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Conclusão: um epígono da ciência moderna

1 SOB A ÉGIDE DA RAZÃO:A TEORIA NEORREALISTA DE KENNETH

1.4 Conclusão: um epígono da ciência moderna

Nesse capítulo apresentamos a teoria neorrealista elaborada por Kenneth Waltz, compreendida como uma tentativa de formalizar o discurso realista, opondo-se ao viés pluralista dos discursos clássicos que assumem a interdependência do ambiente internacional, implicada na inviabilidade de se isolar tal domínio das demais variáveis (como economia e política nacionais). Logo, ao contrário das versões precedentes, Waltz esclareceu seu intuito em desenvolver uma noção de estrutura política internacional, a qual possibilitasse pensar as RI como uma matéria ―that could be studied in its own right‖ (WALTZ, informação verbal).

Nesse sentido, o autor teve de realizar algumas escolhas metodológicas que adequassem sua teoria a tal propósito, deparando-se, portanto, com os trabalhos de Adam Smith e seus seguidores. Esses que, influenciados pelo modelo newtoniano, e por princípios do jusnaturalismo e da filosofia estoica, formularam o projeto disciplinar das ciências econômicas. Projeto, esse, alcançado pela identificação intelectual da cadeia invisível que ligaria as ações humanas, conduzindo-as a uma sociedade economicamente harmônica.

De forma semelhante, Waltz enxergou nas estratégias explicativas das ciências naturais, (vinculadas à identificação de causas e à construção de explanações dedutivo- nomolóticas) um caminho metódico eficaz para se isolar o domínio da PI, e, assim, torná-la um campo de estudo autônomo com relação às demais áreas das ciências sociais. Nesse sentido, a lógica metodológica prescrita no neorrealismo sustentou a definição da estrutura internacional enquanto variável independente, cujo potencial explanatório adviria de sua capacidade em reduzir a diversidade dos condicionantes sociais numa lógica causal, capaz de desvelar os comportamentos e resultados sincrônicos do sistema. Como aquele autor aponta:

―in order to get beyond ―the facts of observation‖, as we wish irresistibly to do, we must grapple with the problem of explanation” (WALTZ, 1979, p.6 grifo nosso).

Todavia, o autor pouco disserta sobre em que consistiria esse exercício, ―a explicação‖. Não obstante, a partir do exposto nesse capítulo e em conformidade com outros analistas (NEUFELD, 1993; WENDT, 1999) podemos sugerir que para Waltz a explicação seria uma atividade debruçada sobre as causalidades, e não sobre a constituição dos elementos analisados. Em outras palavras, as estratégias explicativas buscariam responder aos porquês da dinâmica externa – por que determinados comportamentos são prováveis em dadas circunstâncias? – ao invés de compreender como foram construídas as condições sociais que tornaram tais práticas possíveis (DOTY, 1993).

De forma geral, os discursos explicativos raramente problematizam a natureza dos atores ou o ambiente de significados, responsáveis pelas ações internacionais. Como aponta Neufeld (1993), ao passo que Waltz não se detém em enunciar claramente o escopo de sua explicação, ao menos deixa explícito o que sua estratégia heurística não seria: um exercício interpretativo ou hermenêutico. Ou seja, o objetivo explanatório do neorrealismo não visa iluminar o motivo dos atores numa ação, muito embora termine por edificar-se sob as premissas vinculadas a essas questões. Como argumenta Keohane, o realismo estrutural de Waltz ―lies less in his initiation of a new line of theoretical inquiry or speculation than in his attempt to systematize political realism into a rigorous, deductive theory of international politics‖ (KEOHANE, 1986, p.15).

Haveria nessa conduta metodológica traços da filosofia naturalista45. Isso é, a premissa de que haveria uma continuidade entre as investigações humanísticas e naturais, uma vez que tais campos não contariam com uma distinção nítida de modelos, por empreenderem uma mesma acepção de ciência, em que a epistemologia deveria, ao menos, ser informada pelos resultados de investigações empírico-científicas. Ademais, àquela influência naturalista de Waltz, somam-se componentes cartesianos. Isto é, a opção epistemológica prescrita no neorrealismo encarna o valor do mundo moderno: subscrito pela ação privilegiada da razão humana (aqui referida como faculdade cognitiva) sobre as intempéries da natureza. Assim, conforme as propostas do movimento filosófico iluminista, a acepção filosófica de Waltz

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De acordo com o postulado balconiano da una scientia universalis, a estrutura da ciência estaria voltada à identificação de uma lógica unívoca, capaz de ligar os primeiros princípios, aos enunciados observáveis. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 22). O grau de universalidade dessa lógica formal tornaria, então, as ciências equivalentes.

parece vincular-se à inserção de métodos racionais na apreensão intelectual dos problemas da vida social e do mundo natural (TOULMIN, 1992).

Logo, o neorrealismo engajou-se na produção científica como empreendimento formal, na qual a racionalidade técnica deveria despojar qualquer julgamento valorativo. Por essa perspectiva, ―scientific discourse cannot critically examine the meaning structures at work in and accounting for scientists‘ mutual recognition of the concepts they deploy. Scientific discourse can speak decisively only to the efficiency of means‖ (ASHLEY, 1986. p. 284).

