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Vimos que a forma caligrâmica do poema em estudo, ao se dispor diagramada à maneira de duas gotas, estabelece relação com o título, intensificando o sentido da expressão “gota a gota” (que denota, no plano visual, a ideia de sucessividade gradativa), avivando também a noção daquilo que ultrapassa os limites, ou melhor, do que se encontra em estado de triz.

Tal estado vivido pelo sujeito lírico em sua trajetória de angústia, ao mesmo tempo em que se põe como uma linha tênue entre o desejo de viver e o de escapar da própria existência, parece ser igualmente, para usar uma expressão de Süssekind, o moto-contínuo que impulsiona o sujeito a continuar a sua busca. Isso pode ser percebido, por exemplo, pelos encadeamentos semânticos existentes em “cada busca inútil”, “cada noite que desce sobre uma espera vã” e “cada vez que não morremos”, que singularizam ações realizadas durante a viagem, bem como assinalam a presença de estímulos frustrados vistos pelo eu como tentativas de chegar ao “verdadeiro significado”, que, no caso, se tornou vinculado à “falta de segredo”.

A forte referência às oscilações perceptivas (sobretudo, as sensações táteis e sonoras) também deve ser considerada, pois é muito significativo notar que elas estejam tão presentes num poema visual. No ensaio “Luvas de pelica de Ana Cristina Cesar: el ojo y el guante”, o crítico argentino Gonzalo Aguilar – o mesmo que empreendeu uma rigorosa pesquisa sobre o Concretismo (Poesia concreta

brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista) – faz um estudo que trata desses aspectos sensoriais

presentes em alguns textos de Luvas de pelica e os contrapõe a elementos do caderno de Portsmouth-

Colchester. Ao se perguntar como a escritora alcança com a palavra poética um estado “háptico” (tátil),

uma conexão direta com a máquina sensorial absoluta, ele mesmo responde:

Desde este punto de vista, se puede decir que las estrategias básicas de la escritura de Ana Cristina Cesar son la manipulación arbitraria y violenta de las dimensiones, la aplicación de cambios bruscos de velocidad en la escritura poética y la exhibición de una narración incompleta que se despliega em uma sintaxis entrecortada y en la que siempre falta algo. Es ante esa falta que se impone, en la escritura, el habla del cuerpo (AGUILAR, 2006, p. 318).

De outro modo, contrastando a temática de “Gota a gota” com a ideia de circularidade, percebemos que o poema em estudo aglutina diferentes possibilidades de se pensar tal conceito. Nesse sentido, é relevante lembrar que “Gota a gota”, de algum modo, abarca temas muito semelhantes aos que foram abordados no conto maravilhoso escrito e ilustrado por Ana Cristina Cesar na sua fase de aprendizagem (como a classificou Camargo). Em certa medida, o desenho, as falas, a presença do elemento água e o seu

vínculo com o mar, o suicídio da princesa Anabela e as vozes ecoando apresentam-se como singularidades

que reincidem no caligrama que examinamos.

Aliás, é significativo considerar que o desfecho anunciado pela ficção, através dos primeiros desenhos, não só reaparece em “Gota a gota”, mas mantém forte ligação com o destino trágico que, de fato, teve a poeta. Nas ilustrações, Anabela se atirava de um precipício. Em “Gota a gota”, o desejo de “despedaçar- se” no início parece ser realizado pela noite que, ao final, desprende-se do céu para aniquilar qualquer possibilidade de vida. E a poeta, em 29 de outubro de 1983, atirou-se de um prédio, talvez para descobrir os mistérios daquela brisa marinha que tanto a instigou. Não assinalamos essa conexão “vida-obra” com o intuito de, em reducionismo biografista, subordinar a segunda à primeira, pois, ao percebermos inegáveis laços entre uma e outra, obriguemo-nos a enxergar que não a produção poética de Ana Cristina Cesar “refletiu” a sua existência, mas, antes, o desfecho desta é que foi antecipado por aquela. A rigor, trata-se, portanto, de um vínculo com direção invertida: “obra-vida”, com toda a problematicidade que tal elo possa comportar (questão, aliás, que, merecendo referência, não foi nosso propósito explorar).

Nesse sentido, talvez aqui seja o momento de retomarmos uma questão levantada anteriormente, que diz respeito à possibilidade de, no poema em tese, haver mais de um caminho para se pensar a sua leitura. Se levarmos em conta o aspecto caligrâmico do texto, sobretudo a iconicidade de duas gotas ressaltada pela diagramação indicando um deslocamento do nível mais alto ao mais baixo, seria possível dizer que, num plano físico, a gota da direita teria sido expurgada primeiro e, nesse caso, caberia buscarmos comparação desse possível início com o terreno da ficção. A força de gravidade – que a rigor corresponde à atração que a Terra exerce sobre um determinado corpo material presente sobre sua superfície, seu interior ou em seu arredor – parece estar aqui invertida e atuando sobre certa imaterialidade, uma existência não palpável. Em “A noite despencou e quebrou três estrelas” a descrição do elemento que por ela é afetado não é um corpo material, mas sim a noite, um intervalo de tempo, ou melhor, a duração de uma atmosfera escura que transcorre do ocaso até o nascer do sol.

Por fim, um lembrete: assim como “Gota a gota”, que faz parte dos textos que foram “vítimas” de certa recusa da escritora, há outros desenhos, esboços, rascunhos, manuscrituras que, se receberem uma atenção especial (ou seja, estudos detalhados como já o fizeram Süssekind e Aguilar), poderão trazer à baila uma nova perspectiva de análise, bem como contribuir para os modos de se pensar a obra de Ana Cristina Cesar2122.

Aqui, tentamos apresentar a nossa colaboração para desenvolver a perspectiva mencionada.

22 A tal propósito, vale conferir o livro Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa, organizado por Viviana Bosi e publicado

no final de 2008, pelo Instituto Moreira Salles. A edição fac-similar, de quase 500 páginas, reúne diferentes tipos de textos que Ana Cristina Cesar produziu durante um período de mais ou menos dez anos (poemas, desenhos, fragmentos de diário, anotações de aulas, anotações íntimas, rascunhos, bilhetes, rabiscos, retalhos de agenda, cartas, relatos de viagem, entre outros).