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PARTE II: JUDAÍSMO CONTEMPORÂNEO EM SÃO PAULO

CAPÍTULO 3: JUDAÍSMO PAULISTANO NO SÉCULO XXI

3.7 Concluindo

Na modernidade, a sinagoga transformou-se, se não no único, no mais importan- te local de prática judaica. Isso porque desde a modernidade, isto é após a Revolução Francesa e a Revolução Industrial, os judeus ao sair de seus enclaves étnicos e ao parti- cipar dos grandes fluxos migratórios incorporaram hábitos e costumes da sociedade maior que os acolheu, assimilando os valores dessa modernidade em detrimento dos valores judaicos, considerados anacrônicos e incompatíveis com o novo estilo de vida do judeu moderno. Valores e costumes que eram transmitidos e reproduzidos no âmbito do privado, no lar, no ambiente familiar.

Quando se trata de universo não ortodoxo, é exclusivamente na sinagoga que o indivíduo realiza os rituais judaicos. É na sinagoga, no espaço público, que o judeu con- temporâneo tem seus primeiros contatos com as obrigações ritualísticas. O processo é ágil, iniciam o aprendizado e a prática respeitando as leis referentes ao shabat. Ao mesmo tempo há uma familiarização com a cashrut. Essas práticas podem ser rapida- mente incorporadas ao cotidiano, alo longo de cerca de seis meses a um ano frequentan- do regularmente os serviços religiosos e as atividades propostas pela instituição. No universo ortodoxo, o processo de adesão ao modo de vida judaico pode ser mais rápido, entre dois a três meses, dado o trabalho intensivo do rabino e de sua esposa, que inclui jantares de shabat em sua residência. Outra variável que pode influir no tempo de ado- ção das regras é a origem do candidato. Se o recém chegado ficou distante das tradições apenas por uma geração, essa aproximação tende a mais rápida.

Tanto para a ortodoxia como para a corrente conservadora da não ortodoxia, es- tar dentro ou fora da vida judaica contemporânea significa seguir ou não as leis da cas-

hrut. Estar dentro ou fora da lei. Essa é a marca do judaísmo. Lembro a importância da

cashrut nas comunidades asquenazitas em conflito constante com o universo cristão da Europa. A cashrut constituiu-se como uma fronteira entre ‘nós’ e ‘eles’, os limites da temida assimilação cultural, tema central do judaísmo contemporâneo.

O que é preciso para uma sinagoga se consolidar na São Paulo do século XXI? Seu sucesso ou o fracasso está essencialmente ligado ao trabalho do rabino, funcionário contratado pela diretoria e aprovado pela congregação. Na antiguidade, o sábio dava as respostas aos membros da comunidade; na Idade Média o erudito sabia onde encontrar as respostas e as esclarecia aos seus alunos e discípulos; hoje o rabino é um animador cultural, lidera serviços religiosos, dá aulas e palestras, visita os doentes de sua congre- gação, orienta empresários, aconselha seus fieis como atingir as metas ditadas pela dire- toria. Conhecimento e carisma são atribuições básicas para essa função. E aí entram questões de autonomia e de ideologia. Acordos e concessões são feitos entre o contra- tante e o contratado para que os fins sejam alcançados. Em outras palavras, fortalecer o judaísmo da congregação no âmbito do coletivo e do individual é o desejo de todos, até a liderança laica judaica em nível nacional, a Conib52. É evidente que os profissionais religiosos estão de prontidão a serviço desse objetivo. E por profissionais religiosos entenda-se os rabinos contratados atuando nas sinagogas, os missionários do movimento

Habad Lubavitcher atuando nas escolas judaicas, os professores cujos salários são pa- gos por uma elite econômica, muito superiores aos dos professores contratados pela escola.

