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Ao tratarmos do tema do acesso à justiça, uma questão preliminar se impõe para que possamos continuar com o nosso propósito. Diz respeito ao próprio conceito de justiça. Dada a “multiplicidade de significados que historicamente já foram atribuídos à justiça” (GORETTI, 2016, p. 56), é necessário delinear o termo, embora não haja consenso quanto ao melhor sentido que o define. “Justiça é, por excelência, uma palavra vaga, ambígua e carregada de significado emotivo, fato que justifica a diversidade de significados a ela atribuídos” (GORETTI, 2016, p.

56 – grifo do autor). Como podemos ver, um conceito universal de Justiça é utópico, embora o senso comum considere tal possibilidade nas situações de conflito. Em face dos litígios, o que se pretende, pelas vias legais, é estabelecer critérios que se aproximem o máximo possível da igualdade e equidade que a sociedade tanto almeja.

O senso comum fundamenta-se numa concepção de justiça concreta, que tem no princípio da igualdade o elemento condicionante do processo de percepção da justiça. Em outras palavras, a noção que cada um tem de justiça é determinada pela sua percepção de justiça e não por concepções formais ou abstratas de justiça. Neste sentido, nos aproximamos de uma concepção subjetiva de justiça que reflete consequências de experiências passadas envolvendo a justiça; trata-se de uma concepção interna, que emana da experiência do sujeito. Assim, cada pessoa pode construir o seu conceito particular de justiça e este pode também mudar em razão da situação, do contexto ou do momento que a pessoa está vivendo.

Dessa forma, fica evidente que é impossível construir um conceito absoluto e universal de justiça que se aplique em todas as situações, contextos e épocas, um conceito dinâmico, que se renova com as mudanças e transformações que ocorrem na sociedade. No entanto, Perelman (1996) alude que é possível extrair das várias concepções de justiça, um elemento comum, como veremos a seguir.

Perelman (1996, p. 9-12), apresenta algumas noções de justiça que embasam as concepções mais correntes do termo, cujos sentidos são assim apresentados: “i) A cada qual a mesma coisa; ii) A cada qual segundo seus méritos; iii) A cada qual segundo suas obras; iv) A cada qual segundo suas necessidades; v) A cada qual segundo sua posição; vi) A cada qual segundo o que a lei lhe atribui”.

O princípio da igualdade está no cerne da primeira concepção: a cada qual a mesma coisa. De acordo com este princípio, todos devem ser tratados do mesmo jeito, sem distinção e sem discriminação. É como se todas as pessoas fossem iguais em todos os aspectos, não havendo distinção entre crianças, idosos, adultos, homens, mulheres, doentes e sãos. Não leva em consideração as particularidades e peculiaridades de cada indivíduo. Diferente dos outros critérios, que concebem a justiça numa perspectiva de proporcionalidade, aqui a igualdade é interpretada como valor absoluto (PERELMAN, 1996).

Quanto à segunda concepção, a cada qual segundo seus méritos, o critério de equidade repousa nas diferenças, e as pessoas devem ser tratadas segundo seus méritos. O sentido de justiça está condicionado aos esforços pessoais. Acredita-se, assim, que os méritos são

consequências do esforço e do sacrifício individuais; não leva em conta as oportunidades que surgem ao longo da vida. Outra questão que se impõe é quanto aos critérios que devem ser considerados na determinação dos méritos. Corre-se o risco de ameaçar a equidade com critérios nem sempre objetivos, claros ou mensuráveis (PERELMAN, 1996).

Na concepção de justiça, implícita na expressão a cada qual segundo suas obras, o que se considera é o resultado da ação. Trata-se aqui de critérios mais objetivos, ou mesmo quantificáveis, por exemplo, a remuneração do trabalhador por hora ou por peças produzidas (PERELMAN, 1996).

