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Do melodrama ao melodramático (do substantivo ao adjetivo)

Capítulo 2: Modo melodramático nas representações do caso Dreyfus

2.2. Do melodrama ao melodramático (do substantivo ao adjetivo)

O enredo do melodrama é simples, assim como suas regras enquanto modo de imaginação. Pois, como dito antes, não se trata aqui de reconhecer o melodrama teatral em sua forma “clássica” ou original, mas como um modo possível e datado de ligação entre os homens pelo sentimento comum de compaixão e piedade. Podemos elencar aqui as mais importantes características deste modo de imaginação a partir do estudo de Brooks (1995): a busca do reconhecimento da virtude e da verdade, uma estrutura maniqueísta geral, a recorrência à figuras de linguagem características de um drama retórico, uma reformulação conclusiva como fechamento e, por fim, a constituição de uma espécie de “tableau vivant”, na representação daquilo que não pode ser expressado, na força da expressão como imagem, com força de signo e relação metafórica. Passemos brevemente por estes elementos.

Primeiramente, o típico melodrama trata de tornar a virtude visível e de reconhecê-la, num processo que se dá por meio de signos que a representam. Brooks nomeia esta característica fundamental do melodrama de “Signo da Virtude”. A simplicidade e o exagero da linguagem permitem este reconhecimento, na medida que os

signos deste reconhecimento são articulados na linguagem: “they can be deployed in interplay and clash in such a manner that the struggle of moral entities is visible to the spectator” [eles (os signos) podem ser inseridos na ação e impactarem de uma tal maneira que a luta das entidades morais se torna visível ao espectador] (Brooks, 1995: 28). A força das imagens no melodrama é exercida por meio da simplicidade organizativa e do exagero da linguagem, produzindo um impacto visual no leitor. Mais do que visível ao espectador/leitor, o reconhecimento da virtude deve ser tangível como reação emocional, como “étonnement” [surpresa]. O impacto diferencia-se aqui da reação trágica. Brooks distingue “étonnement”, como reação emocional, e “admiratio”, reação intelectual característica da catharsis trágica.

Esta reação emocional ao reconhecimento da virtude é um dos recursos usados tanto em J’accuse como na recepção, ainda que seja agora a verdade e não a virtude o objeto de reconhecimento. Na missiva de Zola, a eclosão [éclat]48 que se dá é a da verdade e não a da virtude. A própria palavra “éclat” aparece na carta e anuncia, no seu encaminhamento, um outro elemento fundamental no estilo melodramático: a presença de forças da natureza como signo da alteração da ordem. Na carta, há uma tempestade que anuncia a revelação da verdade: “...devant le terrible orage qui s'amoncelait, qui devait éclater, lorsque la vérité serait connue” [“...diante da terrível tempestade que se formava, e devia eclodir, quando a verdade fosse conhecida”]. E é a introdução do traidor que libera as forças do mal, uma versão melodramática da catharsis trágica, o momento crucial no qual a catástrofe irrompe. É o momento anterior ao reconhecimento. Também na estrutura do melodrama, as forças da natureza estão presentes no anúncio da alteração da ordem que se encaminha na direção do reconhecimento da virtude em perigo. Em J’accuse, é a verdade que está em perigo e a terrível tempestade anuncia a sua eclosão.

O resumo do enredo típico do melodrama poderia ser descrito da seguinte forma: uma sociedade em equilíbrio é transformada pela presença do traidor que acusa o

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De acordo com o Le Robert (REY, Alain (dir). Le Robert – dictionnaire d’aujourd’hui. Paris: Dictionnaire Le Robert, 1991), éclat pode sinificar um estilhaço, fragmento de um vidro quebrado, por exemplo; um barulho súbito e forte; assim com uma forte luz. Neste sentido, o uso da palabra eclosão permitiria uma dupla referncialidade – ainda que não haja um completo equivalente para o português: primeiramente, refere-se ao sentido de irrupção (fragmento ou som) e, em segundo lugar, ao sentido de iluminação. Manteve-se inclusive na tradução (Anexo 1) o mesmo termo nas várias recorrências da palavra.

herói de um crime do qual este último não pode se defender. O acontecimento altera toda a vida local e todo o decorrer da história é a narração desta luta pelo reconhecimento da virtude e da verdade.

