de autocuidados, incorporando o ambiente social informal da família bem como mecanismos de apoio formais. Os cuidados baseados na comunidade (ao contrário dos cuidados baseados no hospital) podem identificar recursos e criar alianças saudáveis que, noutras circunstâncias, ficariam ocultas e inactivas (OMS, 2002, p. 103).

Para tanto, é importante formar vínculos com outros setores para dar conta das múltiplas necessidades, muitas vezes específicas, das pessoas em sofrimento mental, com destaque para as mulheres em situação de violência. Além da saúde, setores como os de educação, trabalho (emprego e renda), lazer, justiça, habitação, dentre outros, devem realizar ações conjuntas, articuladas e harmonizadas, além de estabelecer vínculos com organizações não- governamentais e incluir a comunidade, pois “Muitas perturbações mentais exigem soluções psicossociais” (OMS, 2002, p. 160). Lucena (2014, p. 190) adverte que “O setor judiciário, os conselhos tutelares, as ONG’s e as demais organizações estatais ou privadas, incluindo os setores educacionais e de saúde, são essenciais dentro dessa visão de interdisciplinaridade, transversalidade, ou seja, de totalidade”.

A busca pela saúde é uma busca para aliviar o sofrimento, a dor, o desconforto, nem sempre localizados fisicamente no corpo. E isso exige ações de cuidado, promoção e proteção de pessoas. Nessa perspectiva, os serviços de assistência à saúde, assim como outros serviços assistenciais de um modo geral, representam muito mais do que meros serviços que são desenvolvidos por profissionais qualificados e competentes. A mulher em situação de violência tem necessidades especiais que demandam também, além de cuidados profissionais, atenção, carinho e reconhecimento enquanto ser humano (LUCENA, 2014). Os cuidados devem ser então, amplos e integrais e desenvolvidos por profissionais que, além das competências profissionais, sejam empáticos, atenciosos, sensíveis, éticos e humanos.