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“mulher”: tensionando discursos no movimento feminista

cendem a luta contra o sexismo entram em discussão ou em prática. Entendemos que há relações de poder intragênero no feminismo que são produzidas hierarquicamente a partir das intersecções raciais, e que se atualizam em conceitos e práticas desenvolvidos nesse campo de debate intelectual e intervenção social.

A branquitude da categoria

“mulher”: tensionando discursos

no movimento feminista

A diversificação das concepções e práticas políticas que a ótica das mulheres dos grupos subalterniza- dos introduzem no feminismo é resultado de um processo dialético que, se, de um lado, promove a afirmação das mulheres em geral como novos

sujeitos políticos, de outro exige o reconhecimento da diversidade e desigualdades existentes entre essas mesmas mulheres. (Sueli Carneiro, “Mulheres

em Movimento”)

Com o pensamento de intelectuais negras e o constante exercício de visibilização do discurso marginalizado destas mulheres, o feminismo negro vem investigando como mar- cadores sociais atravessam as diversas possibilidades de ser e agir socialmente. Essas produções de saberes e práticas de resistência são um ponto crucial para entendermos e ressig- nificarmos o papel do feminismo nas diversas questões que envolvem os processos de subjetivação das mulheres.

Podemos afirmar que muito raramente as feministas brancas interseccionaram analiticamente raça, sexo/gênero e classe em suas teorias e práticas. Frequentemente há o reconhe- cimento dessas especificidades por parte das mesmas, mas não há um espaço horizontal para tal diálogo dentro de suas produções e agendas, e o movimento crítico ocorre de forma diferente quando entram em pauta as questões raciais. É preciso pensar a não desconstrução da universalização do

ser mulher para feministas brancas, que persiste até os dias

atuais (Haraway, 2004).

Segundo Brah (2006, p. 341), não podemos analisar isolada- mente os problemas que afetam as mulheres, muito menos universalizá-los: “Dentro dessas estruturas de relações sociais não existimos simplesmente como mulheres, mas como categorias diferenciadas”, isto é, os discursos de feminilida- des assumem significados específicos a partir das diferentes trajetórias que atravessam não apenas as questões de gênero, mas de raça, classe, sexualidade, geração, entre outros.

Para tanto, a abordagem interseccional considera a diversi- dade e as diferenças organizadas pelos diversos marcadores sociais para compreender criticamente a produção de desi- gualdades sociais e provocar novas formas de pensar o lugar das diferentes possibilidades de ser sujeito, inclusive acade- micamente. Constitui-se assim um contexto mais abrangente que amplia a visibilidade de identidades e experiências de sujeitos na cena pública; experiências e identidades sociais que se articulam através do complexo cruzamento de diversos marcadores sociais da diferença (Brah, 2006; Crenshaw, 1994). Crenshaw (1994) nos convoca a pensar, pelo conceito de interseccionalidade, a desconstrução de uma perspectiva universalizante da(s) mulher(es) e de estereótipos que são produzidos por concepções dominantes, propondo uma agenda não essencialista que possa mediar as constantes tensões entre as afirmações sobre as múltiplas identidades e a contínua necessidade em se fazer políticas grupais. Brah (2006) propõe compreender a racialização do gênero através da interseccionalidade das diferenças:

Discussões sobre o feminismo e o racismo muitas vezes se centram na opressão das mulheres negras e não exploram como o gênero tanto das mulheres negras como das brancas é construído através da classe e do racismo. Isso significa que a “posição privilegiada” das mulheres brancas em discursos racializados (mesmo quando elas compartilham uma posição de classe com mulheres negras) deixa de ser adequadamente teorizada, e os processos de dominação permanecem invisíveis. (Brah, 2006, p. 351)

Compreender o impacto das diversas discriminações e exclusões sociais que as questões étnico-raciais produzem

é insuficiente. Por meio de novos modos de constatação sobre a pluralidade de subjetivações da mulher, os feminis- mos negro e branco precisam ser “tratados como práticas discursivas não essencialistas e historicamente contingen- tes” (Brah, 2006, p. 358), podendo trabalhar em conjunto mediante articulações políticas e práticas feministas antir- racistas, numa análise conceitual das questões de diferença que servem, de maneira pontual, para determinadas lutas e pautas.

