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A heterogeneidade dos movimentos de luta pela moradia do centro de São Paulo faz coro com a caracterização de Gohn (1991) acerca dos movimentos sociais urbanos. Para ela, os movimentos que emergem da sociedade civil são de composição heterogênea. A homogeneidade existente não pode ser identificada no grupo, mas no tipo de reivindicação pela qual luta. Está claro que a causa dos problemas reside na esfera da produção, todavia, a mobilização em torno do consumo ou da privação do consumo, é um primeiro passo para que se perceba a raiz da desigualdade social e da segregação espacial. Os movimentos de luta pela moradia do centro de São Paulo representam uma resposta não apenas à carência de moradia, mas também ao desemprego, como no caso do MMC que é organizado por ex-sindicalistas desligados dos sindicatos por terem sido excluídos do mercado de trabalho formal. O grande desafio é viabilizar e engendrar nas bases dos movimentos uma autoconsciência coletiva que faça cada indivíduo transcender os problemas imediatos e assumam reivindicações mais amplas. As lideranças, em especial Gegê, abarcam ao menos no discurso essas reivindicações mais amplas: um projeto de transformação da sociedade, de eliminação do regime capitalista, pois para ele não se pode contentar com uma reforma do Estado burguês, qualifica isso como uma ilusão.

O voluntarismo e a espontaneidade são atitudes esperadas de qualquer militante de movimento popular. Todavia, há a tendência de muitos de debruçarem-se sobre seus problemas particulares e privilegiarem seus interesses pessoais imediatos. Citando novamente Gegê: A

visão dos companheiros é mais ou menos assim, você conquistou a moradia, você realizou a sua vida, você realizou o seu sonho. Quando aquela colaboradora dizia que era necessário educar as

bases, denunciava a urgência de libertar o homem do seu individualismo, comparsa da desigualdade social. Renato Boschi (1983), que elaborou uma análise comparativa de seis movimentos populares brasileiros, sustenta que altos níveis de participação não se mantêm

inalterados ao longo do tempo. O envolvimento individual em algum momento é vítima da percepção de que é possível tirar partido de algo além do que se consegue coletivamente. A participação envolve disponibilidade de tempo, o cultivo de certos valores que se oponham à perspectiva utilitarista de curto prazo e não é fácil sublimar o ideal de sociedade sobre a privação e humilhação experimentada quotidianamente.

Na teoria de Gohn (1995), uma diferença entre os movimentos sindicais e os populares é que os primeiros giram em torno de um líder, enquanto estes últimos gravitam ao redor de um núcleo articulador. No caso do MMC, a instauração da posição de colaboradores, além de ser um modo de descentralizar as decisões e democratizá-las, afinal cada ocupação conta com seus colaboradores, pode ser interpretada como um esforço de criar um núcleo articulador. Porém, à maneira dos movimentos sindicalistas personalistas, alguns moradores da Presidente Wilson referiram-se a Gegê como o pai do povo, o que sugere a hipótese da construção de uma lealdade pessoal. Esta hipótese vai de encontro à reclamação da colaboradora da Líbero Badaró de que o MMC se mobilizaria se Gegê fosse preso, mas não se o mesmo ocorresse com qualquer outro companheiro. Os movimentos sindicais da década de 80 definiam-se por serem representativos de um segmento profissional, por lutarem na esfera da produção e por reivindicarem direitos trabalhistas. Em comparação a eles, os movimentos de luta pela moradia do centro de São Paulo guardam significativas diferenças além de denunciar o reflexo de problemas básicos da esfera de produção na esfera de consumo, eles se tornaram canal de expressão de grupos subalternos e excluídos do mercado de trabalho, não importando sua atual ou antiga atividade profissional. Em lugar dos direitos trabalhistas surge a luta pelo direito ao trabalho.

Os estudos de Gohn (1995) conduziram-me à conclusão de que os governos, na maioria dos estados latino-americanos, desempenharam o papel de catalisadores e diluidores dos conflitos sociais. Quando os movimentos sociais atingem certa representatividade e legitimidade

na América Latina em geral são absorvidos ou logo atrelados às estruturas do poder constituído. Foi exatamente isso que ocorreu na administração de Erundina em 1991.

