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O Serão Político afigura-se-nos como uma obra típica da época em que foi escrita, pelo que desenvolve vários temas que reflectem a forma mentis do homem barroco.

De todas personagens, Ricardo é a que melhor encarna a instabilidade, de que será espelho a sua constante mudança. Falamos aqui de mudança nos sentimentos que facilmente trocam de objecto e também de mudança no espaço físico, pois, esta personagem faz um longo percurso, que, geralmente, junta a busca de algo e a fuga de alguém. É uma espécie de homo viator, cujo caminho trilhado é, acima de tudo, um processo de aprendizagem. Assim, depois de se perder de amores, cometer vários delitos, acabará por desenganar-se da vida, acabando-a na Serra de Sintra. As cenas de violência sucedem-se. Não faltam narrações de raptos, de homicídios, e tentativas de violação. No entanto, todas estas acções são aceites com alguma ligeireza. O gosto pelo assombroso, particularmente associado à morte é muito explorado. O autor tenta cativar a atenção do leitor através do insólito: a morte presumida de Periandra, a visão nocturna do seu caixão a ser pilhado, o inesperado reencontro com Ricardo no mosteiro; a morte de Dorotea, cujo corpo foi, apesar dos «Catholicos brados», embalsamado e serviu de companhia a Cosmo que, após treze dias de silêncio, haveria de ser encontrado «entre os

69 defuntos braços do já medonho cadáver»188; a sucessão de exemplos da antiguidade que relatam verdadeiras atrocidades cometidas sobre cadáveres, como o caso de Cypselo Corinthio que mesmo depois de morta a esposa continuou «logrando nelle libidinosamente aquellas acçoens», ou a barbaridade dos egípcios que usufruíam «lascivamente dos cadaveres das mulheres», pelo que foi decretado que os corpos só fossem entregues passados quatro dias «para que a corrupção lhe desenganasse o desejo, ou o asco lhe servisse de castigo»189.

O materialismo das personagens reflecte-se em cenas de violação de sepulturas em busca de valores190, no suborno de um padre191 e de um juiz192, nas fugas em que não são esquecidas as jóias, na sedução exercida pelos dotes.

A instabilidade moral e afectiva reflecte-se na prática do incesto, cometido primeiro de forma consciente e depois de forma consciente, e no adultério.

A honra feminina, facilmente perdida, é recuperável através da morte, do casamento ou da vida religiosa. Assim, a clausura é vista como um refúgio, voluntário ou involuntário, que no entanto é sujeito a violações. Felícia, cometido o incesto, entra voluntariamente no mosteiro, mas, logo de seguida arrependida, marca um novo encontro com Ricardo, que a observa a autoflagelar-se seminua diante de um crucifixo, cena onde se mistura erotismo e ascetismo.

O casamento é visto com pouca simpatia, pois é considerado uma «voluntária escolha de render a liberdade aos apertados grilhoens do matrimónio, que nem o ser de ouro lhe tira talvez o peso»193, apesar de a obra terminar com várias uniões felizes.

188 Serão Político, pp. 232-233. 189 Serão Político, p. 235.

190 «[…] porque cubiçosos os escravos, intentarão fazer preza na colcha, e em algumas peças ricas com

que havia fama me enterrarão; que se a cubiça perdoàra aos sepultados, mais quieto nacèra o ouro nas entranhas da terra», Serão Político, p. 56.

191 «Contou meu pay ao Parrocho o sucesso, calou-o a amizade, ou o suborno», Serão Politico, p.56 192 «Com esta informação, e com huma moeda (que foy a mais qualificada) que meti na mão ao Juiz»,

Serão Político, p. 101.

70 O mundo é, muitas vezes encarado como ilusório, onde nem tudo é o que parece. Acabam algumas personagens por receber a lição de desengano e adaptar-se às circunstâncias que a vida lhes impõe: Carlos e Eustóquia tornam-se ermitas, Leonardo e Damiana resignam-se à vida religiosa.