Com esta estrutura, parece que Bentley tem alguma razão em pensar o melodrama como impulso básico para o drama, dada à organização estrutural: situação inicial, alteração da ordem, clímax e retorno à calmaria. O diferencial do estilo melodramático poderia ser transcrito na famosa expressão de Giuseppe de Lampedusa, “cambiari per non cambiairi” ou “mudar alguma coisa para que tudo continue na mesma”. De fato, um segundo aspecto deste modo melodramático é exatamente o restabelecimento de uma situação anterior. O que faz desta estética um modo de criação reformista49. Longe de reduzir o estilo, esta característica o amplia na sua significação enquanto experiência partilhada, pois revela na sua forma indícios de uma sociedade que busca a todo custo estabelecer referências universais perdidas na era pós-sagrada ou pós-revolucionária.

Uma terceira característica já bastante enfatizada e fundamental no estilo melodramático, segundo Brooks, é sua estrutura maniqueísta típica, tanto do ponto de vista da luta interna entre os personagens como na estrutura geral: “Polarization is both horizontal and vertical – characters represent extremes, and the undergo extremes, passing from heighs to depths, or the reverse, almost instantaneously” [A polarização é tanto horizontal como vertical – os personagens representam extremos e passam por situações extremas, indo de um extremo a outro quase imediatamente] (Brooks, 1995: 36). Quanto às figuras de linguagem característica do estilo melodramático, Brooks elenca as mais presentes, todas conseqüências dos elementos anteriores, seja do exagero, seja da estrutura dual: a hipérbole, a antítese e o oxímoro. Um jogo de linguagem que expressa bem a linguagem melodramática é usado por Brooks para sintetizar as figuras retóricas típicas: “nothing is UNDERstood, all is OVERstated” (Brooks, 1995: 41) [Nada é sub-entendido, tudo é sobre-estabelecido].

Este “gênero expressionista” ou este estilo “bigger-than-life” nas palavras de

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Esta característica levou a muitas interpretações ideológicas do conteúdo e da forma no melodrama, porém, de um lado, o exame da censura em Thomasseau e, de outro, a percepção do estilo como revelador de elementos fundamentais do hábito corrente, ajudam a rebater críticas puramente ideológica e anacrônicas como a de Barbèris, apresentada no capítulo sobre J’accuse.

Brooks é uma derradeira tentativa de significação totalizante, de expressão de um mundo em sua plenitude de significantes. Na tentativa de “tout dire”, o melodrama, no seu sistema de oposições recria um mundo no qual as palavras aparecem como formulações insuficientes para o registro do signo. Na presença do “tableau vivant”, a expressão excessiva aparece juntamente com a ausência de expressão, uma estética da mudez nos termos de Brooks50. Uma imagem equivalente aparece na análise de Frantz. Para este último, o espaço da cena oferece à palavra um quadro finito, cuja estética ele denomina de “esthétique du Tableau”, quadro este que dá ao símbolo uma força dramática e lança luz sobre a realidade (Frantz, 1976). O quadro é a própria imagem da linguagem em ato. Este “efeito da verdade” em Frantz remete a uma referência à qual vale a pena deter-nos um pouco mais.

Como já abordado acerca das frágeis fronteiras entre ficção e história em J’accuse, Guinzburg fala também de um “efeito da verdade” (Guinzburg, 2007), um procedimento ligado às convenções literárias utilizado pelos historiadores antigos e modernos que consideravam parte de sua tarefa comunicar uma certa experiência imediata [enargeia]. A idéia por traz da enargeia era a comunicação da ilusão da presença do passado, sua presença efetiva. Também Barthes (2004a), ao tratar do “efeito do real”, remonta uma idéia de eficácia expressiva. Talvez o “barômetro” da Sra. Aubain, como ícone do anúncio do real, seja melhor representado pelo “tableau vivant” do estilo melodramático de Brooks que, na ausência de representação pela palavra, na sua premência gestual, “gives the spectator the opportunity to see meanings represented, emotions and moral states rendered in clear visible signs” [dá ao espectador a oportunidade de visualizar o significado representado, as emoções e os estados emocionais sintetizadas em signos claramente visíveis] (Brooks, 1995: 62). Um drama do significante enquanto outra representação possível, poderia-se pensar.

