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A figura do frade-escritor é muito comum nos séculos XVII e XVIII, pelo que Frei Lucas tem sido mais vezes julgado pelo grupo de que faz parte e pelo gosto do tempo em que viveu do que propriamente pela sua produção literária, circunstância ajuda uma vez mais a comprovar a necessidade urgente de estudo dos autores dos séculos em causa e da edição das respectivas obras.

Frei Lucas viveu durante oito décadas e grande parte do seu tempo foi dedicado à escrita, constituindo, por isso mesmo, um caso a merecer investigação particular, na medida em que os textos produzidos constituem uma excelente amostragem das formas de circulação do manuscrito e do impresso em pleno século XVII, permitindo salientar a vitalidade deste último tipo de circulação textual. E se hoje as obras religiosas não oferecem qualquer dificuldade quanto à atribuição da autoria, o mesmo não se poderá dizer da sua produção profana, à excepção do Serão Político que assinou com um anagrama do seu próprio nome, facilmente identificável. Os textos jocosos assinados com pseudónimos vários e até, por vezes, absurdos aos nossos olhos de hoje, circularam efectivamente manuscritos, dando origem a várias versões que se encontram dispersas pelas secções de reservados das nossas Bibliotecas. Na medida em que muitos deles se encontram editados no Anatomico Jocoso, muitos estudiosos acabaram por atribuir, erradamente, a totalidade dos textos a Frei Lucas.

Com o perfil bio-bibliográfico que traçámos, pretendemos dar a conhecer uma personagem literária deveras interessante, cuja pena foi capaz de quantidade e variedade dignas de admiração. Chega mesmo a causar estranheza, aos olhos do leitor de hoje, mas não dos seus contemporâneos, que tenha sido o mesmo indivíduo a escrever algumas das cartas freiráticas que referimos e, por exemplo, a Estrella Dominica. Ou,

139 então, que o mesmo Frei Lucas, membro-fundador da Academia Real de História, cronista da sua Ordem, se dedicasse à escrita caricatural que encontrámos em vários textos. Se enquadrarmos, contudo, esta produção nas diversas faces do «Barroco», tal estranheza quase desaparece e Frei Lucas torna-se um exemplo mais semelhante a outros ligeiramente anteriores como Frei António das Chagas ou a muitos dos poetas frades que pululam nos nossos cancioneiros barrocos e que continuam por estudar nas suas diferentes dimensões.

Apesar das atitudes irreverentes de Frei Lucas, não poderemos esquecer que a pertença a uma ordem religiosa lhe impunha alguma contenção nas obras assumidas com estatuto autoral. O dominicano sabia que ser autor de novelas ou de textos jocosos, onde proliferavam temas pouco recomendáveis como a sexualidade ou as práticas fingidas de religiosidade, não passaria indiferente na sociedade coeva, pelo que se escondeu sob a pseudonímia, embora a dimensão da utilitas nunca esteja verdadeiramente ausente dos textos produzidos.

A leitura dos prólogos de várias obras permitiu-nos tirar algumas conclusões sobre o Autor e a forma como se relacionava com o seu tempo, nomeadamente a aceitação ou a transgressão das convenções literárias e sociais da época. Assim, assistimos a diferentes posturas consoante a índole da obra. Estava Frei Lucas consciente da opinião corrente de que as novelas representavam um perigo espiritual, mas, ao contrário do que era comum na época, não tenta convencer o leitor da utilidade do seu exemplo, ainda que no quadro da legitimação da leitura de textos dessa natureza como entretenimento, acabe sempre por estar presente a dimensão de alguma «utilitas», não no quadro da exemplaridade, mas na moldura da possibilidade de leitura de tipos de obras de natureza diversa. Assim, no Serão Político, privilegia o divertimento em detrimento da utilidade veiculada pelo exemplo. Já na Estrella Dominica rejeita a

140 escrita que não tenha por principal objectivo o ensinamento, comparando-a a uma árvore que não dá mais do que folhagem, pelo que, apesar de difícil, deve o escritor «ajuntar o divertimento e o ensino, a deleitação e o exemplo»379. Comum a todos os textos é a consciência que o Autor demonstra em relação ao esforço dispendido no seu trabalho e do quanto a crítica poderia ser implacável, pelo que põe, muitas vezes, em causa a utilidade do prólogo e a importância do leitor, subvertendo, nos moldes «barrocos», a importância de tais elementos paratextuais, atitude que, no limite, se insere na visão do mundo como um palco em que a verdade e a aparência se confundem380.

Tentámos ao longo deste trabalho sublinhar a erudição do Autor, demonstrada nos mais diferentes textos, e também a importância dada à utilitas e ao deleite, por outro lado, foi nosso propósito mostrar a sua capacidade transgressora, exemplificada nos elementos paratextuais e também nos textos jocosos. Com muita pena nossa, não foi possível aprofundar a análise de muitos dos textos utilizados, nem recorrer a outros cuja autoria precisa de confirmação.

Para concluir, utilizamos as palavras do próprio Autor, «Eu escrevo a apontar o muyto que se pode póde escrever»381, pois uma produção tão vasta, dispersa e com questões autorais a resolver necessitará de uma investigação mais aprofundada e demorada a fazer posteriormente, de forma a tornar mais conhecido uma parte do nosso património literário que contempla ainda muitos textos por editar e muitos autores por estudar.

379 «Ao Leitor», in Estrella Novamente descuberta no Ceo da Igreja. Historia Panegyrica ornada com

todo o género de erudiçaõ Divina e humana. II Tomo. Lisboa. Na Officina de Real Deslandesiana,

MDCCXIII

380 Fernando RODRIGUEZ de la FLOR, Era melancólica. Figuras del Imaginário barroco, Barcelona,

José J. de Olañeta e Ed. UIB, 2007.

381 «Ao Leitor», in Estrella Dominica, Novamente descuberta no Ceo da Igreja. Historia Panegyrica

ornada com todo o género deerudiçaõ Divina e humana. II Tomo. Lisboa. Na Officina de Real

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