Retrocedendo no tempo, esse processo de formalização do discurso científico inaugurou-se no campo da epistemologia pelos trabalhos de Descartes46, que promoveram o estilo theory-centered para os estudos humanísticos. Nesse sentido, os estilos do campo de estudo da ética, ou da história foram marginalizados por operarem com um tipo de racionalidade científica diversa. Assim, com a ciência moderna, as preocupações mantidas pela renascença humanista são abandonadas pela negação de quatro formas diferentes de conhecimento prático47: o conhecimento oral; o particular; o local e o transitório (TOULMIN, 1992).

Conjuntamente, tais mudanças expressaram uma transformação histórica no modelo de ciência, pela qual a filosofia prática (orientada a casos temporal e localmente situados) redireciona-se a fim de alcançar uma concepção teórica da filosofia (TOULMIN, 1992). Embora antigas, essas modificações estenderam-se a muitos dos modelos de pesquisa humanísticas, vigentes ainda hoje. Esses que, desde então, passaram a privilegiar o uso do raciocínio formalizado expresso nos métodos abstratos e permanentes (comum aos campos,

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Cf. DESCARTES, René. Discurso do Método. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2006.

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Dessa forma, os valores científicos impulsionados com a modernidade, limitaram a noção de ‗racionalidade‘ aos argumentos teóricos que atingissem uma certeza quase geométrica, privilegiando os modelos da física, comparativamente aos demais, preteridos de valorização cognitiva. Assim, com o advento das reflexões de Descartes, a retórica deixa de ser reconhecida como um campo legítimo da filosofia por fundar-se em argumentos apoiados na percepção humana. Afinal, a partir da tradição da filosofia moderna, o conhecimento ―concentrated on formal analysis of chains of written statements, rather than on the circunstancial merits and defects of persuasive utterances. Within that tradition formal logical was in, rhetoric was out‖ (TOULMIN, 1992, p. 31). Ademais, o próprio referencial da filosofia transforma-se, deixando de pautar-se em reflexões sobre casos particulares da vida humana, para adotar o plano abstrato dos problemas gerais. Outra alteração similar relacionou-se ao caráter local dos estudos históricos, etnogŕaficos ou geográficos do século XVI, isso porque ―the demands of rationality impose on philosophy a need to seek out abstract, general ideas and principles, by which particulars can be connected together‖ (Idem, p.32). Assim, identificar os princípios universais torna-se atividade privilegiada frente ao estudo da diversidade das idiossincrasias locais. Portanto, paralelamente, o escopo temporal dos objetos de estudo passou a focalizar os elementos intemporais, opondo-se às descobertas de fatores transitórios, ou logo, da própria história como processo.

sejam eles naturais ou sociais, e às épocas, quais forem) com intuito de derivarem soluções gerais de problemas universais.

Concernentes a esse cenário, os pesquisadores das RI, e especialmente aqueles sob a tradição intelectual norte-americana, como Waltz, procuraram produzir reflexões segundo critérios metódicos pautados na busca de um saber explanatório, fundado em inferências lógicas generalizantes. Tais características relacionadas ao pressuposto de objetividade são problematizadas no último capítulo, quando abordamos as contradições que esses métodos oferecem às teorias humanistas, especialmente aos conceitos relacionados aos atores políticos do neorrealismo, que ao serem enquadrados na lógica de estabilidade (objetivação, abstração e categorização) das ciências naturais, tornam-se objetos espistêmicos, mas perdem seu predicado animado, visto que reificados.

Nesse sentido, a exposição da teoria neorrealista realizada neste capítulo justifica-se pelo auxílio na identificação e na compreensão desses valores científicos que subscrevem a produção dos conceitos de Waltz. Valores expressos tanto por preferências epistemológicas (racionalismo) como metodológicas (positivismo), e desdobrados num modo particular de apreender a PI. Assim, obtemos o entedimento necessário para as análises críticas posteriores, associado à noção de que a teoria neorrealista é construída segundo uma perspectiva específica de ciência, que, antes de ser uma acepção geral, inscreve-se num movimento histórico particular das ciências sociais moderna, com desenvolvimento especial na academia norte-americana.

Todavia, a difusão epistêmica do racionalismo, que sustenta a teoria neorrealista, alcançou extensão bastante ampla, a ponto de muitos creem-na universal, gerando riscos de um possível dogmatismo teórico e metodológico nas pesquisas sobre as RI. Por isso, após o objetivo interpretativo desse capítulo, ressaltamos uma segunda natureza propositiva da dissertação orientada para a desconstrução do caráter transcendental dos postulados neorrealistas, em especial daqueles referentes à substância do sujeito político internacional, enquanto uma subjetividade instrumental. Assim, após identificar os valores científicos, e as bases conceituais que amparam a produção de Waltz, estamos aptos a desfazer aquela confusão universalista, captando o enraizamento social e histórico implicado na teoria neorrealista, conforme se propõe o estudo do capítulo a seguir. Afinal, a reatualização e o impulso do legado racionalista moderno se efetivaram por meio de um cenário particular, e contemporâneo a Waltz, qual seja o ambiente social, cultural e político norte-americano. Segue-se, portanto, uma análise sociológica acerca desses fundamentos do neorrealismo.

2 SIGNOS EM DESMONTE: SOBRE OS FUNDAMENTOS SOCIAIS E