Esta aspecto gestual foi também estudado por Kristeva no ato de reivindicar uma abertura da palavra para o universo da ação (Kristeva, 1968). No intuito de estudar este componente semiótico, a autora dá ao texto indicativo do gesto o correlato lingüístico

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Os heróis do melodrama são desprovidos de expressão. Disso resulta sua mudez e a incapacidade de expressão deste herói.

da anáfora (repetição de uma ou mais palavras no princípio de duas ou mais frases). Para ela, a função anafórica representa uma abertura, “le geste qui indique” [o gesto que indica]. A função anafórica forneceria uma extensão além de representar os dois pontos da fala e da escrita51.

Apesar de à primeira vista parecer contraditória a coexistência entre expressividade excessiva e ausência de palavra, o signo revela aqui a escrita como “um caso particular de iconicidade”52. No universo melodramático, diante da existência de uma multiplicidade de signos recorre-se ao significante, à própria palavra enquanto imagem. Por uma substituição contextual, o conteúdo metafórico do universo melodramático se dá por uma reação substitutiva53. O signo da virtude, por exemplo, funciona como uma possibilidade de representação substutiva. O universo ao qual remete não exerce influência nesta nova situação a não ser pelos quadros que cria. Neste sentido, como representação substitutiva que salta da realidade para a imagem, o universo melodramático pode ser, de fato, pensado como sugere Brooks, como uma “central poetry”: “a poetry in ‘the very center of consciousness’, in that it responds to the common concern, in a search for the common ground” [uma poesia no ‘exato centro da consciência’, que responde a uma preocupação comum, à busca por uma referência comum] (Brooks, 1995: 200).54

É como se várias operações metafóricas substitutivas operassem o funcionamento de cenas que equivalem a uma tentativa de representação do real. A palavra como significante ou o tableau como efeito do real representam esta busca do essencial e

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Em J’accuse (a anáfora estava também presente na análise de J’accuse no primeiro capítulo, comparativamente à Hugo, assim como em outras cartas de Zola escritas durante o caso Dreyfus), assim como em um artigo da Revista do Brasil, a anáfora reaparece com um intuito indicativo de dar às palavras reincididas o caráter de “tableaux vivant”, de enargeia. Este aspecto será discutido de forma mais detida com a transcrição de alguns trechos de ambas as fontes.

52 Ricoeur faz um elogio à escrita em Teoria da Interpretação, defendendo-a de toda uma tradição que, desde Platão via

nela uma identidade estéril em relação ao objeto ao qual se refere. Nesta perspectiva ricoeriana, a escrita como iconicidade está associada à pintura, como produção e não reprodução. Ela é uma outra realidade. Esta transformação não somente reabilita a escrita como dá a ela um valor marcado no tempo (Ricoeur, 1976). É verdade que há toda uma discussão em relação à própria crìtia de Platão à escrita, particularmente em Derrina, a partir da ambigüidade essencial do “pharmakon”, “ao mesmo tempo remédio que cura e veneno que traz à morte” (Derrida apud Gagnebin, 1997).

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Jakobson distingue metáfora e metonímia a partir da idéia de reação substitutiva à primeira e predicativa à última. Ao considerar estes dois polos, o autor também atribui à poesia, a metáfora e à prosa, a metonímia. Este aspecto será retomado mais a frente no tópico Cunha Mendes: signo da virtude e anáfora. Cf. Jakobson (1975).

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Há uma crítica à esta perspectiva de Brooks feita por Hays e Nikolopoulou (1996), que argumenta que o primeiro, com a proposição do estilo melodramático, dissolveria o aspecto histórico e crítico do gênero melodrama. Mesmo admitindo que o gênero melodrama apresenta um alto grau de mutabilidade em sua história, Hays e Nikolopoulou atribuem este fato às demandas históricas e não às estéticas. Ainda que levantem uma questão relevante (a a-historicidade do estilo), a análise de Hays e Nikolopoulou não pensa o estético e o histórico como perspectivas relacionáveis. E mesmo ao tratar de uma imaginação difusa Brooks o faz reinserindo a teoria nos romances realistas, não em termos metafísicos ou alienados.

do sintético, essa poesia central e comunal do universo dual melodramático. Tanto o efeito da verdade ou do real, como a anáfora ou a iconicidade da escrita seriam formas possíveis de se pensar a poética melodramática. Passemos, então, para o exame desta poética nos textos de recepção e em J’accuse.

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