Este trabalho é um passo inicial numa analítica do género, que recorre ao trabalho de Butler sobre a subjectivação do género como epistemologia do género e ao trabalho de Espinosa para pensar a sua ontologia. A minha preocupação foi retratar o modo como esta epistemologia requer uma ontologia baseada na ideia de trânsito e de como a inconformidade às normas de género é o terreno indicado para pensar conceptualmente estes processos de subjectivação. Igualmente, tive a preocu- pação de pensar esta proposta a partir de uma perspectiva queer e trans*, assumidamente pós-identitária, para mostrar como o género pode ser definido a partir de um plano grupal, mas antes a partir de uma singularidade que é balizada pelos limites que o social lhe impõe. Partilho com Donna Haraway (2002), a ideia de que
“Não existe nada no facto de ser fêmea que vincule naturalmente as mulheres. Não existe sequer o estado de ser fêmea, uma categoria em si mesma altamente complexa, construída em contestados discursos cientifico-sexuais e noutras práticas sociais. A consciência do género, raça ou classe é uma conquista que nos é imposta pela terrí- vel experiência histórica das realidades sociais
contraditórias do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo. E quem conta como ‘nós’ na minha própria retórica?” (p. 232).
Este ‘nós’ é sempre e antes de mais, uma experiência de aliança política e não de nada que anteceda a criação deste coletivo, não há uma identidade essencial, há política e as identidades são sempre e desde logo, políticas. Este ‘nós’ são os corpos na rua na luta, o corpo da multitude e não nenhum contrato anterior ou nenhuma identidade primordial.
Para Butler, a filosofia de Espinosa é (2015) como uma ética que
“reconhece que uma vida desejante significa desejar a vida para si, um desejo que implica a produção de condições políticas para a vida e que permita alianças regeneradas que não tenham uma forma final, nas quais o corpo e os corpos, na sua pre- cariedade e promessa, naquilo que até poderia ser chamado da sua ética, se incitem uns aos outros para viver.” (p.89).
Assim este meu projeto analítico implica precisamente um pensar de forma queer e trans* a política do género, os corpos, os desejos na polis. Ligar a teorização contemporânea do género ao trabalho de um polidor de lentes do século XVII implica também recorrer a fantasmas. Estas propostas impli- cam invocar estes passados para nos ajudarem a desbloquear os nossos futuros presos e pendurados na crise do género, quando as teorias, tal como a praxis, devem incitar estes desejos de que Butler fala, expresso na ideia de perseveração na singularidade do conatus de Espinosa e não olhar para o género como uno, para que este ser gente de Lispector no epígrafe possa abrir-se à multitude das gentes.
Referências
• Balzer, Carsten & Hutta, Jan Simon (2012). Transrespect versus
transphobia worldwide - A Comparative Review of the Human- rights Situation of Gender-variant/Trans People. Berlim:
Transgender Europe.
• Beauvoir, Simone de (1975). O Segundo Sexo. Lisboa: Bertrand • Bento, Berenice (2014). Brasil, país do transfemínicidio. Artigos e
resenhas do Centro Latino-Americano em sexualidade e direitos
humanos. link: http://www.clam.org.br/uploads/arquivo/ Transfeminicidio_Berenice_Bento.pdf
• Braidotti, Rosi (2011). Nomadic theory: the portable Rosi Braidotti. New York: Columbia University Press.
• Butler, Judith (1990). Gender trouble: Feminism and the subversion
of identity. New York: Routledge.
• Butler, J. (1992). Bodies that matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge.
• Butler, J. (1997). The psychic life of power: theories on subjection. Stanford: Stanford University Press.
• Butler, J. (2005). Undoing Gender. New York: Routledge.
• Butler, J. (2015). Senses of the subject. New York: Fordham University Press.
• Chauí, Marilena (2006). Espinosa, poder e liberdade. In Atilio Boron (ed.). Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. São Paulo: Universidade de São Paulo.
• Colling, Leandro & Pelúcio, Larissa (2015). Deslocamentos antropofágicos ou de como devoramos Judith Butler. Periódicus, 3, 1-6.
• Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (2007). Mil Planaltos: Capitalismo e esquizofrenia 2. Lisboa: Assírio e Alvim.