O recurso ao disfarce é um tema recorrente ao longo desta obra, pelo que, embora já tenha sido referido no momento em que de forma sucinta apresentámos cada um dos serões, optámos por tratá-lo em separado. Antes de mais, não podemos deixar de referir o gosto da sociedade barroca pelo disfarce e pela metamorfose. O disfarce é um estratagema que permite a adopção de comportamentos incompatíveis com a condição da personagem (estatuto social, sexo, estado), possibilitando, assim, a fuga às normas sociais vigentes.

Comecemos pela abordagem do primeiro serão, e mais propriamente da novela

Irmãos Penitentes. O universo diegético desta novela mergulha personagens e leitores

num espaço algures entre a ilusão e a realidade. São constantes as aparências enganadoras, os disfarces e as situações ambíguas.

Periandra é personagem que mais vezes recorre ao disfarce e/ou194 metamorfose. Primeiro é dada como morta, quando na verdade estava escondida num convento e onde adopta «o fingido nome de Polycarpa»; depois, disfarça-se de homem e para ir ao encontro de Ricardo, por fim, muda o seu nome para Eustóquia e segue a vida eremita.

Carlos apresenta os infortúnios da sua vida como consequência da dissimulação. Berarda, fazendo-se passar por Faustina, chama-o aos seus aposentos. Descoberta a verdadeira identidade e alarmada a casa, Carlos fere o esposo de Berarda e, na fuga,

194 Optámos por esta designação “e/ou”, pois, se aparentemente Periandra sofre uma metamorfose interior

e escolhe o caminho da penitência, numa leitura mais profunda, como atrás referimos, a vida eremita poderá ser vista como um embuste, uma forma de manter o relacionamento proibido. Não podemos esquecer que, por mais de uma vez, a vida religiosa é vista como um escape temporário apenas.

71 mais uma vez é alvo da dissimulação de Berarda que o acompanha fazendo-se passar por Faustina.

Faustina segue o seu amado disfarçada de homem, toma o nome de Rodrigo, que mantém como protecção mesmo quando embarca com Carlos para as Ilhas, suscitando até o amor de uma escrava, que acabará por salvá-la do naufrágio. Faz-se peregrina e toma o nome de Elena.

Temos, também, no terceiro serão, o recurso ao disfarce. Eugénia, uma criada que, de forma dissimulada se tinha inserido na casa de Basílio, faz-se passar por Damiana para manter encontros secretos com D. Lopo, seu antigo namorado. Mas, antes de chegar até ali, já se tinha disfarçado de homem para conseguir maior segurança na jornada.

Thomasia, apresentada antes como uma serrana em prantos junto a uma fonte, fez-se passar por sua prima para fugir ao assédio que o marido desta lhe movia, depois fez-se passar por homem para encobrir a sua condição de mulher desamparada, acabando por captar as atenções da filha do lavrador que a acolhera.

A par do disfarce, não podíamos deixar de falar de reconhecimento, bem ao gosto das tragédias clássicas. Na novela Irmãos Penitentes é um momento de grande intensidade dramática e determinante para o desfecho da narrativa. Ricardo e Periandra gozavam havia um ano alguma paz nas suas vidas, quando subitamente chega Ramiro, Felícia e Damiana, a velha ama, que lhes reconhece o laço de sangue.

Há uma voz crítica que atravessa toda a obra e vai fazendo comentários recriminadores a circunstâncias várias, como a vida na corte195, a educação dos

195 «[…] e em fim bastava o criarme na Corte, donde sobejão mestres à maldade», «…nem na grande

Babylonia da corte era novo confundirem-se as vozes da verdade aos estrondosos brados da opulência»,

72 morgados196, o comportamento de um inglês197, e, mais evidente ainda, à natureza feminina, tema que desenvolvemos de forma individualizada.