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Capítulo 2: Modo melodramático nas representações do caso Dreyfus

2.8. Conciliação final

Como já visto, o reconhecimento da virtude é o grande leitmotiv do melodrama. Como na “anagnorisis” trágica, o movimento da cena caminha na direção do reconhecimento moral da virtude, mas diferentemnte desta, trata-se no melodrama de uma espécie de liberação de um signo puro: “Anagnorisis in melodrama has little to do with the achievement of psychological identity and is much more a matter of the recognitio, the liberation from misprision, of a pure signifier, the token for an assigned identity” [Anagnoresis no melodrama tem pouco a ver com a revelação de uma identidade

psicológica e é muito mais uma questão de reconhecimento, de libertação de uma prisão equivocada, de um significante puro, a expressão de uma identidade marcada] (Brooks, 1995: 53). Diferentemente da personalidade revelada no contexto trágico – como é o caso clássico em Édipo – no melodrama o percurso de revelação caminha em direção ao reconhecimento do signo da virtude e da inocência, a partir de uma situação imposta por um traidor ou inimigo durante o correr da peça ou do romance. Este reconhecimento aparece em alguns trechos da Revista Rua do Ouvidor, de proriedade de J. Serpa Junior, de setembro de 1898. O texto é assinado por Gaston Ruch78:

“Pobre França! Quantos insultos, quantas e quantas humilhações não tens soffrido pelo acto nefando commettido por um homem que talvez nem seja teu filho! A Europa colligada, a america, á portia (sic), te accusam. Dizem todos que estás decadente, podre, envillecida e – suprema dôr – que teu exercito glorioso já não conhece a honra.

Estes que assim falam, ignoram teu passado, defendem obstinadamente a doutrina absurda de que uma nação inteira é responsavel pelo crime praticado por um de seus filhos, e que fica para sempre deshonrado um exercito que outr’ora foi commandado por um Bazaine. Se estes se dessem ao trabalho de ler, e não muito, veriam que este exercito trahido, humilhado, vilipendiado, ainda assim luctou longos mezes, deixando attonito o adversario por semelhante resistencia, por este mesmo qualificada de heroica. Não, não conhecem a historia estes que assim se expressam porquanto, dado o caso da acceitação de doutrina tão monstruosa, que dizer de uma nação que, em guerra recente, bombardeou propositalmente edificios indefesos e por muitos motivos sagrados, hospitaes com a cruz de Genebra arvorada, bibliothecas, etc., quer dizer de um exercito cujos soldados ainda hoje soffrem supplicios barbaros e infamantes, sem que os miseraveis autores recebam a menor reprehensão, o minimo castigo.”79

Aqui, neste primeiro trecho, a grande vítima dos acontecimentos é a França, a qual todos acusam; a decadente, podre e envelhecida França do caso Dreyfus. No segundo parágrafo, a história deve perdoar a heróica França e apontar o verdadeiro traidor: a

78

Não foi encontrada quase nenhuma informação sobre este autor. A única informação relevante é que ele é autor de livros de História e de Francês.

79

RUCH, Gastão. “A Questão Dreyfus”. Revista Rua do Ouvidor, Anno I, N. 19, p. 3-4 .Rio de Janeiro, 17 de Setembro de 1898.

Alemanha que “bombardeou propositalmente edificios indefesos e por muitos motivos sagrados, hospitaes com a cruz de Genebra arvorada, bibliothecas”. Todo o raciocínio de Rush é vitimizar e inocentar a França, acusando “aquele país”, a Alemanha. Somente no meio do artigo é que ele retoma a questão Dreufus, seu objeto de análise:

Voltemos porém á questão Dreyfus.

“O nosso modo de pensar é talvez ousado, mas em todo caso, explica até certo ponto a balburdia que tem reinado nesta vergonhosa questão.

Parece-nos que effectivamente houve communicação de documentos relativos ao poder militar da França á outra potencia, á Russia com o fim de angariar a sua alliança.

Esta communicação feita por ordem superior foi habilmente aproveitada por um official do exercito (Dreyfus ou Esterhazy?) que se valeu do ensejo para vender peças importante a outra nação, naturalmente a Allemanha.

(...)

Os antecedentes destes dois homens differem muito.

Trabalhador, intelligente e estimado, tal era a situação de Dreyfus antes de sua condemnação. Possuidor de alguns bens e casado com uma senhora de cabedaes, parece que não foi o dinheiro o movel que o levou, acaso, a praticar o crime.

Já se não pode dizer o mesmo de Esterhazy. (…)

Jogador e devasso, muitas vezes vivendo de expedientes menos confessaveis, talvez algum dia acossado pela necessidade, se lembrasse de trahir.

Querendo evitar o justo castigo, quem nos diz que não conseguiu este homem accumular, com infernal habilidade, todos os elementos que o podessem denunciar, contra o desgraçado Dreyfus, assim victimado apezar de innocente.

Eis o que a revisão deve elucidar.

Em nosso entender, quando o conselho de guerra condemnou o capitão Dreyfus, todos os membros estavam convencidos da sua culpabilidade. Talvez houvesse alguma precipitação no julgamento, precipitação explicavel para quem conhece o temperamento nervoso e impressionavel do povo francez.

Porém dahi a acreditar que o Estado-Maior, paa salvar alta patente, se fizesse cumplice no crime de condemnar um innocente, vai grande differença.

Se a revisão não foi feita até hoje, dicta este procedimento o receio de complicações que poderiam surgir pela publicação de documentos, visando não só a mobilisação, por exemplo, como talvez factos relativos á potencias visinhas.

(…).”80

Há aqui outra história, um “ousado modo de pensar”. Houve uma comunicação a Rússia e alguém aproveitou a circunstância para vender algumas peças à outra nação – a Alemanha, a traidora implícita da primeira parte. Há dois suspeitos, Dreyfus ou Esterhazy. Restam então, para esclarecimento do caso, os antecedentes de ambos. A partir destas evidências, Rush chega à conclusão que o agora desgraçado Dreyfus, fora vitimado apesar de inocente. E aí está o que a revisão do processo deve elucidar. O erro judiciário passa a ser então fruto de alguma precipitação de julgamento explicável para quem conhece o “temperamento nervoso e impressionável do povo francês”. São duas vítimas então, Dreyfus e a França vilipendiada.

Na edição da mesma revista da semana seguinte, lê-se sob o mesmo título, mas sem assinatura, parecendo tratar-se portanto do editor Serpa Júnior:

“O misero official foi condemnado por se ter constituido alvo da inveja de alguns, por ser – rico, trabalhador, intelligente, feliz, casado com uma senhora, cuja distincção e heroismo são hoje cousas indiscutiveis”81

Têm-se aqui o reconhecimento da verdade e da virtude, aquele que foi objeto de inveja, Dreyfus, está redimido e sua senhora, distinta e heróica, é então reconhecida na sua virtude. Temos aí a reconciliação final, o quadro claramente configurado. E as identidades atribuídas como símbolos de uma França que parece ter pisado em falso. O curioso é que a despeito de tudo isso, Dreyfus é ainda condenado em Rennes82 e é o presidente da República, Émile Loubet, que lhe concede um indulto, em grande parte em função da iminente Exposição Universal de 1900. Reconciliação e reformismo. Apesar de se tratar da história do caso Dreyfus, poderia muito bem se tratar do melodrama Dreyfus.

80

Ibidem.

81

S/ assinatura. “A Questão Dreyfus”. Revista Rua do Ouvidor, Anno I, N. 20, p. 2, Rio de Janeiro, 24 de Setembro de 1898.

82

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