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1 SOB A ÉGIDE DA RAZÃO:A TEORIA NEORREALISTA DE KENNETH

1.3 Núcleo ontológico: o modelo posicional

1.3.2 Unidades Interativas: uma perspectiva estadocêntrica

1.3.2.1 O modelo do ator racional

Na perspectiva racionalista, a compreensão da agência intencional resume-se pela equação: desejo mais crenças geram comportamento. Nesse quadro, o primeiro elemento relaciona-se com os interesses e as preferência do ator; já o segundo reflete o conjunto de ideias e expectativas desse mesmo agente sobre o ambiente. Para a abordagem racionalista, cada um desses determinantes constitui uma esfera independente, de forma que a formação dos interesses está desconectada da dimensão ideacional e social do ator, caracterizando-se por preocupações materiais e individualistas.

Dessa forma, a relação entre os desejos e as crenças realiza-se por meio de um raciocínio instrumental, de modo que tais elementos não exercem função constitutiva entre si. Assim, enquanto os interesses atuam como os motores ativos da ação, as ideias operam passivamente como meios para a realização dos desejos construídos exogenamente (WENDT, 1999). A racionalidade instrumental caracteriza, pois, o potencial cognitivo capaz de articular eficazmente os interesses particulares com as expectativas sobre o ambiente, de modo a maximizar as chances de ganho pessoal.

Tal descrição instrumental, quando confrontada ao conceito intersubjetivo compõe as antípodas de um dos debates mais importantes do campo da teoria social. Afinal, desde 1980 aos dias atuais, a problemática da racionalidade (se cognitivo-instrumental ou intersubjetiva) permanece como alvo de contestação e discussão no campo. Na área das RI, o discurso neorrealista, como grande parte das teorias tradicionais, apoiam-se naquele primeiro entendimento da razão: uma faculdade cognitiva voltada ao cálculo instrumental dos custos e benefícios envolvidos no processo decisório ou de formulação política. Acentua-se, pois, a opção do neorrealismo por uma fundamentação teórica racionalista e pelo método positivista, os quais se associam a esse entendimento singular do comportamento social.

Portanto, a busca pelo rigor científico implicou a teorização de um tipo particular de subjetividade (modo de ser e agir dos atores), geralmente definido pelo modelo do ator racional, tal qual descrito, originalmente, pela teoria econômica neoclássica. A importação da noção de racionalidade instrumental para o campo das ciências sociais realizou-se

majoritariamente por meio da teoria da escolha racional e representou a introdução nos estudos humanísticos de um modelo de abstração matemático e de um determinismo preditivo.

Os contornos centrais da chamada teoria da escolha racional foram demarcados por autores como Kenneth Arrow, Anthony Downs, William Riker, James Buchaman, Gordon Tullock e Mancur Olson. Influenciados pela teoria econômica e pela lógica definida aos consumidores, tais autores formularam um tipo de ação social sublinhada por postulados comportamentais específicos, cuja carga normativa se aproxima da atitude geral de maximização de interesses particulares. Essa vertente buscou edificar uma atitude racional perante as circunstâncias de decisão social, de modo que, numa situação de escolha, a única motriz da ação individual seriam os interesses e desejos pessoais do ator42.

Com isso, argumenta-se que a conduta política seria o produto da cognição individual e instrumental capaz de relacionar eficazmente recursos escassos com fins definidos autonomamente. A hipótese do interesse egoísta torna-se um suporte previsível e estável para edificar uma teoria objetiva da racionalidade sociopolítica. Isso porque o vetor solipsista catalisa a simplificação da ação social estabelecendo elementos comportamentais fixos, aumentando a possibilidade de antecipação das condutas observadas.

Nesse sentido, destacamos o modelo do ator racional enquanto produto de uma posição científica específica, bastante afim à postura metódica de Kenneth Waltz. O entendimento acerca de uma realidade positivada, da qual se utiliza apenas os parâmetros substantivos, compatibiliza-se com o engajamento metodológico de Waltz vinculado à depuração da realidade empírica. Nesse sentido, Waltz identifica no comportamento instrumental e racional, exposto pela teoria da escolha racional, os elementos considerados fundamentais para a explicação teórica elegante da conduta estatal.

Para compreender os traços do modelo racional, e o subsequente desenvolvimento pelo neorrealismo, devemos ir além do reconhecido legado utilitarista. O movimento de constituição da noção da racionalidade instrumental, ou econômica, remete-se à filosofia política do pensamento liberal no século XVII, e incorpora as caracterizações subjetivas de autores como Hobbes e Adam Smith (CARVALHO, 2006). Para eles, o indivíduo, experimentando uma ânsia incontrolável de desejos num contexto de escassez (como, supostamente, caracterizar-se-ia o cenário internacional) passa a adotar uma postura de

42 Autores como Olson, Coleman, Hechter, Elster e Reis desenvolvem a ideia cognitivo-instrumental da

satisfação pessoal por meio do cálculo racional das consequências de cada ação para seu ganho particular.

Consoante ao apontado, o neorrealismo compreende o Estado como uma máquina de maximização capaz de avaliar43 os dados de oportunidades dispostos no processo de interação, e a partir daí optar pelos fins mais eficazes para atingir seus objetivos definidos de forma autônoma. A capacidade do ator racional de se autogovernar em relação aos interesses existentes no processo interativo expressa uma noção de liberdade, segundo a qual o indivíduo não sofre influência das dimensões fora de si para a elaboração de seus interesses, muito embora, segundo Waltz, no momento das escolhas, as pressões estruturais sublinhem as ações.