A quarta concepção de justiça, a cada qual segundo suas necessidades, abstrai os méritos e a produção, e tem como meta a satisfação de necessidades básicas do ser humano com o intuito de aliviar o sofrimento dos mais necessitados. Essa forma de conceber a justiça, contribuiu, por exemplo, para a garantia de direitos trabalhistas, a partir da percepção da importância do trabalho na satisfação de necessidades essenciais (PERELMAN, 1996). “Aproxima-se de uma concepção de caridade, por considerar a garantia do mínimo vital para cada indivíduo” (GORETTI, 2016, p. 58).

No que diz respeito à quinta concepção, a cada qual segundo sua posição, ela difere das demais por compreender a justiça a partir de critérios extrínsecos ao indivíduo. Abandona conceitos universalistas e admite que os seres humanos estão separados por categorias e que devem ser tratados de acordo com a categoria a qual estão vinculados. Neste sentido, Perelman (1996) adverte que trata-se de uma fórmula aristocrática de justiça, uma vez que algumas categorias são defendidas pelos seus beneficiários, como superiores, e a partir de tal percepção, passam a exigir tratamento diferenciado. Não precisamos de muito esforço para evidenciar as injustiças que ocorreram e que ainda ocorrem em face de tal concepção. Só para citar, uma das injustiça mais marcantes na história da humanidade foi o genocídio contra os judeus, por uma raça que se considerava superior. Atualmente, observamos a força de convicções como essa em situações de violência de gênero (PERELMAN, 1996).

Na sexta e última concepção, a cada qual segundo o que a lei lhe atribui, o conceito de justiça está atrelado a aplicação da lei. Ser justo é aplicar em cada caso o que determina uma legislação específica. Não aplicá-la, seria injusto. Essa concepção é qualificada por E. Dupréel (apud PERELMAN, 1996, p. 12) como “justiça estática” e se oporia à concepção de “justiça dinâmica”. Enquanto esta admite a mudança e a transformação, a outra, pelo caráter conservador, é “fator de fixidez” (PERELMAN, 1996).

Após analisar as seis concepções de justiça e identificar os aspectos distintos ou mesmo opostos a cada uma, Perelman (1996) esbarra no desafio de arquitetar um sentido de justiça que contemple todos os aspectos que o termo sugere. Ele argumenta que é possível construir um conceito formal ou abstrato de justiça, a partir da identificação de um elemento comum às várias concepções. A variável comum, identificada por ele, depois de percorrer todas as noções de justiça, desde Aristóteles até os filósofos contemporâneos, foi a ideia de igualdade. Porém, é impossível aplicar a todas as pessoas um critério de igualdade absoluto. A igualdade deve considerar os iguais sob certos aspectos, ou seja, deve considerar as características essenciais sob as quais repousa o sentido de justiça formal ou abstrata (PERELMAN, 1996).

Para Perelman (1996, p. 19), a noção de justiça formal ou abstrata é “como um princípio de ação segundo o qual os seres de uma mesma categoria essencial devem ser tratados da mesma forma”. A esse respeito, Goretti (2016, p. 59) conclui que “o fundamento da justiça não é a igualdade em si, mas a aplicação de uma dada regra (seja ela qual for) a todos os membros de uma determinada categoria essencial (seja ela qual for)”. O conceito apresentado por Perelman não trata da justiça numa acepção mais concreta. Ao contrário, segue uma visão formal e abstrata, que pode não alcançar um resultado satisfatório em situações complexas. (GORETTI, 2016).

O acesso à justiça se configura como a efetivação de um direito constitucional que, por sua vez, possibilita a efetivação de vários direitos. Nesse sentido, a prática da assistência jurídica deverá estar sedimentada nos princípios de igualdade e equidade, para que os assistidos consigam alcançar um estado de satisfação e bem-estar oportunizado pelo sentimento de justiça. Portanto, o que interessa é o sentido valorativo da justiça, como bem expressa Goretti (2016, p. 57), e complementa ressaltando que “[...] o resultado justo é considerado como virtude, fundamento ético de igualdade ou equidade, passível de ser consagrado por vias judiciais ou extrajudiciais”.