Para que isso aconteça, faz-se necessário localizar a bran- quitude52 do movimento feminista, suas repercussões e construções subjetivas. Partindo de uma perspectiva histó- rica, percebemos a complexidade em (d)enunciar a questão de ser “branca ou branco” nas diversas esferas, sejam elas sociais, políticas, ideológicas, acadêmicas, culturais, e assim por diante. Tal complexidade pode ser entendida a partir da ideia de que pessoas brancas têm de não se reconhecerem ocupando uma posição privilegiada racialmente, o que con- sequentemente (re)produz formas de opressão que se con- solidam pela denúncia de privilégios de outros grupos. Em grande parte, tal problematização é estruturada por femi- nistas negras, devido às opressões por elas vivenciadas, em

52. “A partir da década de 1990, os estudos sobre raça e racismo nos Estados Unidos começam a mudar seu enfoque, e novos olhares sobre o tema começaram a surgir. O movimento de mudança nesses estudos deu-se quando os olhares acadêmicos das ciências sociais e humanas se deslocaram dos “outros” racializados para o centro so- bre o qual foi construída a noção de raça, ou seja, para os brancos. Esses novos en- foques foram chamados de estudos críticos sobre a branquitude (critical whiteness

studies). Apesar de os Estados Unidos serem pioneiros nos estudos sobre branquitu-

de, encontramos produções acadêmicas sobre essa temática na Inglaterra, na África do Sul, na Austrália e no Brasil” (Schucman, 2014, p. 45). No Brasil, os estudos sobre branqueamento e branquitude no campo da psicologia emergem a partir da década de 1990, através de Jurandir Freire Costa, Iray Carone, Maria Aparecida Bento e Edith Pizza (Santos, Schucman, & Martins, 2012).

que apontam a dificuldade de feministas brancas em refletir sobre estruturas de opressão tão profundas e invisibilizadas como o racismo.

Neste sentido, é necessário pensarmos o sujeito branco – neste caso, as feministas brancas – como pertencente a um lugar simbólico que não é estabelecido por questões genéticas, mas por posições e lugares sociais que os sujeitos ocupam em função de seus fenótipos raciais. Racializar a pessoa branca, ou seja, considerar a branquitude como um marcador social do sujeito, que foi ao longo do tempo se consolidando e se constituindo normativamente através da interlocução de privilégios históricos e políticos, é imprescindível para que se entenda a posição sistemática desses sujeitos “no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade”, através de discursos como o da meritocracia, por exemplo. Portanto, para se entender a branquitude, é importante entendermos “de que formas se constroem as estruturas de poder concre- tas em que as desigualdades raciais se ancoram” (Schucman, 2014, p. 56).

A questão aqui exposta não diz respeito apenas a sentimentos preconceituosos que porventura feministas brancas possam experienciar, mas a um movimento que mantém as mulheres brancas ocupando melhores lugares (inclusive no feminismo) em função de seus privilégios raciais, mesmo que não os reconheçam. Para isso, é necessário compreender o que faz com que os dispositivos de proteção da branquitude se man- tenham e legitimem práticas opressoras em relação a outras mulheres, como as feministas negras. A branquitude opera nas relações intragênero como potencial força de poder.

A partir das observações expostas, exploraremos essas ideias trazendo alguns exemplos em que o racismo é (re)produzido em função de uma falta de consciência e não identificação do local de privilégio racial promovido pela branquitude. Em seguida, discutimos os efeitos da invisibilização das intersec- ções gênero e branquitude no feminismo branco, refletindo sobre o lugar das mulheres brancas na luta antirracista.

Para não “dividir o movimento”? A