É bastante nítido no MMC o questionamento da ação governamental, a crítica ao governo estatal e o esforço para compreender a engrenagem da globalização. O capitalismo se sofisticou, a exploração se acentuou e a participação política não pode mais se limitar às eleições. Os movimentos populares ampliam os espaços de atuação política, por isso, traduzem-se como a chance dos desprivilegiados de reassumirem o lugar de direito na tomada de decisões.

A questão da igualdade, liberdade e democracia são colocadas pelos movimentos sociais, principalmente a questão da igualdade. Estes se constituem como lugar privilegiado onde a noção abstrata de igualdade pode ser referida a uma experiência concreta de vida. Os indivíduos mais diversos tornam-se iguais na medida em que sofrem as mesmas carências. Essa vivência em comunidade, isto é, da coletividade de iguais criada pela ação conjunta de todos, implica na passagem da pessoa para o plano público e não privado. Para Durham (1984), esse reconhecimento se inicia dentro do grupo, no qual há a valorização da participação de todos, onde todos devem falar, opinar, decidir, enfim acontece um processo de constituição do sujeito da pessoa na esfera pública.

Tilman Evers (1984) reconhece em seu trabalho esse caráter social nos movimentos, isso por que cria-se uma nova prática coletiva que passa a fazer parte integrante da vida pessoal e social que fundamenta novas representações. Como, no caso, da cidadania que é colocada na dimensão de direitos. Para Durham (1984), a passagem do reconhecimento da carência para a formulação da reivindicação é mediada pela afirmação de um direito, que caracteriza como “amplo processo de revisão e redefinição do espaço de cidadania”. Atores se fazendo na luta e não agentes como produtos da estrutura. Há, então, a valorização da cultura em substituto à

ideologia, mostrando seu entrelaçamento com a noção de política. Temos aqui, no mesmo sentido das reflexões de Evers (1984), a valorização de uma microcultura constituída de pequenos espaços onde o poder não é considerado o elemento fundamental de transformação social.

Os movimentos sociais ligados ao urbano constituem observatório privilegiado para o estudo dos processos de constituição da cidade enquanto espaço de construção da identidade do sujeito citadino/ cidadão em relação às representações do espaço urbano. Coloca-se a questão da luta pela moradia e o direito à cidade (Lefevre,1968), enquanto modalidade de inserção dos atores sociais nas práticas urbanas.

Para Jacobi (1989) os movimentos têm tornado manifesta uma identidade que se concretiza a partir de uma construção coletiva de uma noção de direitos, que, relacionada com a ampliação do espaço da cidadania, cristaliza o seu significado não somente em termos de conquistas materiais. Assim como já colocado para Durham (1994), o que está em curso é um processo coletivo de construção da cidadania em que é pressuposto a participação política e fundamento de avaliação da legitimidade do poder. Estamos de acordo com o debate proposto por Francisco de Oliveira43 que nos delega a tarefa de decifrarmos os sentidos da atualidade sem perdemos nossas referências e buscarmos as conexões (os elos perdidos) que permitem atualizar a tarefa crítica de recolocar o enigma na política.

Esta questão está longe de ser simples. É na diferença de dois momentos que temos a medida das complicações atuais. A articulação entre esses dois momentos se dá com a questão da constituição das classes e dos sujeitos políticos. Neste ponto, encontramos a questão da constituição do espaço da política, o movimento de representação, de reconhecimento. Para tanto,

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OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista ; O ornitorrinco; prefácio, Roberto Schwarz

é necessária a constituição de um equivalente geral que permite a construção de um discurso identificador de classe e a definição, em disputa, da medida dessa mesma relação. O “elo perdido” referia - se às mediações políticas, que não chegaram a se completar. Trata - se das incompletudes do contrato mercantil que não se generaliza como regra da sociabilidade de classe. Significa a impossibilidade da própria constituição das classes como identidade e representação. Ainda que estejamos vivendo um amplo processo de mudanças, a existência de Movimentos de luta pela moradia nos mostra que no cenário atual os processos de vulnerabilidade e descidadanização44 continuam em curso.