Frequentemente, o que mobiliza as pessoas a procurarem a assistência jurídica é o sentimento de justiça que cada pessoa construiu individualmente. Muitas vezes elas se frustram quando as suas expectativas em relação à justiça não correspondem àquilo que está previsto no ordenamento jurídico, pois a justiça é para todos. Na realidade, elas estão em busca de “justiça”, embora não saibam exatamente o sentido e significado político de suas ações, nem tampouco sejam conhecedoras de seus direitos. Elas sabem que existe um espaço que oferece serviços de advocacia gratuita mas não o identificam como um direito que lhes é assegurado constitucionalmente. Nesse prisma, o acesso, além de ser um direito constitucional, se configura

como a via para a efetivação de direitos. “O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos” (CAPPELLETTI; GARTH, 2002 p. 5).

A Constituição Federal de 1988 trata, em seu Artigo 5º, entre outros direitos, do direito de acesso à justiça. O item LXXIV, expressa que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Dessa forma, compete ao Estado disponibilizar os meios de acesso à justiça, gratuitamente, ao menos favorecidos. Para a efetivação desse direito, a população mais necessitada conta com serviços que são oferecidos pelas Defensorias Públicas, Estaduais e Federais, nos termos do artigo 134 da Constituição Federal, e também com os Núcleos de Prática Jurídica das Faculdades de Direito. “Desse modo, as pessoas consideradas hipossuficientes, assim definidas aquelas que não possuem condições financeiras de arcar com os custos de contratação de advogado sem prejuízo do sustento, seu e de sua família, podem se socorrer de tais serviços” (COGOY, 2012, p. 146).

Observa-se, na atualidade, uma demanda crescente por justiça, sobretudo pelos menos afortunados, sinalizando a necessidade de ampliação das vias de acesso à justiça. No entanto, Santos (2003, p. 165) refere-se a uma Crise na Administração da Justiça, que eclodiu na década de 60 e permanece até os dias atuais, evidenciando uma discrepância entre a oferta e a procura por justiça. “A igualdade dos cidadãos perante a lei passou a ser confrontada com a desigualdade da lei perante os cidadãos [...]” (SANTOS, 2003, p. 165). Tal demanda tem provocado um congestionamento no sistema judiciário, em parte por conta da expansão dos direitos sociais, em parte advinda dos conflitos familiares resultantes das “mudanças radicais nos padrões do comportamento familiar (entre cônjuges e entre pais e filhos) e nas próprias estratégias matrimoniais [...]” (SANTOS, 2003, p. 166), expandindo a procura pelo direito de família.

Para agravar a situação do acesso, a recessão, que ocorreu na década de 70, levou o Estado a reduzir recursos financeiros que deveriam ser investidos em favor das classes populares, tendo em vista ampliar os serviços assistenciais, como o acesso à justiça. Houve, então, uma retração de investimentos no momento em que a demanda estava em expansão. Assim, pode-se dimensionar que existe uma lacuna nos serviços que emanam do Poder judiciário, uma crise, a qual se referiu Santos (2003), e que necessita de medidas “imaginadas e imagináveis” (BOBBIO, 1992, p. 33).

Mas nem tudo é negativo, conforme assinala Fernando Passos (apud GORETTI, 2016, p. 70-71), argumentando que o aumento no número de conflitos que tramita atualmente no judiciário, é decorrente do processo de democratização do Brasil. Em outras palavras, significa que as pessoas começam a exercer seus direitos livremente e estão mais conscientes dos mesmos, e isso é um dado positivo para se extrair da crise. O Estado de liberdade e o Estado de Direitos corroboram na consolidação da democracia. Portanto, oportunizar o acesso à justiça é garantir a efetivação de direitos essenciais nas sociedades democráticas; é assegurar condições mínimas de existência para que a pessoa possa viver com dignidade.