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Diferentemente de Augusto de Campos e de Ana Cristina Cesar, que tiveram formação acadêmica, Arnaldo não concluiu a universidade. Mas, desde logo, é preciso deixar claro que isso, obviamente, não diminui as qualidades intelectuais e inventivas de sua obra. Ao contrário, a interrupção do vínculo com a esfera de um saber “institucionalizado”, que comumente é repassado segundo um corpo de regras e diligências preestabelecidas, parece ter se colocado a seu favor.

Vale recordar que, no início dos anos 80, além de ter participado do grupo Banda Performática e de levar adiante projetos individuais ligados ao campo das artes visuais, Arnaldo passou a atuar como músico e letrista de um dos conjuntos de rock mais expressivos do cenário nacional, Titãs, que nessa mesma década estourou e conquistou jovens de todo o país. Como consequência de tal fato, os ensaios com banda, as viagens, os shows e outros eventos ligados ao circuito das artes o impediram de frequentar o curso de Linguística da USP4751. Daí os desdobramentos dessa trajetória multifacetada –

que vai se formando a partir do trânsito entre as linguagens, da experiência com a cultura de massas e também mediante o diálogo com grupos e artistas pertencentes a núcleos mais cults da cena cultural brasileira – terem contribuído para fomentar uma espécie de base caleidoscópica de referências, coletadas em diferentes fontes e que se faz a todo tempo aberta e em rede.

Em certa medida, é possível afirmar ser esse aspecto polivalente de sua obra – que não se estabelece nem fora nem dentro, mas de modo simultâneo, inclassificável, correndo e se projetando paralelamente aos ditames formadores do pensar acadêmico, que tende a discutir e a experimentar metodologicamente o objeto – o fator que mais tenha contribuído para a construção de um repertório híbrido peculiar, depositário de impressões críticas, artísticas, conceituais e técnicas. Assim, deve-se supor que tal mecanismo de referências nutre-se a partir do trânsito intenso que o poeta realiza em diferentes territórios poético-culturais, cujas modulações estéticas convertem-se em um centro gerador – e (re) combinatório – de sua própria experiência inventiva.

51 Comentando a respeito deste fato, na entrevista “Arnaldo encara o público” (que concedeu, em 1994, à Cláudia Gonçalves,

da Revista Folha), o poeta brinca: “talvez eu volte quando ficar velho”. Disponível em: <http://www.arnaldoantunes.com.br/ sec_textos_list.php?page=4&id=37>. Acesso em: 10 abr. 2008.

Nesse sentido, se levarmos em conta a parafernália de elementos e de procedimentos postos em atividade para a efetivação de projetos vários, será possível constatar que os resultados alcançados tendem a dar uma roupagem diferenciada à matéria textual. Desse modo, as suas intervenções artísticas sobre o objeto – que, quase sempre, toma como foco a instância da palavra combinada aos deslocamentos de significantes, à rearticulação de sentidos, aos rearranjos de significados e às oscilações de seus conceitos – contribuem para evocar novas formas de se pensar a concretude da linguagem.

A propósito, vale observar, no artigo “Arnaldo Antunes: os multimeios de uma poética”, do ensaísta Aguinaldo José Gonçalves, o que a poesia deste início de século tem a ver com a poética de Antunes:

[...] ao escolher um poeta que sirva de paradigma da poesia de um país, nosso olhar deve estar aberto como a magnólia, mas ao mesmo tempo longo, muito longo e oblíquo para que possa, côncava e convexamente, deslindar, nessas poucas linhas, suas nervuras e seus procedimentos de estilo. Nestes movimentos inventivos do século XXI, depois de ter atravessado todos os mecanismos composicionais da modernidade, e que tantos métodos e caminhos críticos anunciaram a morte da poesia, sua sobrevivência só poderia se dar de maneira prismática, dialógica, multifacetada de meios plurais e suportes simultâneos, icônica, diagramática e tensa pelos recursos gráficos que geram universos de sentidos sugestivos e espessura semântica semi- definida/semi-enigmática, pactuada com os meios de informatização que lhe possam auxiliar na ampliação de seus limites. Esses modos de se realizar pela forma fazem da poesia de Arnaldo Antunes singularíssima não apenas no Brasil mas no mundo (GONÇALVES, 2002)4852.