O comportamento racional lida com fins egoístas visando, de forma abreviada, à segurança e ao poder particular. Nessa perspectiva, os agentes definem o sentido de suas ações considerando apenas suas consequências correlatas, para si próprios. Assim, a definição do ator estatal enquanto uma entidade racional implica, resumidamente, em dois pontos chave: primeiro, o Estado é dotado de uma reflexão consciente, calculada e constante dos custos e benefícios das ações, demonstrando uma capacidade de controlar, e conhecer, os fatos e as regras do jogo envolvidos na interação; em segundo lugar, os agentes tendem a perceber o mundo, e os outros atores, enquanto mecanismos operacionais para a realização de seus interesses pessoais, refletindo, assim, seu caráter instrumental (CARVALHO, 2006). Tais características espelham, ainda, uma condição anterior referente aos processos de individualização submetidos a uma teleologia social competitiva. A teoria da ação que se desdobra desse contexto funda-se na noção de competição como modo de interação essencial, traduzindo, filosoficamente, uma noção oportunista do homem, e uma percepção hobbesiana do mundo. Como veremos no último capítulo, Waltz faz uso da noção de ator racional estratégico, em oposição à formulação paramétrica44, conforme exposto pela teoria dos jogos. Para essa corrente teórica, nas relações competitivas a consideração do Outro fica restrita à consciência do atrelamento mútuo das ações racionais entre os jogadores, de modo que estes,

43 Dentro do próprio campo da escolha racional, encontramos posição contrária à ideia de um cálculo racional

preciso por parte dos atores. Esta postura defende a proposição de uma racionalidade limitada (bounded rationality) devido ao aparato de informação incompleta que os indivíduos possuem. J. March e H. Simon expõem essa perspectiva na obra ―Teoria das Organizações‖ (1979).

44 Basicamente, num sistema interativo, a ação pressupõe o envolvimento do ator num ambiente em que os

objetivos e ações dos outros atores influem sobre suas condutas e decisões. Todavia o ambiente paramétrico representaria a situação contrária, i.e, àquela em que o ator poderia se despojar dessas variáveis, considerando os demais atores como constantes (ou como parâmetros). Assim, o sucesso de suas decisões dependeria apenas de seu controle sobre as informações, sem a consideração direta das decisões dos demais agentes.

nos termos da atitude solipsista, visariam balancear as expectativas de comportamento dos demais participantes (VON NEUMANN; MORGENSTERN, 2004).

Pelo olhar da teoria dos jogos, os agentes racionais estão envoltos por influências e restrições conjunturais, advindas da estrutura de resultados possíveis. As decisões de cada ator estão conectadas à dos demais, criando uma causalidade geral, da qual podem derivar equilíbrios distintos. No caso do realismo estrutural, seus atores estariam inseridos espontaneamente num ambiente competitivo, cuja natureza homogênea e estratégica impede um equilíbrio social otimizado. Ou seja, supõe-se que as unidades interativas compartilham um conhecimento comum de racionalidade, que, somado à proposição do alinhamento de crenças, produziria a expectativa negativa de uma conduta instrumental geral, reforçando a dificuldade de compatibilização das vontades e, por consequência, de cooperação. Em termos sociológicos, o neorrealismo aponta um tipo de ação sistemicamente integrada, isto é, realizada de forma objetivada, em que os elementos da relação se entendem como meio para alcançar seus fins privados.

Cabe retomarmos, então, o uso de uma concepção pré-social da racionalidade, que abstrai a formação identitária realizada pela relação entre os componentes da comunidade internacional. Nesses termos, o fundamento das ações políticas internacionais edifica-se pela articulação entre a utilidade pessoal e o pensamento estratégico dos agentes (mesmo sendo eles coletividades). Assim, tais modelos não exploram, ou problematizam as preferências e interesses dos Estados, cujo processo de constituição apresenta-se estável, sendo gerados por uma carga normativa privada: o interesse na segurança.

Estabelece-se, portanto, um ciclo de reforço entre a estrutura anárquica e a ação instrumental. Captamos nesse atrelamento uma das propriedades normativas do realismo estrutural, voltada ao intuito de sistematizar uma autorregulação social para a política internacional. Nesse sentido, a construção neorrealista estabelece uma premissa fundamental (o interesse pela sobrevivência e a condição anárquica), integrada a um mecanismo geral de restabelecimento espontâneo do equilíbrio sistêmico (resultado do comportamento cognitivo- instrumental geral). E, portanto, nos desenvolvimentos de Waltz, o equilíbrio de poder passa a ser uma propriedade comportamental do sistema e uma lógica inerente e automática do sistema interestatal.

Por fim, percebemos como as categorias explanatórias fundamentais ao neorrealismo – como a anarquia, a lógica da autoajuda, e o equilíbrio de poder – estão intrinsecamente associadas à definição do Estado como subjetividade transcendental, e individualista. Como

conclui Ashley, o neorrealismo trairia, dessa forma, seu propósito de combater o atomismo lógico dos realistas clássicos, afinal, ―from start to finish, Waltz‘s is an atomist conception of the international system‖ (ASHLEY, 1986, p.288). Aponta-se, pois, a importância dessa análise acerca das premissas do ator estatal, as quais, embora geralmente pouco refletidas, geram efeitos sobre a esfera da socialização, e sobre a própria imagem da política internacional, conforme teorizado por Waltz. Voltaremos a esse tópico, no último capítulo, quando problematizamos esses postulados suprarreferidos com suporte do conteúdo ulterior.