• Fanon, Frantz (1967). Black skin, white masks. London: Pluto. • Fausto-Sterling, Anne (2000). Sexing the body: gender politics and
the construction of sexuality. New York: Basic books.
• Gordon, Avery (2008). Ghostly matters: haunting and sociological
imagination. Minneapolis, MN: Minnesota University Press.
• Gramsci, Antonio (1992). Selections from the Prison’s Notebooks. New York: International Publishers.
• Haraway, Donna (2002). O manifesto ciborgue: a ciência, a tecnologia e o feminismo socialista nos finais do século XX. In Ana Gabriela
Macedo (Ed). Género, identidade e desejo: antologia crítica do
feminismo contemporâneo. Lisboa: Cotovia.
• Haritaworn, Jin, Kuntsman, Adi & Posocco, Silvia (2014). Introduction. In Jin Haritaworn, Adi Kuntsman & Silvia Posocco (Eds.) Queer Necropolitics. New York: Routledge.
• Lauretis, Teresa (1987). Technologies of Gender. Bloomington, Indiana: Indiana University Press.
• Lispector, Clarice (2012). Água Viva. Lisboa: Relógio d’Água. • Mbembe, Achille (2003). Necropolitics. Public Culture, 15, 11-40. • Money, John, Hampson, John G. & Hampson, Joan L. (1957).
Imprinting and the Establishment of Gender Role. Archives of
Neurology and Psychiatry, 77, 333-336.
• Muñoz, José E. (1999). Desidentifications: queers of color and the
performance of politics. Minneapolis, MN: Minnesota University
Press.
• Negri, Antonio (2013). Spinoza for our time. New York: Colombia University Press.
• Oliveira, João M. (2013). O rizoma ‘género’: cartografia de três genealogias. E-Cadernos do CES, 15, 3 –54.
• Oliveira, J. M. (2014a). A necropolítica e as sombras na teoria feminista. Ex aequo, 29: 69 - 82
• Oliveira, J. M. (2014b). Hyphenations: the other lives of feminist and queer concepts. Lambda Nordica, 2014, 38-59.
• Porchat, Patricia (2015). Um corpo para Judith Butler. Periodicus, 3, 37-51.
• Platero, Lucas (2014). Trans*sexualidades: Acompañamiento, factores
de salud y recursos educativos. Barcelona: Bellaterra.
• Preciado, B. (2011). Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Revista Estudos Feministas, 19, 11-20.
• Preciado, B. (2008). Testo Yonqui. Madrid: Espasa.
• Puar, Jasbir (2007). Terrorist Assemblages: homonationalism in queer
times. London: Duke University Press.
• Richardson, Diane (2005). Desiring Sameness? The Rise of a Neoliberal Politics of Normalisation. Antipode, 37, 515–535. • Riley, Denise (1988). Am I That Name?”: Feminism and the Category
of “Women” in History. London: Macmillan, 1988.
• Singer, Linda (1993). Erotic Welfare: sexual theory and politics in
• Sousa Santos, B. (2014). Epistemologies of the South: justice against
epistemicide. Boulder, CO: Paradigm Publishers.
• Sousa Santos, Boaventura (2003). Between Prospero and Caliban: Colonialism, post-colonialism and inter-identity. Luso-Brazilian
Review, 34, 9-43.
• Spivak, Gayatri C. (2012). Harlem. In An Aesthetic Education in the
Era of Globalization. Cambridge, MA: Harvard University Press. (p.
399- 428).
• Stryker, Susan (2006). (De)Subjugated Knowledges: an introduction to Transgender studies. In Susan Stryker & Stephen Whittle (Eds.).
The transgender studies reader. New York: Routledge. (pp.1-17)
• Stüttgen, Tim (2014). In a Qu*A*re Time and Place: Post-Slavery
temporalities, Blaxploitation and Sun Ra’s Afrofuturism between intersectionality and heterogeneity. Berlin: B_books.
• Sutherland, Juan Pablo (2009). Nación Marica: Práticas culturales y
critica activista. Santiago de Chile: Ripio Ediciones
• Wittig, Monique (1992). El pensamiento heterosexual. Barcelona: Eguales.
RITA GRAVE, JOÃO MANUEL DE OLIVEIRA E CONCEIÇÃO NOGUEIRA