Tendo isto em mente, tudo leva a crer que uma obra de tal amplitude – elaborada desde a movimentada cena pop brasileira, singularizada pela multiplicidade de procedimentos compositivos (conforme vimos, erigidos a partir da reunião de impressões visuais, sonoras, verbais e performáticas) – dificilmente será encontrada no repertório individual de seus contemporâneos. Por este motivo, seria possível arriscar a hipótese de que tal exuberância, alcançada em virtude da fusão de linguagens, do ajuntamento de sentidos, conceitos e do trânsito entre diferentes mídias – desdobrando-se numa concepção formal eclética, plurissignificante, aglutinadora de fragmentos –, abre-se, no nosso tempo histórico, como uma possibilidade formal nada fácil de ser seguida em toda sua completude. Àqueles que se aventurem a trilhar, por exemplo, o campo da poesia experimental à maneira arnaldiana, alcançar um resultado

estético-formal satisfatório exige, no mínimo, conhecimentos de técnicas musicais, desenvoltura com o campo das artes – gráfica, literária, performática, plástica – e ainda muita interação com as novidades da tecnologia digital.

No sentido de corroborar com este enfoque, vale observar o que Wilberth Claython Ferreira Salgueiro comenta, no livro Forças & formas: aspectos da poesia brasileira contemporânea (dos anos 70 aos 90), a respeito dos inumeráveis suportes formais acionados pelo poeta:

Entre o palco e o livro, entre a palavra e a imagem, entre o barulho e o silêncio, a obra de Arnaldo Antunes vem sendo marcada por uma intensa reflexão acerca do sujeito e das suas possibilidades formais de expressão. Não é casual o interesse do poeta paulista pelo repertório que a parafernália cibernética oferece: as mais variadas técnicas de computação, simuladores, ilhas de edição, bancos de imagens e sons, realidade virtual, animação, mixagens em geral tornam-se instrumentos os quais o poeta contemporâneo poderá agenciar em proveito de um redimensionamento da criatividade e do exercício do imaginário. Sem deixar de utilizar as “clássicas” formas artísticas – como a literatura, a dança, a música, a pintura –, esse poeta amplia seu horizonte, aproximando-se, de alguma forma, dos produtos e dos valores da informática (SALGUEIRO, 2002, p. 242).

Quanto ao poema escolhido, em meio às composições poéticas de caráter visual produzidas pelo paulista na última década, a opção por “Rio” fez-se relevante na medida em que a sua configuração atende, sobretudo, à condição óptica indispensável para o estudo em questão: uma estrutura textual de aproveitamento gráfico ligado à forma circular, esférica ou ovalar. Em todo caso, não se pode negar aqui que o diálogo que se estabelece entre a pletora formal arnaldiana e a tipologia visual empreendida pelos poetas Noigandres influenciou no processo de escolha do poema em tese para compor nosso

corpus triádico.

Igualmente importante é dizer que, além de ser possível identificar no balaio das suas realizações gráficas processos compositivos com roupagens equivalentes aos da vanguarda concretista (tais como a presença de elementos tipográficos extraindo significação da potência icônica de sua forma, o uso espacializado da página, enfim, a exploração da dimensão verbivocovisual do signo poético), constata- se, de outra parte, uma quantidade significativa de recursos pouco explorados nas experiências visuais dos concretos, como é o caso da caligrafia, da poesia sonora e do uso de recursos multimídia.

Considerando que as formas circulares trazem em si, por excelência, ideias latentes de convergência, circulação e retorno, o estudo do poema “Rio” pode fornecer matéria-prima não só para a análise de sua temática fluvial-palindrômica (explícita em suas qualidades diagrâmicas, icônicas e verbais), mas também para que voltemos, ocasionalmente, a outros autores e épocas. Assim como “Ovonovelo” permitiu trazer a lume Símias de Rodes, da Antiguidade Clássica, e pôr em foco um dos primeiros indícios da existência de textos que objetivaram o diálogo com a dimensão visual – e “Gota a gota”, de Ana Cristina Cesar, que nos deu margem para tocar nos domínios caligráficos e, por sua vez, em um lado experimental ligado ao desenho (pouco discutido na obra da poeta), e, também, que acionássemos o universo figurativo das revistas experimentais –, “Rio” proporcionou a aproximação com o universo da vanguarda concretista, bem como com outras composições do próprio Antunes e de poetas situados nesses e noutros campos da visualidade.