Para entender o judaísmo desse início de século, deve-se olhar para dentro da si- nagoga e principalmente para a figura de proa do judaísmo contemporâneo que é o rabi- no. Como já foi dito, o trabalho e o carisma do rabino são fatores determinantes no pro- cesso de consolidação de uma congregação, mas ele não está só. São três os pilares que sustentam uma sinagoga em funcionamento, o primeiro é o grupo que garante o quorum mínimo para a celebração dos serviços religiosos diários e semanais. Um segundo grupo é responsável pelos recursos que cobrem as despesas de manutenção da sinagoga: o imóvel e o rabino, bem como o restante dos funcionários. Finalmente, o terceiro grupo ou o corpo de diretores, a liderança laica, a qual garante a operacionalidade da institui- ção.

Como já foi dito, o judaísmo desetnizado é aquele aprendido nas sinagogas, en- sinado pelos rabinos. Isso porque a atual geração responsável pela transmissão do juda- ísmo não o recebeu como as gerações anteriores. A ideia de religião como herança transmitida na esfera da família desapareceu em finais do século XX, como observou a socióloga Hervieux-Leger. Esse é um fenômeno que atinge toda sociedade ocidental, no Brasil religião é uma questão de opção (Pierucci e Prandi, 1996).

A manutenção e transmissão não dos valores, mas das práticas judaicas foram in- terrompidas ainda na primeira metade do século XX, com a destruição do judaísmo eu- ropeu pelo Nazismo e com a integração judaica na diáspora. Mas o marco inicial desse processo foram as transformações da Europa no século XVIII. É nesse contexto que as academias e seminários rabínicos se tornam os guardiões do saber judaico, e que os ra- binos tomam para si a responsabilidade de reavivar, fortalecer o judaísmo.

Com a intenção de proporcionar uma educação judaica, a família expõe seus fi- lhos a um judaísmo cada vez mais religioso e conservador. Como a transmissão dos

valores judaicos éticos ou religiosos não se dá mais na esfera do privado, essa responsa- bilidade é outorgada à escola ou á sinagoga. O estudo da literatura, da história, da cultu- ra judaica, do idioma hebraico cedeu espaço para o aprendizado da prática religiosa ju- daica, ou seja, de como ser judeu. O que inclui aprender as orações diárias e as leis refe- rentes a cashrut, ou mesmo as leis de comportamento entre meninos e meninas.

Isso se deve, primeiramente, à transformação da família na modernidade. Tema bastante caro aos pensadores das áreas da psicologia e da sociologia. Desde a Revolução Francesa e da elaboração do Código Civil, há um enfraquecimento da autoridade do pai e do espírito de obediência, iniciando-se um processo de individualização. O pensador católico Frédéric Leplay atribui a decadência familiar ao Estado, agente da destruição da autoridade patriarcal que ele entende como um dogma natural. Já Karl Marx atribui a ausência de vida familiar aos efeitos das condições de trabalho. Para esse pensador, as máquinas funcionaram como desagregadores da família, uma vez que seu uso exigia menor força física do trabalhador, podendo-se assim empregar mulheres e crianças na produção capitalista. Parsons aponta que a sociedade moderna ou industrial foi domina- da pela economia e pela racionalidade, o que se opõe ao tradicional constituído na famí- lia (Segalen, 2006). Na sociedade contemporânea, a família como agente transmissor das tradições e costumes desapareceu, ou tende a desaparecer. Nos mais diversos cam- pos da ação social, as pessoas exercem uma escolha individual.

Os ortodoxos estão fazendo o caminho inverso daquele percorrido pelos judeus que vivenciaram a emancipação, que ao se tornarem cidadãos tinham os mesmos direi- tos e obrigações que os não judeus diante do Estado Nacional. No Brasil e nos Estados Unidos isso acontece porque a presença do Estado é tímida na prestação de serviços à

cidadania. Já na Europa, a tradição do Estado provedor de saúde e, sobretudo, de educa- ção, inibiria a importância dos grupos ortodoxos nas diferentes comunidades.